terça-feira, 5 de agosto de 2008

Guiné 63/74 - P3113: Os funerais dos nossos camaradas Pára-quedistas (4): As exéquias fúnebres (Idálio Reis)



Idálio Reis,
ex-Alf Mil
CCAÇ 2317
Gandembel/Balana,
1968/69



1. No dia 28 de Julho de 2008, recebemos uma mensagem do nosso camarada Idálio Reis, com um texto alusivo às exéquias fúnebres dos três camaradas Pára-quedistas caídos em combate em Maio de 1973.


Restos mortais dos nossos camaradas Pára-quedistas, Lourenço, Peixoto e Vitoriano, em câmara ardente na Igreja de N. Sra. do Rosário, em Lisboa.

Foto: © Mário Fitas (2008). Direitos reservados.


Meus caros Luís Graça, Carlos Vinhal e Virgínio Briote.

Neste fim-de-semana, a quase generalidade dos órgãos de comunicação social difundiram largamente os funerais dos 3 pára-quedistas mortos na Guiné, nas imediações de Guidage e aí enterrados, em Maio de 1973.

Ainda que a Tertúlia seja conhecedora de algumas das circunstâncias que contribuíram para que as trasladações fossem coroadas de sucesso, parece que os afins Poderes instituídos deste País assumiram uma postura bem condizente para com este colectivo acto fúnebre, ao prestarem uma honrosa e justa homenagem a 3 militares que há trinta e cinco anos haviam tombado ao serviço da Pátria.

É minha opinião que houve um elevado e nobre sentimento de dignidade no gesto prestado.

Mas, o Poder não poderia tomar outra atitude que não fosse esta mesma, aproveitando uma oportunidade única de trazer os restos mortais de 3 soldados tombados no tempo da guerra colonial, que inexoravelmente se vai dissipando na voragem dos tempos.
E havia que os entregar ao seio dos seus mais íntimos, com cumprimento e solenidade cerimoniais as mais apropriadas. E assim foi.

Mas, como chegam estes três homens, passados 35 anos?

Após um intenso trabalho de sapa, onde se deu a conhecer localmente aos familiares dos 3 pára-quedistas e lhes transmitiu as diligências que vinha encetando para resgatar os corpos dos seus ex-companheiros, e tendo ouvido das autoridades políticas e militares que não haveria suficiente capacidade financeira para a trasladação dos 8 militares então enterrados em Guidage (os 3 pára-quedistas com 5 elementos do Exército), a 27 de Junho de 2006 no Post 919 (1), o ex-Sargento Pára-quedista Manuel Rebocho lança este forte e pungente apelo:

- Vamos trasladar os restos mortais dos nossos camaradas, enterrados em Guidage, em Maio de 1973.

A partir daqui, surge o eco amplo do Blogue, e o trilho confinado nos seus escolhos burocráticos, foi paulatinamente sendo alargado.

O País vai tomando conhecimento desta saga e abrem-se clareiras firmes no propósito de se atingirem os objectivos em causa, onde ressaltam a TVI com o nosso Vítor Tavares e mais tardiamente a SIC já com perspectivas bem delineadas e fundamentadas.

No fim do comovente funeral do José Lourenço, onde compareceram conterrâneos, Associações de Combatentes, Executivo Municipal e Junta de Freguesia, muitas Boinas Verdes, tive a felicidade de estar algum tempo com o Manuel Rebocho e o Vítor Tavares. Ambos tinham cumprido mais uma nobre missão e reterei para sempre o sentido e terno agradecimento que os familiares do Lourenço, muito em especial o dos seus pais, tiveram para com aquele homem, que me disse simplesmente que tinha cumprido o seu dever.

Reconheci nele, estar um homem de profundas convicções, de alguém com grande determinação e inabalável querer.

O Rebocho já nos tinha afirmado que não conhecia a palavra desistência. A sua tenaz e acrisolada persuasão, trouxe de volta os seus ex-companheiros Vitoriano, Peixoto e Lourenço, os mesmos que há tantos anos lhes prometera uma sepultura condigna para seu repouso eterno. E a sua obrigação acabara de se concretizar!

Recordo as palavras de alguém que um dia afirmou:

- A memória é a nossa única verdadeira defesa contra a traição e o abandono. Que enquanto se lembrar, está vivo. E ao estar vivo, vive, e assim não deixará morrer quem caminhou com ele, ao longo do caminho.

Uma forte lembrança para toda a Tertúlia, do
Idálio Reis.
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Notas de CV

(1) - Vd. poste de 28 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P919: Vamos trasladar os restos mortais dos nossos camaradas, enterrados em Guidage, em Maio de 1973 (Manuel Rebocho)

(2) - Vd. último poste da série de 4 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3111: Os funerais dos nossos camaradas Pára-quedistas (3): Manuel Peixoto, Gião, Vila do Conde (Albano Costa)

Guiné 63/74 - P3112: História de vida (13): O meu amigo Nelson Batalha (Helder Sousa)



Helder Sousa
ex-Fur Mil de Transmissões TSF
Bissau e Piche
1970/72


1. Recentemente recebemos uma mensagem do nosso camarada Helder Sousa, contando uma História de Vida, desta feita do seu amigo e camarada, e nosso camarada também, Nelson Batalha.

Caros Editor e Co-Editores
Hoje vou dar-vos a conhecer um pouco mais do meu amigo Nelson Batalha, nosso camarada da Guiné que levei o ano passado ao Encontro da Tertúlia, em Pombal.

Já me referi a ele nas histórias que contei sobre a minha (nossa) viagem de Lisboa para Bissau, no Ambrizete, e também nos apontamentos que indiquei sobre os primeiros tempos passados nas Transmissões.

