1. Neste episódio de Gavetas da Memória, Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676,
Pirada, Bajocunda e
Paúnca, 1964/66, conta-nos uma bonita história de amor.
Os amores do soldado Valença
Chamava-se Luís António Rodrigues, mas era mais conhecido por
Valença, por ser natural daquela vila nortenha, onde ajudava o pai numa bomba de abastecimento de gasolina. Quando atingiu a idade do serviço militar, deram-lhe uma farda especial camuflada, uma espingarda metralhadora e enfiaram-no num navio que mais lembrava um barco de negreiros navegando agora em sentido contrário. Em vez de sair de África era para lá que se dirigia.
Primeiro foram os patrulhamentos, depois as emboscadas, as operações de vários dias, debaixo de um sol inclemente, chafurdando em pântanos tenebrosos, comido por hordas de mosquitos insaciáveis que suportava com uma incrível paciência. A tudo resistia, taciturno e a tudo ia sobrevivendo.
Nos poucos momentos livres, sentado à porta da caserna, distraía-se brincando com uma pequena cadelita de pêlo amarelo que um dia lhe apareceu por ali e logo correu a lamber-lhe as mãos.
Sempre tinha tido jeito para lidar com os animais. Por onde passava encaminhavam-se logo para ele como se atendessem ao chamado do dono. Era uma atracção que ele tinha, diziam os colegas, que até se serviam disso para fazerem chacota.
- Eh, pá, contenta-te com a cadela, pois com as mulheres és capaz de não teres tanta sorte!
O
Valença não dizia nada, mas entre dentes lá ia murmurando:
- Cambada de burros! Não têm respeito por nada!
Até que um belo dia, as canseiras pelos arredores de Bissau terminaram e a Companhia foi enviada para o interior da Guiné encarregada de outras missões.
Sem abandonar a pequenina cadela, a
Dourada, o nosso
Valença lá chegou às novas paragens, feliz como quem vai emigrando para o Paraíso.
Quando se achou por fim livre entre o céu e as sombras profundas dos grandes mangueiros, corria pela pequena pista de aviação, perseguido pela cadela, dando largas à sua ânsia de liberdade.
Brincavam como duas crianças.
Os dias foram passando, veio a monotonia dos largos meses sempre iguais e um certo dia a
Dourada desapareceu.
Logo ao alvorecer, o soldado
Valença estranhou ela não estar debaixo da cama, onde sempre ficava. Veio cá fora, deu uma olhadela pela parada, pela cozinha, inspeccionou até os abrigos das sentinelas um por um, e nem rasto da
Dourada. Assobiou várias vezes por ela, mas nada.
Ninguém a tinha visto e apesar de todos se disponibilizarem para a procurar, indo mesmo com o Unimog até à bolanha, onde as raparigas da aldeia lavavam a roupa, nada, nem sombras da cadela.
Durante vários dias, mas cada vez mais desanimado, o
Valença não descansou. Todos os dias vagueava pelos arredores do aquartelamento sempre com a esperança que, de um momento para o outro, se ouvissem os latidos alegres da sua amiga. Mas nada.
E os dias iam passando, sempre cada vez mais iguais, e nada de novidades da
Dourada. Alguém, ou alguma coisa, a tinha feito desaparecer de vez, com certeza.
Veio a época das chuvas e os soldados passavam o tempo abrigados debaixo do telheiro da caserna, no pequeno bar da cantina a jogar as cartas ou num pequeno casebre mesmo em frente do arame farpado que rodeava o quartel. Aí, um mestiço, tinha um estabelecimento tipo
super mercado do mato, onde havia sempre tudo o que se precisava para uma emergência ou para o mais trivial, um arame, uma corda, uma lata de petróleo ou um Petromax, arroz, pneus de bicicleta, uma aspirina, mas principalmente, e também, a aguardente de cana, sofregamente bebericada pelos bêbados do costume, determinados em esquecer ali aquela pasmaceira, aquela opressão de um sol que desde que nascia até que se deitava, pesava como chumbo derretido.
