
Nos idos de Março de 1970 desembarquei em Bissau, tendo ido no navio misto de carga e passageiros "Alfredo da Silva", propriedade da CUF que à época era a empresa monopolista do comércio e da indústria da Guiné e Cabo Verde.
Apresentei-me no Quartel General e entretando a aguardar destino e transporte terei ficado talvez oito dias em Bissau.
Durante esses dias alojaram-me numa suite abarracada, com 60 ou 80 camas, sobrepostas, (penso que grupos de duas ou três), onde estariam mais 20 ou 30 guerreiros lusitanos, a que os mais velhos chamavam "Biafra"
"Alfredo da Silva" - Imagem: Navios no Sapo, com a devida vénia
Sempre achei que "Biafra#" era um nome inapropriado, porque essa palavra, não vale a pena recordar a sua história agora, porque é do conhecimento geral, evocava muita fome, miséria extrema e morte. No nosso caso somente a qualidade das instalações estava em causa.
Conheci algumas casernas tanto por cá como na Guiné, aquela era a pior. Deve ter sido algum tenente-coronel militarista, que ainda os havia nesse tempo, que por gostar pouco dos milicianos, a mandou construir assim tão miserável. No filme "A Vida é Bela" há uma semelhante, num campo de concentração.
Era destinada aos alferes em trânsito, vindos de Portugal, em rendição individual, e a outros que estando no mato tinham que se deslocar a Bissau por qualquer motivo. Tenho a certeza que no interior da Guiné havia muitos camaradas instalados em tabancas em piores condições, porém nos quartéis onde eu estive as casernas eram melhores.
Messe dos Oficiais em Bissau
Fotos: © António Teixeira (2011). Todos os direitos reservados
Ou porque o calor era muito ou porque os "velhos", guerreiros experientes na arte da guerra, queriam informar os "periquitos" (éramos 3 ou quatro) sobre os horrores que os esperavam, somente já tarde, depois de muita brincadeira e algazarra, se conseguia dormir.
Dentre todos destacava-se um mais cómico e folgazão que era assim a modos que chefe de orquestra da barulheira. Uma noite descobriu numa cama de um alferes que tinha regressado ao mato aerogramas da namorada dele. Eram muitos, ela devia escrever-lhe todos os dias.
Acto continuo pôs-se a lê-los, alto e bom som, perante senão o aplauso pelo menos o agrado quase geral. Por mim sem aprovar propriamente o acto, calei-me pois um periquito não tinha direito a opinião naquela distinta assembleia. Os aerogramas eram muito inocentes, enfim uma moça a contar o seu dia a dia ao namorado, pouco romântica, nada sensual, nada erótica. Era uma jovem à moda dos anos sessenta no Portugal do Estado Novo, tímida, reservada e recatada. A libertação sexual só se generaliza em Portugal com o 25 de Abril. Lembro-me que algum tempo antes de partir estive numa aldeia próxima da minha, cerca de 2 horas a falar com a professora primária da terra, ela debruçada à janela e eu de pé na rua. Menina bem comportada. Sei que passado um ano ou dois casou com um médico muito conceituado e rico da vila.
No geral as raparigas do nosso tempo, exceptuando algumas da classe alta e outras já sintonizadas com a revolução cultural e sexual que soprava da Europa, não eram muito diferentes em relação à virgindade, das bajudas fulas ou mandingas que fomos encontrar na Guiné. O tabu existia na religião católica, como na islâmica. O alfero Cabral esse "grande feiticeiro e médico" essa madre Teresa de Calcutá do chão manjaco, se quisesse abrir consultório nas nossas tabancas não lhe faltaria trabalho. Preferiu a Guiné por amor às bajudas enquanto as nossas, as mais endinheiradas, segundo constava na altura, iam a Espanha, a clínicas especializadas, fazer uma estética invisível, que iria esconder horas de calor e entusiasmo clandestino compartilhado com amigos ou namorados. As que não tinham recursos ou liberdade para se deslocarem, sofreriam, por vezes por muitos anos as consequências desse "pecado".
Muitos meses depois voltei a Bissau a uma consulta médica que o Pedrosa, bom médico e bom camarada (era do Pombal) me marcou. O alojamento continuava a ser o mesmo e o ambiente um pouco festivo, um pouco louco como sempre.
O estado de espírito mais comum a todos era de não valorizar muito os azares e desgraças que iam acontecendo nas zonas onde estavam aquartelados e a dar mais realce a aspectos cómicos que também os havia. Havia também sempre um ou outro que falava da guerra, duma forma um pouco jornalística, para não perturbar o ambiente que se queria descontraído.
Cada um, no seu intimo, devia questionar, o que fazia, naquele lugar do mundo, tão diferente e tão distante da terra onde tinha nascido. A África mais selvagem, misteriosa, com aquele cheiro forte difícil de definir, mas que se entranha no corpo e na alma de quem lá vive, sempre enfeitiçou os europeus. As moiras encantadas de que falavam as histórias das nossas avós vieram da África do norte para a Península Ibérica
Um encanto próprio a que não seria alheio o estado de guerra em que se vivia. A guerra desperta no homem instintos primitivos, já que o seu passado ancestral nunca foi de paz, mas de guerra, mais ou menos violenta conforme as armas que foi inventando.
Porque é que o desejo de retaliação, a desforra, a vingança, empolgam tanto os homens?