Acontece que este meu amigo não tem passado muito bem (acho que é vulgar dizer-se isso sobre quem esteve em teatro de guerra...), tem problemas de alzheimer (ainda não muito desenvolvidos) e nunca recuperou bem depois de ter acabado a sua profissão (era Despachante Alfandegário), sendo que da guerra da Guiné ainda guarda no corpo alguns estilhaços que foram absorvidos pela massa muscular, estilhaços esses adquiridos em Catió aquando do ataque a esse aquartelamento/povoação em Abril de 1971 (salvo erro a 13 ou 14).

Isto vem a propósito do seu aniversário, que foi no passado dia 15 de Junho, e que mais uma vez me deixou um pouco deprimido pela impotência que sinto em não o poder ajudar mais.

2. O meu amigo Nelson Batalha
Fomos para a Guiné juntos no mesmo barco (com o Manuel M. Martins) e em Bissau juntaram-se os outros 4 elementos do mesmo curso de TSF, num total de 7 rendições individuais que tiveram destinos diversos.

Assim, o Fur Mil António Calmeiro conseguiu ser colocado em apoio administrativo, os Fur Mil Eduardo Pinto e José Fanha (isso, primo do famoso dos concursos da televisão) ficaram adstritos à Companhia de Transmissões onde foram dar corpo à criação e desenvolvimento do aqui já referido Centro de Escuta da Guerra Electrónica e eu, o Nélson, o Martinho e também o Fur Mil Dutra Figueiredo ficámos a receber instrução específica e dedicada no STM para depois seguirmos para Postos no mato. O Dutra foi para Farim, o Martinho para Tite e eu e o Nelson Jogámos às moedas para ver quem ia para Piche (fui eu) ou para Catió (foi ele).

O nosso conhecimento já era anterior à da incorporação na vida militar. Ou melhor, ele já me conhecia, eu nem tanto no que a ele dizia respeito, pois ambos estudávamos no velho Instituto Industrial de Lisboa mas eu teria eventualmente mais alguma visibilidade por via da minha participação na vida associativa estudantil, apesar de cultivar sempre o low profile.

Certo dia (melhor, certa noite) de Agosto de 1970, estando nós no Porto, no antigo Regimento de Transmissões situado junto ao Jardim da Arca d'Água, onde dávamos instrução a várias fornadas de futuros telegrafistas, fomos ficando à conversa sobre diversos assuntos, fazendo tempo para a hora da ronda (a minha seria às 24 horas). Nessa conversa, para além de nós os dois, estava também pelo menos um dos dois colegas de curso que eram naturais do Porto e que iriam naturalmente pernoitar a casa, excepto quando tinham serviço, o José A. Reis e o Fernando Cruz, por sinal excelentes amigos e bons camaradas. O Reis não chegou a ser mobilizado e o Cruz foi para Nampula, Moçambique.

Ora acontece que o Nélson era conhecedor das minhas opiniões quanto à justeza da guerra, sabia do meu empenhamento no movimento associativo estudantil e eu, por meu lado, também conhecia a propensão que ele por vezes tinha para a provocaçãozinha, para a ligeireza no abordar dos assuntos, para avacalhar as conversas. Daí que, pesando tudo isso, não me importei muito quando ele, a partir de certa altura, começou a arrancar com o festival de alarvidades com que foi mimando a nossa conversa, pois isso dáva-me oportunidade para, ao argumentar contra o que ele dizia, ir fazendo a defesa das posições que achava justas e ir fazendo passar as minhas convicções, com todas as cautelas possíveis, não esquecendo que se estava em 1970 e num quartel...

O que eu não contava era que me deixei enredar nas provocações e (lembro-me bem) apesar de perceber que estava a morder o anzol estava a deixar-me ir na onda e as coisas azedaram mesmo! Ele, só para me provocar e puxar por mim (disse-me depois), socorria-se de tudo o que era o mais reaccionário possível, do tipo fazíamos muito bem em ir defender a Pátria em África porque aqueles territórios eram nossos por direito divino, que era sabido que os pretos eram naturalmente inferiores, que de acordo com a teoria da evolução humana descendíamos dos macacos e a prova disso eram os pretos, que estavam entre os símios e os homens, que aqueles que se opunham à guerra estavam a soldo de potências estrangeiras, para fins inconfessáveis e outras bojardas do mesmo quilate.

Fui defendendo os meus pontos de vista com a serenidade possível mas a certa altura, com toda a camarata a dormir (impossível, porque o tom de voz tínha-se elevado pelo empolgamento que a situação proporcionou), excepto os três ou quatro que mantínhamos a discussão, acalmei, e disse-lhe muito solenemente:
- Olha Batalha, tu não acreditas que vai haver uma revolução, mas podes ter a certeza que isso vai acontecer, não te posso dizer quando, mas que vai haver, lá isso vai, e nessa ocasião, a manteres esses pontos de vista, vamos estar em lados opostos da barricada e desde já te garanto e aviso, se tiver que enfiar um tiro nessa tua cabeça dura podes crer que o farei!

Como é natural, houve por breves instantes um silêncio ensurdecedor, depois todos os que dormiam começaram a agitar-se para ver se iria haver algum drama, o que não aconteceu, pois fui fazer a ronda...

A minha amizade pelo Nélson Batalha deve ter começado a cimentar-se naqueles instantes. Deve-se ter feito juz ao velho ditado queres um amigo, dá-lhe porrada. Pelo Cruz e pelo Reis o meu respeito, admiração e carinho são, ainda hoje, enormes. O Nélson é o meu padrinho de casamento (e não só) e vê-lo a perder faculdades dá-me um aperto que acho que precisei de relembrar este episódio para tentar ultrapassar a tristeza.

Que conclusões tirar?
Que a amizade não tem limites?
Que tenho jeito para premonições, porque previ o 25 de Abril quase 4 anos antes?
Que é sempre bom ser assertivo e não contemporizar com as situações com que não se concorda?