Atrás do balcão, duas adolescentes, lindas e misteriosas como só as cabo-verdianas sabem ser, a Ermelinda e a Argentina, que com o tio vieram para aquele fim do mundo, quando ficaram sós, após a morte da mãe em Bissau, vítima de tuberculose. Restou-lhes então aquele tio, irmão da mãe, que logo as tinha ido visitar assim que soubera do óbito. No regresso, não hesitou e trouxe-as também com ele, pois até estava a precisar de uma ajuda lá na venda.
As meninas, habituadas já a todo o tipo de trabalho duro nem estranharam, mas conservaram aquele ar de desenvoltura da cidade grande, do falar bonito, sem espantos nem gritos, como gente mais instruída.
Eram, sem dúvida, o principal e o mais interessante atractivo da venda do velho
Passarinhas que desde logo soube tirar rendoso proveito dessa novidade, mantendo-as sempre em bom recato, como um valioso tesouro.
O pobre do
Valença, inevitavelmente, não tardou a que lá fosse cair. Quando o serviço no quartel terminava, era ali que o podiam encontrar, sentado cá fora, debaixo do alpendre, bebericando uma cerveja, com os olhos postos na estrada, sempre na esperança de ver surgir a
Dourada, a companhia que tinha lhe sido roubada, por algum malandro, dizia ele.
Aos poucos e poucos a Ermelinda, a mais velha das duas irmãs, habituou-se à sua presença e quando ele não aparecia, era ela que vinha cá fora, olhar para os barracões do aquartelamento. E ajeitando o cabelo, soltava de vez em quando um profundo suspiro.
Mas nos dias em que ele aparecia, corria logo a servir-lhe uma cerveja bem gelada. O
Valença de inicio, não lhe ligava grande importância, mas aos poucos e poucos, foi começando a reparar e a demorar mais o olhar naquela negrinha que lhe sorria sempre. Passados tempos também ele lhe correspondia, agradecido. E de repente começaram a trocar confidências, perguntas sobre a família, a terra natal, o futuro. Como quase um namoro, sem que ambos dessem por isso.
O
Tio Passarinhas, de princípio não gostou nada da brincadeira. Dizia que a sobrinha se estava a enredar de mais com aquele
branco portuga, que isso só poderia trazer
manga de chatice. Mas com o passar do tempo e perante a mansidão do
Valença e da sua conversa mole, até ele começou a ficar enredado na situação. Apesar de, lá no fundo, não acreditar muito no futuro daquele romance.
Agora era o
Valença que lhe dava sugestões para melhorar o negócio, ajudando em tudo que era preciso, e a coisa até resultava!
E não foi ele também que, num belo dia, começou a dizer que havia de se juntar com a Ermelinda, casar mesmo com ela, abandonar a tropa, não voltar para a terra e ficar por ali a viver com eles?
Não era mesmo uma coisa de maluco? Só podia ser!
Mas o
Valença insistia, contando como é que iria pedir autorização ao Capitão para no fim da comissão não regressar a Portugal e ficar a viver na Guiné para sempre. Que não tinha para onde ir (o pai, entretanto, tinha falecido de repente), agora era aqui a sua nova terra. Que aqui é que ele se sentia bem. E não arredava pé, convencendo-se cada vez mais a si, e aos que o ouviam.
O Alferes, do Pelotão do
Valença, nem queria acreditar quando lhe foram contar o que ele andava a tramar. Ainda tentou ter uma conversa de homem para homem, à porta da taberna, mas perante o olhar apaixonado dos futuros noivos, nem teve palavras.
Finalmente como sempre acontece, chegou o momento fatal. Enquanto os colegas davam saltos de alegria e cantavam abraçados, bêbados de felicidade pelo bendito dia do regresso ter enfim aparecido, o nosso
Valença, no escuro do casebre do
Tio Passarinhas, estreitava contra si a chorosa Ermelinda, prometendo-lhe que logo que tivesse tratado de todos os papéis para deixar a tropa, voltaria a correr para os braços da sua amada.
