sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

Guiné 63/74 - P1543: Uma estória da minha recruta, em Beja, no RI3 (Tino Neves)

Beja > RI 3 > 1969 > Dia do Juramento de Bandeira. Sinalizado com círculo vermelho , o autor desta estória.


Beja > RI 3 > 1969 > Vista do Quartel


Beja > RI 3 > 1969 > "Eu mais dois camaradas, um foi para a PM [Polícia Militar] e o outro para Rádio-Montador. Semana de Campo em terras do Baixo Alentejo" (TN)



Fotos: © Tino Neves (2006). Direitos reservados.
Texto enviado pelo nosso camarada Tino Neves > Constantino Neves, ex- 1º. Cabo Escriturário da CCS do BCAÇ 2893 (Nova Lamego, 1969/71) (1).

Caro Luís Graça

Vou-te contar uma pequena história da minha recruta, pelo facto de que aquilo que fomos na Guiné, Angola ou Moçambique, tem a ver com o que se passou na nossa recruta.

A recruta foi mais importante que a especialidade, porque foi na recruta que tudo começou. Começámos a conhecer e aprender a conviver com outros iguais e com os nossos superiores, pois já os nossos pais diziam que a tropa era a escola da vida. Como também diziam que havia muitos filhos de muitas mães e que a tropa abria os olhos a quem os tinha fechados e fechava-os a quem os tinha muito abertos, os chamados Xicos Espertos. Pois havia daqueles que mal sabiam falar, como um do meu pelotão, que nem sabia dizer de onde era, só sabia dizer que era do outro lado da ribeira. Mas também havia os ditos Xicos Espertos, como um também do meu pelotão, que o Furriel o mandou ao armazém de material de guerra buscar uma caixa de estrias, e chegou junto do Furriel estafado com uma caixa às costas, cheia de pedras, julgando que eram estrias.

A recruta não foi só a preparação física. Também, e principalmente, aprendeu-se a ser amigo do seu amigo e a criar e a manter o espírito de camaradagem, como há muitos que começaram na recruta e acabaram no Ultramar sempre juntos.

Agora vou então contar a minha história da minha recruta (não era Xico Esperto, mas sabia de onde era) (2).

Durante a semana de campo parti a coronha da espingarda G3 (como sabem a coronha da G3 era muito frágil na zona onde acaba o plástico e começa a parte de metal), e o Furriel ameaçou-me que o Capitão ia-me dar uma porrada (entenda-se, um castigo). Também os meus colegas me intimidavam, assim como um que me disse:
- Estás feito, vais para atirador para a Guiné. - Mas eu não ligava a tudo isso que me diziam, porque já tinha acontecido a outros colegas e eles não foram castigados.

Quando regressámos ao quartel, fui chamado ao Comandante de Companhia (um Capitão, de não me recordo o nome). Aí já fiquei com algum receio.E lá fui eu ao gabinete do Capitão.
- Dá-me licença, meu Capitão?
- Entra
- Apresenta-se o soldado recruta 10.087/69, meu Capitão!
- Ah... és tu aquele que anda a destruir património do Estado...
- Sim, meu Capitão, sou eu mesmo.
- Sabes, vais ser castigado.
- Sim, meu Capitão, mas queria pedir ao meu Capitão que me deixasse contar como se passou tudo.
- Está bem, conta lá.

Então contei-lhe a minha versão:
- Ontem, o nosso Furriel Magno resolveu fazer uma prova de Combate, para isso tivemos que apanhar uma porção de pedras, do tipo calhau, para junto dele, e depois disse-nos: 'Eu sou um inimigo, quando eu apitar uma vez, quero todos no chão, quando tornar a apitar, quero todos de pé e em passo de corrida, mudar de posição, e quando voltar a apitar não quero ninguém de pé, que eu disparo um tiro, uma pedra, aviso já que sou bom atirador'.
- E então ? - pergunta o Capitão.
- Então, é que na altura em que estavamos a mudar de posição e ouvi o apito, eu encontrava-me de costas a pouca distância do inimigo e, para que não fosse alvejado, lancei-me ao chão num grande salto. A G3 caiu mal e partiu-se, só depois é que analisei a minha reacção, e cheguei à conclusão de que deveria ter dado uma cambalhota...Mas estou aqui a ser preparado para a Guerra, não é verdade, meu Capitão?
- Tens razão, rapaz, estás a ser preparado para a Guerra, desta escapas, mas dou-te um conselho, trata da tua arma melhor que a tua namorada, que ela pode salvar-te a vida.
- Sim, meu Comandante.

Fiz a continência, dois passos atrás, e saí do gabinete do Capitão, todo satisfeito, não somente por não ter sido castigado, mas por, apesar de não ter namorada na altura, ter entendido o recado.

Um Abraço
Tino Neves
Almada
___________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 3 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1146: Constantino Neves, ex-1º Cabo Escriturário da CCS do BCAÇ 2893 (Lamego, 1969/71).

(2) Vd. outros posts anteriores do Tino Neves:

10 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1512: Estórias de Bissau (11): Paras, Fuzos e...Parafuzos (Tino Neves)

5 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1404: Um pequena estória dos Magriços de Guileje (CCAÇ 2617) (Tino Neves)

14 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1367: Concurso O Melhor Bagabaga (3): Fajonquito (1964) (Tino Neves)

7 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1349: Quartel Novo de Nova Lamego: paredes finas e chapa de zinco (Tino Neves)

23 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1310: Postais Ilustrados (12): Ponte-Cais de Bissau e estátua de Diogo Gomes (Tino Neves / Carlos Fortunato)

9 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1160: Lembranças de Nova Lamego (Tino Neves, CCS/BCAÇ 2893): A fatídica noite de 15 de Novembro de 1970

3 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1145: Na fonte... com o Inimigo (ou a água quando nasce é para todos) (Tino Neves, CCS do BCAÇ 2893, Nova Lamego)

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