Pois, meus amigos, colham vocês as vossas próprias conclusões, que isto é suficientemente plural para cada um tirar a sua!

Um abraço e até breve!
Hélder Sousa
Fur Mil Transmissões TSF

Bissau > Restaurante Pelicano > Helder Sousa, Fernando Roque e Nelson Batalha

Bissau > Santa Luzia > Messe dos Oficiais > Nelson Batalha, Helder Sousa e José Fanha

Fotos: © Helder Sousa (2008). Direitos reservados.


Pombal, 2007 > Nesta foto, o nosso camarada Nelson Batalha está assinalado com a elipse encarnada

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.

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Nota de CV

(1) - Vd. último poste da série de 31 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3101: Histórias de vida (13): Desistir é perder, recomeçar é vencer (Carlos Schwarz, 'Pepito', para os amigos)

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Guiné 63/74 - P3111: Os funerais dos nossos camaradas Pára-quedistas (3): Manuel Peixoto, Gião, Vila do Conde (Albano Costa)

1. No dia 27 de Julho de 2008, recebemos uma mensagem do nosso camarada Albano Costa (ex-1.º Cabo da CCAÇ 4150, Cumeré, Bigene e Guidaje, 1973/74), dando conta da sua presença no funeral de Manuel Peixoto em Gião, Vila do Conde.

Caros editores
Estive no funeral do Pára-quedista, Manuel Peixoto, de Gião, Vila do Conde. Fiquei bastante emocionado com a recepção feita pelos Pára-quedistas ao seu ex-companheiro, que esteve longe da sua terra natal durante 35 anos, como todos nós sabemos.

Estes momentos costumam ser sempre de tristeza, mas desta vez o que senti, foi uma mescla de várias coisas, alegria pela chegada de um filho à sua terra, pela sua família, - irmã e sobrinhos com quem falei -, e por toda a população de Gião que assistiu, mesmo por aqueles que não o conheceram em vida.

Mas também senti tristeza, lembrei-me dos familiares dos restantes cinco militares portugueses (metropolitanos) que foram exumados, de Guidage para Bissau e não regressaram a Portugal. Lembrei-me muito dessas famílias, como estariam a passar ao verem o regresso de uns, porque não os seus também!...

Não estavam a lutar pelos mesmo objectivos, no mesmo sítio e na mesma altura?

Fiz um registo de 30 fotos da chegada do Peixoto à sua terra de origem, para finalmente descansar em paz junto dos seus.

Um abraço de amizade
Albano Costa

Foto 1 > Na cerimónia estiveram presentes autoridades civis e militares de Vila do Conde. Do lado direito da foto, em primeiro plano, Dr. Mário Almeida, Presidente da Câmara Municipal de Vila do Conde.

Foto 2 > Capelão da Força Aérea que presidiu às cerimónias religiosas

Foto 3 > Restos mortais do Soldado Pára-quedista Manuel Peixoto

Foto 4 > Os Pára-quedistas que assistiam à Missa. Entre eles, o nosso tertuliano Magalhães Ribeiro.

Foto 5 > Deixando a Igreja, agora levado por Veteranos.

Foto 6 > Idem

Foto 7 > Caminhando para a sua última morada

Fotos e legendas: © Albano Costa (2008). Direitos reservados.

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Notas de CV

Vd. Postes de 2 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3105: Os funerais dos nossos camaradas Pára-quedistas (1): Artigo do DN (Afonso Sousa)
e
3 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3108: Os funerais dos nossos camaradas Pára-quedistas (2): Cerimónias nacionais na Igreja N. Sra. do Rosário, em Lisboa (Mário Fitas)

Guiné 63/74 - P3110: Estórias do Juvenal Amado (13): Pela calada da noite

Juvenal Amado
Ex-1.º Cabo Condutor
CCS/BCAÇ 3872
Galomaro
1972/74


1. Em mensagem de 29 de Julho, recebemos do nosso camarada Juvenal Amado, mais uma das suas habituais estórias (1).

Caros camaradas
Carlos Vinhal, Luís Graça, Virgínio Briote e restante Tabanca

Como já disse ainda estou .

Esta estória é um pouco a história de todos que embarcaram naqueles anos cinzentos.

Tão jovens depressa envelhecemos interiormente.

Um abraço para todos
Juvenal Amado

2. Pela calada da noite
Por Juvenal Amado

No campo militar de Sta. Margarida, o frio naquele mês de Novembro trespassava-me a ponto de me fardar com botas e tudo, depois deitar-me novamente.
Não foi pois com desgosto que disse adeus a CIME e ao seu comandante o Coronel Maçanita.

Nunca tive dúvida de que seria mobilizado. Em pensamentos antecipados pensava em Moçambique, onde tinha já prestado serviço militar o meu irmão mais velho.
Talvez Angola, onde até tinha família. Mas…

Fui mandado regressar a Abrantes já sabendo que tinha sido mobilizado, não sabia ainda para onde.
Depressa me tiraram as duvidas… Guiné esse nome tão temido.

Quando cheguei a casa com dois sacos verdes, a minha mãe olhou-me no cimo das escadas e perguntou-me num fio de voz:
- Para onde ?

Senti-me tentado em dizer-lhe, que ia para outro sítio qualquer. Não podia esconder-lhe e brinquei com o facto, tentando apagar o pânico que vi nos seus olhos.

- Mãe ainda vou fazer o IAO, depois ainda venho de férias e só depois embarco.

Tentei fazer passar a ideia, de que passaria o Natal e talvez para Fevereiro ou Março eu rumaria às terras da Guiné.
As férias passaram a correr, aliás quanto mais me aproximava da data de regresso a Abrantes, mais desejoso de partir estava. Sou incapaz de estar naquele meio termo.
O meu pai e a minha mãe pediram-me que escrevesse sempre. Despedi-me:
- Até para a semana, pois decerto venho passar o Natal a casa, menti eu.