No alvorecer do dia fantástico, uma desconjuntada coluna de camiões carregados como se fossem carroças de mudanças, abandonou a aldeia, deixando para trás tantos sonhos tantos medos, tantas bebedeiras e tantas promessas deitadas ao vento, tudo condenado a ficar coberto pela poeira vermelha daquela terra de que agora já se iam esquecendo. A pouco e pouco foram-se deixando de ouvir os gritos doidos dos soldados que nem para trás quiseram olhar quando desapareceram na curva da bolanha.
E quando a coluna de camiões chegou finalmente a Bissau, foi um lufa-lufa para descarregar as bagagens para à velha caserna que já os tinha acolhido no primeiro dia. Ali ficaram alojados até ao embarque, de novo no mesmo navio negreiro, transformado agora pela mirífica imaginação de todos, em paquete de luxo. Ao fim da tarde desse mesmo dia passearam pela Baixa, com um sorriso estampado no rosto, maior que o mundo, exibindo a fitinha verde e rubra que o Coronel do Batalhão numa arremedo de homenagem para heróicos combatentes (?), lhes tinha espetado no peito. Era a medalha dos feitos cometidos na guerra, o reconhecimento pela dádiva de dois anos da sua juventude, do passado que passou, que nem era bom lembrar. Agora ninguém mais os segurava!
Mas inesperadamente, o nosso soldado
Valença debatia-se num dilema. Largar tudo e todos, fugir e voltar para trás, ou deixar-se levar com a carneirada, até ao lúgubre quartel que os aguardava lá na Metrópole, onde iriam depositar tudo o que traziam, os farrapos das fardas, as velhas armas, as botas rotas, as mantas, os colchões, os tachos e as panelas ainda com restos da picante gordura africana?
Todos lhe diziam que era isso mesmo que deveria fazer. Que esquecesse a companhia da pretinha que, por muito apetitosa que fosse, não era modo de vida para ele. Era à terra natal, à velha Metrópole que pertencia e estava tudo dito.
Mas o soldado
Valença revolvia-se na cama, incapaz de se esquecer do sorriso de Ermelinda, daquele jeito tímido de lhe afagar o ombro quando trazia a cerveja gelada.
Os longos fins de tarde, contemplando juntos a silenciosa agonia do sol, que caía lá para trás dos grandes mangueiros da velha aldeia.
E tanto batalhou, tanto procurou e tanto massacrou a cabeça do Primeiro-Sargento da Secretaria que este, só para se ver livre dele, tratou de lhe fazer a vontade.
Ali mesmo se procedeu à entrega do material que o estado lhe tinha emprestado, quando o mandara para a guerra, e num abrir e fechar de olhos ficou livre como um passarinho.
Vestido com a pouca roupa civil que ainda possuía, com resto das suas coisas metida numa decrépita mala de cartão e acariciando no bolso uma meia dúzia de notas em dinheiro guineense, correu, ligeiro como um gamo, fugindo pela porta de armas em direcção à cidade, para procurar um transporte qualquer que o levasse de volta ao Paraíso, ao regaço da sua Ermelinda que nunca deveria ter abandonado.
Lá longe, no interior desconhecido de uma África ignorada, num mundo perdido, era aí que morava o destino que desejava e que, se calhar, lhe fora por isso traçado.
Foi o culminar da uma existência, desaparecendo como um rio que, sinuosamente, percorre as terras rasas em busca de um final feliz, numa reunião de amor com o mar oceano das nossas lágrimas.
Nunca mais se soube dele.
Viana, 23 Junho de 2009
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 29 de Agosto de 2009 >
Guiné 63/74 - P4879: Gavetas da Memória (Carlos Geraldes) (5): A CART 676 chega a Pirada