Porque ficam tão embriagados com o tinir das espadas, o som das metralhadoras, o troar dos canhões?
Quando a raiva e uma mistura estranha, talvez adrenalina, nos aquecem a cabeça, estamos a deixar de ser racionais. e modernos e a regressar aos primórdios da humanidade, quando Caim matou Abel.
Diferente de quase todos, conheci um soldado já com 4 anos de Guiné, sem vir alguma vez a Portugal, foi talvez o jovem mais sorridente e feliz que lá conheci.
Dentre todos destacava-se um mais cómico e folgazão que era assim a modos que chefe de orquestra da barulheira. Uma noite descobriu numa cama de um alferes que tinha regressado ao mato aerogramas da namorada dele. Eram muitos, ela devia escrever-lhe todos os dias.
Acto continuo pôs-se a lê-los, alto e bom som, perante senão o aplauso pelo menos o agrado quase geral. Por mim sem aprovar propriamente o acto, calei-me pois um periquito não tinha direito a opinião naquela distinta assembleia. Os aerogramas eram muito inocentes, enfim uma moça a contar o seu dia a dia ao namorado, pouco romântica, nada sensual, nada erótica. Era uma jovem à moda dos anos sessenta no Portugal do Estado Novo, tímida, reservada e recatada. A libertação sexual só se generaliza em Portugal com o 25 de Abril. Lembro-me que algum tempo antes de partir estive numa aldeia próxima da minha, cerca de 2 horas a falar com a professora primária da terra, ela debruçada à janela e eu de pé na rua. Menina bem comportada. Sei que passado um ano ou dois casou com um médico muito conceituado e rico da vila.
No geral as raparigas do nosso tempo, exceptuando algumas da classe alta e outras já sintonizadas com a revolução cultural e sexual que soprava da Europa, não eram muito diferentes em relação à virgindade, das bajudas fulas ou mandingas que fomos encontrar na Guiné. O tabu existia na religião católica, como na islâmica. O alfero Cabral esse "grande feiticeiro e médico" essa madre Teresa de Calcutá do chão manjaco, se quisesse abrir consultório nas nossas tabancas não lhe faltaria trabalho. Preferiu a Guiné por amor às bajudas enquanto as nossas, as mais endinheiradas, segundo constava na altura, iam a Espanha, a clínicas especializadas, fazer uma estética invisível, que iria esconder horas de calor e entusiasmo clandestino compartilhado com amigos ou namorados. As que não tinham recursos ou liberdade para se deslocarem, sofreriam, por vezes por muitos anos as consequências desse "pecado".
Muitos meses depois voltei a Bissau a uma consulta médica que o Pedrosa, bom médico e bom camarada (era do Pombal) me marcou. O alojamento continuava a ser o mesmo e o ambiente um pouco festivo, um pouco louco como sempre.
O estado de espírito mais comum a todos era de não valorizar muito os azares e desgraças que iam acontecendo nas zonas onde estavam aquartelados e a dar mais realce a aspectos cómicos que também os havia. Havia também sempre um ou outro que falava da guerra, duma forma um pouco jornalística, para não perturbar o ambiente que se queria descontraído.
Cada um, no seu intimo, devia questionar, o que fazia, naquele lugar do mundo, tão diferente e tão distante da terra onde tinha nascido. A África mais selvagem, misteriosa, com aquele cheiro forte difícil de definir, mas que se entranha no corpo e na alma de quem lá vive, sempre enfeitiçou os europeus. As moiras encantadas de que falavam as histórias das nossas avós vieram da África do norte para a Península Ibérica
Um encanto próprio a que não seria alheio o estado de guerra em que se vivia. A guerra desperta no homem instintos primitivos, já que o seu passado ancestral nunca foi de paz, mas de guerra, mais ou menos violenta conforme as armas que foi inventando.
Porque é que o desejo de retaliação, a desforra, a vingança, empolgam tanto os homens?
Porque ficam tão embriagados com o tinir das espadas, o som das metralhadoras, o troar dos canhões?
Quando a raiva e uma mistura estranha, talvez adrenalina, nos aquecem a cabeça, estamos a deixar de ser racionais. e modernos e a regressar aos primórdios da humanidade, quando Caim matou Abel.
Diferente de quase todos, conheci um soldado já com 4 anos de Guiné, sem vir alguma vez a Portugal, foi talvez o jovem mais sorridente e feliz que lá conheci.
Mas essa é outra estória.
Um abraço a todos
Francisco Baptista
____________
Nota do editor
(*) Vd. poste de 16 DE OUTUBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12161: Blogoterapia (237): Falando de colunas de reabastecimento e de amizade (Francisco Baptista)
Último poste da série de 18 DE OUTUBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12167: Blogoterapia (237): Descansa em paz, Luís Faria (1948-2013), meu amigo, meu camarada (António Matos, ex-Alf Mil Minas e Armadilhas, CCAÇ 2790, Bula, 1970/72)
Um abraço a todos
Francisco Baptista
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Nota do editor
(*) Vd. poste de 16 DE OUTUBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12161: Blogoterapia (237): Falando de colunas de reabastecimento e de amizade (Francisco Baptista)
Último poste da série de 18 DE OUTUBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12167: Blogoterapia (237): Descansa em paz, Luís Faria (1948-2013), meu amigo, meu camarada (António Matos, ex-Alf Mil Minas e Armadilhas, CCAÇ 2790, Bula, 1970/72)