Entrei na Porta de Armas naquela madrugada escura e cinzenta. O vulto da 4 L verde-escuro foi ficando mais longe, mas sempre um braço se agitava num longo adeus.
Dobrei a esquina da caserna, esperei um pouco e voltei a espreitar. Lá estava a 4 L imóvel, talvez à espera que o tempo voltasse a trás e eu entrasse nela, de regresso a casa.
Penso que eles se aperceberam que o embarque, já estava marcado e que não me voltariam a ver tão cedo.

Foram poucos os dias que tivemos até à data do embarque, mas deu para cimentar algumas amizades que ainda duram.
Quando entrei na caserna ouvi chamar com aquela pronúncia do Norte:
- Condutor, oh condutor, tens aqui lugar, traz as tuas coisas para a nossa beira.

Na verdade nós já nos conhecíamos, pois tínhamos vindo do RI 6 do Porto para Abrantes no mesmo combóio, quando todos acabamos as nossas respectivas especialidades. O Ivo, Ermesinde, Lo…pes, Silva, Félix, Ferreira, Passos, Dias e o Leo, todos do Pelotão de Reconhecimento e Informação.

Assim fui adoptado pelo Pelotão e só mais tarde vim a conhecer os meus camaradas da ferrugem. Ainda ouvi bocas de que eu tinha desprezado o meu Pelotão. Na verdade, acabei por ir parar a outro abrigo, onde se arrumaram os camaradas das mais variadas especialidades, que não tiveram lugar nos abrigos dos seus pelotões.

Mas voltando a Abrantes, todas as noites aquele grupo saía, bebíamos uns copos, só voltando para o quartel quando já estavam a fechar a Porta de Armas de vez.
Invariavelmente de manhã só me levantava após a visita de algum graduado e mesmo assim, quando ele virava costas deitava-me outra vez. Assim passava o capitão, batia na cama com uma varinha e chamava:
- Oh Zé das canas, então, não te levantas?

Estas visitas já faziam parte do nosso dia-a-dia.
Foi assim que uma manhã, o oficial de dia entrou com aquela desenvoltura dos Operações Especiais a gritar:
- Está a levantar e quem não se levantar rapidamente leva uma porrada, que vai parar à Guiné.

Chegou ao pé da minha cama e gritou-me:
- Oh nosso cabo, dê cá já o seu número.

Sonolento e cheio de frio, respondi-lhe que só lho dava se ele o mandasse dourar.

O Alferes Armandinho fingiu que não ouviu. Assim ele não tivesse ouvido a ordem que o levou ao encontro da morte mais os seus homens no dia 17 de Abril de 1972 na emboscada do Quirafo (2).

Mandaram que nós arrumássemos as nossas coisas e despejássemos a caserna até às 22 horas. Para não haver dúvida, passaram revista à e fecharam a porta à chave.
Ali ficamos sentados nos sacos e mais bagagem, até cerca da meia-noite.
As Morris, Berliets e Unimogs começaram a faina de nos acarretar para Estação dos Caminhos de Ferro, no Rossio ao Sul do Tejo.
É tudo feito pela calada da noite.

Metidos em combóio especial, só paramos em Lisboa em Sta. Apolónia ainda é noite. Já lá estão os transportes para nos levar até ao cais de Alcântara. Amanhece, mas é uma luz parda com névoa, que paira sobre o rio Tejo ali ao lado.

Uma cozinha de campanha distribui café com leite e pão para o pequeno almoço.

O Angra do Heroísmo já espera por nós. A cidade acorda lentamente, mas mais um embarque, depois de 10 anos a ver partir barcos carregados de jovens, já não causa qualquer interesse nem curiosidade.

Foto 1 > Lisboa 18 de Dezembro de 1971 > O Angra do Heroísmo espera por nós

Não tinha avisado ninguém da data da partida, mas à última hora deu-me vontade ter alguém a quem dar um abraço, que dissesse aos meus pais e irmãos que eu tinha embarcado bem. Telefonei ao meu tio Armando, que em 15 minutos já estava ao pé de mim. Veio com ele a minha prima. Conversámos, entreguei-lhe uma carta para ele meter nos correios, mas com a condição de não dizer que tinha estado comigo até a mesma chegar ao destino.

Quando os meus pais receberam a carta, já estava com dois dias de mar alto.

Vem a ordem para se começar a embarcar por Companhias, olho em volta o nevoeiro que não deixa ver para além de duzentos metros.
Subo para o navio, fico a olhar para o cais onde se dão os últimos abraços, ainda se contêm as lágrimas.
Já estamos todos a bordo.

O navio solta três vezes o urro das suas sirenes.
Um alarido percorre aquela mancha verde de soldados, já estamos afastados do cais. Um enorme e estrondoso silvo de assobios ecoa pelo cais, olho para esplanada do mesmo e vejo os lenços, a mole humana parece varrida por uma rajada, vão tombando aqui e ali as mães, irmãs e namoradas que tinham até ali resistido ao seu próprio drama.
O nevoeiro foi engolindo Lisboa, ainda se vê ou está gravado nos meus olhos aquela mancha cinzenta do cais com braços acenando.

Foto 2 > Já a bordo do Angra do Heroísmo, a caminho da Guiné

Quando voltar a esse lugar, será de certo num dia mais feliz, mas nunca apagará da minha memória a enorme tristeza da partida.

Juvenal Amado
ex-1º Cabo Condutor
CCS /BCAÇ 3872
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Notas de CV

(1) - Vd. último poste da série de 17 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3067: Estórias do Juvenal Amado (12): O longo abraço (Juvenal Amado)

(2) - Sobre a tragédia do Quirafo, Vd. postes de:

23 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P980: A tragédia do Quirafo (Parte I): o capitão-proveta Lourenço (Paulo Santiago)

25 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P986: A tragédia do Quirafo (Parte II): a ida premonitória à foz do Rio Cantoro (Paulo Santiago)

26 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P990: A tragédia do Quirafo (parte III): a fatídica segunda-feira, 17 de Abril de 1972 (Paulo Santiago)

28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1000: A tragédia do Quirafo (Parte IV): Spínola no Saltinho (Paulo Santiago

15 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1077: A tragédia do Quirafo (Parte V): eles comem tudo! (Paulo Santiago)

Guiné 63/74 - P3109: Álbum fotográfico do Joaquim Guimarães (3): O Rio Corubal no Saltinho



Joaquim Guimarães
Ex-Soldado
CCAÇ 3490/BCAÇ 3872
Saltinho
1971/74


1. Vamos dar por fim o álbum fotográfico do nosso camarada Joaquim Guimarães, que nos enviou belíssimas fotografias do Saltinho (1).

Foto 1 > A beleza das águas do Corubal, correndo no seu leito irregular.

Foto 2 > Mais uma panorâmica do Rio no Saltinho

Foto 3 > Idem

Foto 4 > Olhando as águas revoltas

Foto 5 > Em passeio junto ao Rio

Foto 6 > O Rio passando sob a Ponte do Saltinho

Foto 7 > Aspecto do Rio no Saltinho

Foto 8 > Gozando momentos de paz na Ponte do Saltinho

Foto 9 > O olhar no Rio, o pensamento muito longe.

Foto 10 > Na época das chuvas o Rio é mais selvagem

Foto 11 > Desafiando o Rio
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Nota de CV

(1) - Vd. postes de 28 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3097: Álbum fotográfico do Joaquim Guimarães (1): Saltinho
e
1 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3104: Álbum fotográfico do Joaquim Guimarães (2): Saltinho

domingo, 3 de agosto de 2008

Guiné 63/74 - P3108: Os funerais dos nossos camaradas Pára-quedistas (2): Cerimónias nacionais na Igreja N. Sra. do Rosário, em Lisboa (Mário Fitas)

1. No dia 26 de Julho de 2008, recebemos do nosso camarada Mário Fitas (ex-Fur Mil Op Esp da CCaç 763, Cufar, 1965/66), uma mensagem com uma vasta reportagem fotográfica das cerimónias nacionais de homenagem aos nossos três camaradas Pára-quedistas, recentemente regressados a Portugal.

Caro Luís,
Acompanhado do meu amigo Rui Trindade Baixa, desloquei-me à Igreja de Nossa Senhora do Rosário, templo da Força Aérea Portuguesa, para assistir às cerimónias In Memória dos Pára-quedistas mortos em Guidage.

Não tenho oportunidade de escrever muito sobre a Cerimónia, o qual será feito noutra altura.

Tem este o fim principal de enviar as fotos tiradas bem como referir a presença dos tertulianos José Martins e Esposa e do Victor Tavares.

Vão também homenagens do Pára-quedista Carlos Costa e do senhor General Hugo Borges.

De salientar a postura do tertuliano José Martins da forma como esteve e apresentou a algumas entidades o senhor Embaixador da Guiné-Bissau que presumo estaria um pouco isolado.

Foto 1 > Folheto alusivo à cerimónia que se realizou na Igreja Nossa Senhora do Rosário

Foto 2 > Um dos carros que transportavam os nossos malogrados camaradas

Foto 3 > Os corpos dos três Páras, lado a lado, até se separarem definitivamente para rumarem ao seu verdadeiro eterno descanso

Foto 4 > Momento em que são prestadas honras militares aos restos mortais

Foto 5 > Idem

Foto 6 > Aspecto da Missa Solene

Foto 7 > Coro da Força Aérea

Foto 8 > O nosso camarada José Martins em companhia do senhor Embaixador da Guiné-Bissau. Um pouco afastada, Maria Manuela, a inseparável companheira do Zé.

Foto 9 > Representação da Associação de Operações Especiais - Delegação de Lisboa, de que faz parte o nosso camarada Mário Fitas, também na imagem.

Foto 10 > José Martins e esposa, conversam com o nosso camarada Pára-quedista Vitor Tavares

Fotos: © Mário Fitas (2008). Direitos reservados.


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Nota de CV:

Vd. primeiro poste da série de 2 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3105: Os funerais dos nossos camaradas Pára-quedistas (1): Artigo do DN (Afonso Sousa)

sábado, 2 de agosto de 2008

Guiné 63/74 - P3107: Convívios (78): BCAÇs 237 e 599, Pel Mort 912, Pel Caç 955 e Pel AM Daimler 807, dia 6 de Setembro de 2008, Espinho (S. Oliveira)

1. Em 29 de Julho de 2008, em troca de correspondência entre o nosso camarada Santos Oliveira, (ex-2.º Sarg Mil Armas Pesadas Inf.ª, Como, Cufar e Tite, 1964/66) e Joaquim Dias que procurava companheiros de seu pai, constava este convite que passamos a divulgar.

Almoço/Convívio dos BCAÇ 237 e 599, Pelotão Morteiros 912, Pel Caç 955 e Pel AM Daimler 807, a realizar no dia 6 de Setembro de 2008 em S. Martinho de Anta, Espinho.

Espinho, 24 de Julho de 2008

A exemplo dos anos anteriores, mais uma vez iremos realizar o nosso Almoço Convívio, comemorando o 43.º aniversário da nossa chegada da Guiné.

Como até à presente data, ninguém de disponibilizou para o fazer, decidi avançar mais uma vez, para que não se disperse o que custou a juntar. De acordo com algumas informações recolhidas, chegamos à conclusão que a data mais própria seria o primeiro sábado de Setembro pelo que passamos a apresentar o seguinte programa:

Dia 6 de Setembro pelas 10,30h, concentração no Largo do Souto, junto à Igreja Matriz de S. Martinho de Anta, onde estaremos até cerca das 12,30h. De seguida partiremos para o Almoço que será a escassas centenas de metros, nas instalações do Campo de Tiro do Club de Caçadores da Costa Verde e próximo da Nave Desportiva Polivalente.

A ementa será dentro do habitual com uma ligeira alteração que penso para melhor.

O preço será de 30€.

Agradeço a confirmação das presenças até 25/08 para:

- Agostinho Rocha Carneiro
Travessa do Pelourinho, 28
Anta
4500-114 Espinho
Telem 914 421 071
ou
Manuel Paiva
telefones: 938 526 228 e 220 808 693

Se és verdadeiramente caçador e se estás com a pontaria desafinada, traz a arma, não hesites que terás ocasião de a afinar e com esta idade e a pontaria afinada, não há caça que nos escape.

Espero ser merecedor da tua presença, vem, conto contigo cá, estarei para te receber e fazer o possível para que Espinho te entre no coração.

Com um abraço e um até sempre, fica a aguardar as vossas confirmações o companheiro e amigo de armas

Agostinho da Rocha Carneiro

A vida passa depressa
Todos nós bem o sabemos
Lutar para a prolongar
É um dever que todos temos

Guiné 63/74 - P3106: O Nosso Livro de Visitas (22): Umaro Djau, Jornalista da CNN


1. No dia 13 de Fevereiro de 2007, o nosso Editor Luís Graça, recebia no seu endereço pessoal esta mensagem de um nosso leitor e amigo, natural da Guiné-Bissau:

Com os meus melhores cumprimentos,

Chamo-me Umaro Djau e fiquei deveras surprendido com o seu maravilhoso blog.
Sou guineense e Jornalista. Resido nos EUA há mais de 11 anos.
Trabalho para a cadeia da TV mundial, CNN.
Gostaria de poder corresponder consigo.

Alguns dos meus projectos são:
www.gumbe.com
www.afrowave.com

abraços e até logo.
Umaro Djau



2. No dia 31 de Julho de 2008, foi remetida a este nosso novo amigo a seguinte resposta:

Caro Umaro Djau
Antes de tudo, quero, em nome do editor Luís Graça, apresentar o nosso pedido de desculpas pelo atraso, indesculpável, em dar resposta à sua amável mensagem.

O endereço pessoal do Luís está normalmente sobrecarregado e o melhor será contactar-nos através do endereço do blogue luisgracaecamaradasdaguine@gmail.com, porque esta caixa de correio está acessível aos três editores, Luís, Briote e Carlos, havendo a possibilidade de qualquer um dar resposta atempada.

Desculpa apresentada e espero que aceite.

Como o Luís foi para merecidas férias, deixou-me a incumbência de o contactar no sentido de o convidar a fazer parte da Tertúlia do nosso Blogue, como amigo da Guiné-Bissau, no caso vertente até como natural deste país nosso irmão.

Se quiser, pode mandar uma fotografia sua, tipo passe, para a nossa fotogaleria, e contar-nos algo mais sobre si. Por exemplo, qual a sua terra natal, a sua idade, onde estudou, etc.
Afinal, coisas que os amigos gostam de saber uns dos outros.

Sabemos que está no EUA há mais de dez anos e que exerce a profissão de Jornalista, trabalhando para a CNN.
Já fui visitar os sites que indicou e verifiquei que eles se prestam a divulgar a música guineense. Vou dar a devida divulgação deles no nosso Blogue.

Ficamos a aguardar as suas notícias e principalmente a confirmação de que não ficou magoado com a demora desta resposta.

Desde já receba cordias cumprimentos dos editores Luís Graça, Virgínio Briote e Carlos Vinhal, assim como de toda a tertúlia do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.

Carlos Vinhal
Co-Editor do Blogue

Guiné 63/74 - P3105: Os funerais dos nossos camaradas Pára-quedistas (1): Artigo do DN (Afonso Sousa)

1. O nosso camarada Afonso Sousa (ex-Fur Mil Trms CART 2412 (Bigene, Binta, Guidage e Barro, 1968/70), em mensagem do dia 27 de Julho de 2008, enviou-nos um artigo escrito pelo Jornalista Francisco Mangas, publicado no DN do dia 26.

Na sua mensagem, o nosso camarada escreveu apenas isto:

Zona da Guiné onde, 4 anos antes, passei meio ano do percurso na guerra. Emociona-me este relato. Uma lágrima não pode ser contida.

Restos mortais dos nossos camaradas Pára-quedistas depositados na Igreja da Força Aérea em Lisboa

Foto: © Mário Fitas (2008). Direitos reservados.



2. Com a devida vénia apesentamos o referido artigo





Os heróis que ficaram para trás !

Trinta e cinco anos depois de terem caído na Guerra Colonial, no Norte da Guiné, os restos mortais de três pára-quedistas são hoje sepultados, em Vila do Conde, Cantanhede e Castro Verde. As famílias encerram, assim, um longo luto. É uma história de silêncio e esquecimento, de três jovens mortos em combate, inumados na mata, porque os corpos entraram em decomposição e não podiam ser retirados para Bissau, de uma tropa especial que tem por princípio não deixar ninguém para trás. A Liga dos Combatentes teme que esteja a abrir uma caixa "que nunca mais conseguimos fechar".
Num azulejo, sobre a porta de entrada, a aparição de Fátima aos pastorinhos. A bicicleta preta, pedaleira remota , encostada à parede, que termina num canteiro de margaridas e sardinheiras ressentidas do calor de Julho. É a casa de Lurdes Jesus Faim e Avelino Lourenço, na aldeia de Fornos, Cantanhede, um casal de velhos tocado por infinda tristeza. Hoje, pela tarde, sepultam o filho, que perderam na Guerra Colonial, e talvez a dor.

Um filho ou um anjo? "Era um anjo, por isso não me pertencia." Fala a mãe, comovida, a rever o jovem fardado, no preto e branco das fotos. José Jesus Lourenço, soldado pára-quedista, foi morto em combate na tarde de 23 de Maio de 1973, numa emboscada na zona de Guidaje, no Norte da Guiné. Tinha 19 anos e um secreta paixão a arder no coração. Dois outros camaradas tombaram no mesmo ataque.

Acossada pelos guerrilheiros do Partido Africano para a Independência de Guiné e Cabo verde (do PAIGC), que também controlavam o espaço aéreo, a Companhia de Caçadores Pára-quedistas 121 - porque "ninguém fica para trás" - rompeu com os seus mortos até ao aquartelamento de Guidaje, flagelado há meses pelo inimigo. A aviação, temendo os mísseis, fica em terra, longe do perigo. Os corpos "começaram a entrar em decomposição, cheiravam mal". Foram inumados na mata, no dia 25 de Maio, junto à cerca de arame farpado. E aí permaneceram, com uma mortalha de silêncio e ervas daninhas, trinta e cinco longos anos.

No lugar de Fornos, quarta-feira passada, a primeira pessoa que encontrámos, um homem de bicicleta, antes de nos indicar a casa dos pais do pára-quedista Lourenço, contou-nos, sem esconder o orgulho, outra coisa: "Fui ao juramento de bandeira dele, a Tancos." É da família? "Não, ele era um rapaz bom." Retoma a viagem, a pedalar lentamente como se desse modo iludisse o sol do meio-dia, canto das cigarras e alguma tristeza.

Na base dos pára-quedistas, em Tancos, soubemos depois, desaguou em festa uma pequena multidão, gente de Fornos e de aldeias vizinhas, a testemunhar o gesto de amor à pátria do jovem José Jesus Lourenço. Foi um autocarro cheio. "Parámos em Fátima, dormimos em Tomar e no dia seguinte, pela manhã, estávamos em Tancos". Ele "era o rapaz mais bonito do lugar", lembra Lurdes Faim, a mãe.

Cedo começa a "ganhar a vida", logo após terminar a instrução primária. "A trabalhar no duro", recorda Avelino Lourenço, o pai. Completa, em breve, 81 anos, mas continua a ir a Cantanhede (a 10 km de Fornos) receber a reforma, na pedaleira preta que vimos encostada à parede, junto das margaridas e sardinheiras. "As minhas pernas são a bicicleta." Avelino foi lavrador, "tinha gado" e assim tocava a vida.

José, o seu segundo filho, " cozia cal, enfornava os fornos". Trabalho duro, não há dúvida, para um adolescente. José apaixonou-se por Maria ("um namorico", diz a mãe), mas no horizonte irrompia a tropa, o trágico ir à guerra que tolheu, atormentou, roubou a alegria aos jovens portugueses nos anos sessenta do século passado. O enfornador de cal alista-se como voluntário nos pára-quedistas: tem pressa de ir para voltar depressa e cumprir a paixão.

No dia da partida rumo à distante Guiné, veio muita gente despedir-se do militar à casa dos pais. "Ele levava a mãe no coração, quando saiu à porta pressenti que era o funeral, estava-me a despedir dele para sempre." Lurdes Faim contém as lágrimas, trinta e cinco anos de luto incompleto dá-lhe essa derradeira força.

Hoje, sábado, 26 de Julho de 2008, os pais, as três irmãs e o irmão, sobrinhos e muitos amigos voltam a encher um autocarro. Vão a Lisboa, e voltam com os restos mortais do José."A vinda dele dá-me paz", confidencia a mãe. "Tenho dito às pessoas: cantem e batam palmas quando o meu filhinho chegar à nossa terra. Por favor, não me abracem, não chorem nem me dêem os sentimentos."

A dor, o choque mais duro, conta Lurdes Faim, 77 anos, sentiu-a faz muito tempo. E, por certo, jamais esquecerá esse "28 de Maio" de 1973: pároco de Fornos a entrar-lhe em casa, também destroçado, com a notícia. Foi um choque para a família e para o povo da terra e aldeia vizinha: morria o destemido herói, tão novo ainda. "Era um anjo, não podia ser meu", insiste a mãe, a sublimar a perda.

"Nunca se viu uma coisa tão triste." Agora é Avelino, que se manteve em comovido silêncio a ouvir a mulher, a "recordar a dor". Maria, a namorada vestiu o luto, e todas as raparigas da aldeia, num sentido gesto solidário, "botaram lenço preto" durante largos dias.

No dia 25 de Junho de 1973, Lurdes e Avelino são informados de que o filho já estava inumado, algures na densa mata guineense, e só passado sete anos "poderiam mandar os restos mortais". Mentiram. Afinal, deixaram para trás ("ninguém fica para trás" é o lema pára-quedistas), em terra estranha, José e os outros dois camaradas da companhia mortos na emboscada de 23 de Maio: Manuel da Silva Peixoto, 22 anos, de Gião, Vila do Conde, e António Neves Vitoriano, 21 anos, natural de Castro Verde.

"Esperámos e desesperámos, a coisa estava de modos a apagar-se", refere Avelino Lourenço. Há dois anos, perdeu a esperança de dar sepultura ao filho, que passou apenas três meses na guerra. José seguia na frente da coluna, atrás de Manuel Peixoto, o primeiro a tombar, atingido por várias balas. Pouco depois de regressar da ex-colónia portuguesa, um camarada veio a Fornos contar à família o que se passou na emboscada, preparada pelas forças de libertação da Guiné. Peixoto resistiu e pediu socorro: "Acode-me, Lourenço!" Este rompeu, porque ninguém pode fica para trás, e é flagelado pelo fogo inimigo. "Morreu para salvar o outro", diz a Lurdes Faim. E lembra as últimas palavras do filho, que o companheiro lhe trouxe, da longínqua mata africana, como se fosse um tesouro: "Ai a minha mãe! Ai a minha namorada!".

A família de Manuel Peixoto, que não resistiu aos ferimentos, também não contava com o regresso das ossadas desta pára-quedista. Gostava de boxe, aprendiz de carpinteiro antes de partir para a Guiné. A mãe não assistirá hoje o funeral, no cemitério de Gião, Vila do Conde, no mesmo dia da romaria da terra, com Marco Paulo como cabeça de cartaz. A mãe de Peixoto morreu em 1996; o pai emigrou para o Brasil, tinha o filho poucos meses, não mais voltou.

Resta um irmão, uma irmã e alguns sobrinhos, que esperam hoje à tarde os restos mortais do militar. "Logicamente, o corpo devia ter vindo logo na hora", refere António Peixoto, que soube da morte do irmão em França, onde está emigrado há quase três décadas. A família não irá a Lisboa para, depois, acompanhar os restos mortais até Vila do Conde.

Maria Alice Carvalho é a guardiã das memórias de Manuel Peixoto, seu cunhado. A memória repartida por dezenas de fotografias . No verso de uma das fotos, que mostra vários companheiros no interior de uma aeronave, o pára-quedista escreveu o seguinte: "Dentro do avião quando íamos para o quartel do exército que está perto da fronteira. Uns riem-se e outros pensam no que podia acontecer perante as operações, mas correu muito bem só tivemos um morto. Pelo contrários, os turras."

A legenda termina assim, sem se saber o número de "turras" mortos nesse combates. A baixa de um militar do lado dos pára-quedistas, segundo soldado Peixoto, nem era assim tão mau. Isto prova o sufoco que as tropas portuguesas sofreram na zona de Guidaje, junto à fronteira do Senegal, nos últimos anos da Guerra Colonial. Peixoto, Lourenço e Vitoriano morrem na operação das forças especiais portuguesas destinada a furar o cerco que os guerrilheiros do PAIGC faziam ao aquartelamento de Guidaje.

Anacleto Costa pertenceu à companhia de Peixoto, não esteve, no entanto, envolvido na missão que vitimou os seus três camaradas. Participou, contudo, noutras situações de conflito ao lado do jovem vilacondense. "Era um homem destemido, uma verdadeira máquina de guerra: eu ouvia um tiro e escondia atrás das árvores, ele não, ele rompia para o inimigo". O irmão confirma, "já aqui era valente, faz parte da família".

Conhecida a notícia da morte, os familiares escreveram algumas cartas ao general António de Spínola - na altura comandante das forças portuguesas na colónia da Guiné -, sem resposta. O silêncio, sempre o silêncio a cobrir os jovens pára-quedistas, sepultados à pressa, num cemitério improvisado.

"Companheiros meus", lembra Anacleto Costa, "queriam ir buscar os seus mortos" a Guidaje. "Os graduados não admitiram, o Spínola também não autorizou." Um anos depois do falecimento, por altura do 25 de Abril, a família recebeu um convite para ir a Lisboa "receber uma medalha de honra" pelos serviços de soldado Peixoto prestados à Pátria.

Saíram bem cedo, regressam de madrugada com as mãos vazias. "Esperámos até à uma da manhã e não recebemos medalha nenhuma. A cerimónia transformou-se num grande comício, viemos embora sem nada", recorda Maria Alice Carvalho.

Os três pára-quedistas da Companhia 121 regressam hoje às suas terras, onde serão sepultados com dignidade, trinta e cinco anos depois de tombarem aos serviço de Portugal. As famílias, que foram ouvidas e autorizaram a exumação e trasladação das ossadas, podem agora, enfim, encerrar o luto. "Agora já posso partir, o regresso do meu filho dá-me serenidade." Diz Avelino Lourenço, a despedir-se de nós à porta da sua casa, na aldeia de Fornos, Cantanhede. Na fachada, o azulejo com a aparição de Fátima; no interior da habitação,vimos mais imagens de Nossa Senhora e os retratos dos filhos, netos e bisnetos.

As cigarras, indiferentes à melancolia do velho, cantam, cantam por dentro da tarde quente.

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Guiné 63/74 - P3104: Álbum fotográfico do Joaquim Guimarães (2): Saltinho



Joaquim Guimarães
Ex-Soldado
CCAÇ 3490/BCAÇ 3872
Saltinho
1971/74


1. Vamos dar continuidade ao álbum fotográfico do nosso camarada Joaquim Guimarães, que nos enviou algumas fotografias do Saltinho (1).


Foto 1 > Vista do Saltinho

Foto 2 > Ponte Nova do Saltinho

Foto 3 > Cansamba > 1974 > O Augusto e eu

Foto 4 > Jardim da Escola

Foto 5 > Entrada do Saltinho

Foto 6 > Entrada Principal

Foto 7 > Cozinha do Saltinho

Foto 8 > Comando

Foto 9 > As caminhadas do Saltinho

Fotos (e legendas): © Joaquim Guimarães (2008). Direitos reservados.

OBS: - Peço desculpa ao nosso camarada Joaquim Guimarães por ter transformado algumas das suas fotos a cores em preto e branco, mas a qualidade das mesmas não permitia uma boa edição.

(Continua)

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Nota de CV

(1) - Vd. poste de 28 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3097: Álbum fotográfico do Joaquim Guimarães (1): Saltinho