Paisagem duriense, Património da Humanidade
1. Em mensagem do dia 10 de Janeiro de 2018, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos um trabalho que consideramos uma homenagem ao outro nosso camarada Zé Manel - "O poeta da Régua", um transmontano dos quatro costados que na região duriense desbrava o xisto donde extrai o seu famoso Pedro Milanos.
Aqui deixamos a segunda parte desta Memória Boa do Zé Ferreira.
MEMÓRIAS BOAS DA MINHA GUERRA
47 - Zé Manel de Mampatá – Poeta da Régua (2)
A razão de um nome…
Porquê Pedro Milanos?
Por José Manuel Lopes
PEDRO MILANOS é o anagrama de ARMINDO LOPES, o autor do poema que estava nos contra rótulos. (Ambos os nomes têm as mesmas letras, só que por ordem diferente).
Por trás de um nome está sempre uma história e esta é a de um homem que viveu sempre apaixonado pela sua região. No fim da década cinquenta, passava na tv um programa sobre as 7 maravilhas do mundo…
Com cerca de 8 anos a grandeza de tais obras me deixaram encantado, particularmente as Pirâmides do Egipto e perguntei a meu pai:
- Qual das sete maravilhas é a de Portugal?
- Nenhuma.
- Pois, nós somos um País muito pobre!
- Achas!? Anda daí comigo.
Subimos ao mirante da casa, abriu a janela e disse.
- Que vês rapaz?
- Vejo montes.
- E nos montes o que é que há?
- Vinhas.
- E as vinhas são feitas de quê?
-Videiras e folhas.
- E essas videiras estão onde?
- Na terra.
- E a terra como está segura?
- Bem!?...não sei como.
- Pelos muros de pedra meu filho. Consegues contar todos os que vês?
- Não, eles são tantos.
- Agora imagina, quantos não haverá pelo Douro fora… Todos juntos, são uma obra muito maior que as Pirâmides do Egipto. Passam é despercebidos.
E foram passando, até que um dia em 2001, dez anos depois da morte de meu pai, recebo a notícia pela TV de que o Douro, as suas vinhas e os seus muros, passavam a ser Património da Humanidade.
Como ele teria adorado ter tido conhecimento disso!
Decidi dar o nome de Pedro Milanos ao primeiro vinho feito pelo meu filho Vasco, que é enólogo e neto de Armindo Lopes.
Um brinde de camaradas ex-Combatentes da Guiné, com Reserva Pedro Milanos, na Tabanca de Matosinhos.
************
(Outros poemas do Zé Manel)
Heróis que a história não narra
Por José Manuel Lopes
“Quinze dias após a nossa chegada à Guiné estávamos em Bolama a fazer o treino operacional (IAO) que duraria cerca de um mês, após o que partiríamos para o Sul da Guiné, Mampatá Forreá que seria o nosso lar nos próximos 2 anos.
Naquele dia, fazia-se fogo real com o dilagrama e foram escolhidos os soldados para utilizar esse tipo de arma. O Instrutor do Batalão, onde fomos anexados pontualmente, que era o Alferes Figueiredo, estava a ensinar o instruendo,o Soldado António Mata da minha Companhia.
Após o Mata ter retirado a cavilha da granada defensiva, a alavanca desta saltou imediatamente, pois a anilha de segurança tinha caído e ninguém se apercebeu disso. Instintivamente o Alferes deitou as mãos à granada que menos de 4 segundos depois lhe rebentou nas mãos. Ambos foram atingidos em cheio tendo morte imediata. Os seus corpos receberam a grande maioria dos estilhaços e protegeram todos que à volta assistiam ao lançamento do dilagrama. Houve alguns atingidos por um ou outro estilhaço, mas sem gravidade.
O Mata era casado. A mulher quando se despediu dele já estava grávida. Meses depois nasceu uma menina que nunca conheceu o Pai, nem por foto, pois a mãe casou novamente pouco tempo depois.
Trinta anos passados, fomos à procura daquela jovem emigrante em Paris. Tal como o vínhamos fazendo com outros camaradas mortos, colocando no túmulo uma placa com um poema dos meus, queríamos fazer uma homenagem ao António Mata, sepultado em Pinhel.
Fomos lá no verão, quando a mãe estava cá de férias. Porém, a filha ficara em Paris e sem qualquer interesse em vir a Portugal. E contacto telefónico com ela, a partir de Pinhel, ela manifestou-se sensibilizada com a nossa atitude mas confessou que não possuía qualquer ligação com o seu pai, de quem nem foto conhecia.
Viemos a saber que o padrasto não permitiu nunca essa ligação. Manifestámos-lhe a nossa intenção na homenagem e prontificámo-nos a pagar-lhe a viagem, se necessário.
Efectivamente, a filha do Mata acabou por aceder ao nosso desejo. Veio cá, assistiu à homenagem e viu colocarmos a placa de mármore, sobre a campa do seu pai, onde se destacava a sua foto de Combatente a encimar um poema.
Sensibilizada com a nossa atitude, recebemos a sua emocionante mensagem:
- “Nunca conheci meu pai, vosso camarada, mas hoje pelo menos, tive um pai em cada um devocês. Muito obrigado."
Presentes nessa homenagem estiveram cerca de 12 elementos dos Unidos de Mampatá (Cart 6250).
Gostava de vos falar
dos esquecidos
dos heróis que a história
não narra
que as viúvas choraram
mas já não recordam
daqueles
que nem tempo tiveram
para ter filhos
que os amassem
descendentes
que os lembrassem
daqueles que nunca
tiveram o dia do pai
vítimas de guerras
que não inventaram
em tempo que já lá vai
falar deles é prevenir
se bem que de nada
lhes valha
de guerras que possam vir
geradas pela ambição
dos
que nunca morrerão
num campo de batalha."
Assistência aos feridos
Puseste o pé em sítio errado
Por José Manuel Lopes
“Março de 1973. A construção da estrada alcatroada havia começado em Aldeia Formosa, 7 Km depois atravessava Mampatá e seguia na direcção da Fonte de Iroel, como uma gigantesca jibóia negra lá ia até Colibuia, seguindo paraNhacobá e um dia havia de chegar ao Cumbijã. Era como uma faca encravada nas zonas até ai controladas pelo PAIGC, atravessava o corredor de Uane, virava para Sul ao Cumbijã e facilitaria o controlo pelas nossas tropas de toda aquela área.
A todo o custo o PAIGC tentava evitar a sua progressão e para tal plantavam minas por todo o lado a fim de destruir viaturas e máquinas de desaterro que trabalhavam na abertura da estrada. Logo ai o trabalho para detectar as minas era importantíssimo.
Todos os dias se fazia a picagem até à frente dos trabalhos e depois fazia-se a segurança à engenharia e aos operadores das máquinas. O trabalho dos Furriéis de Minas e Armadilhas era importantíssimo e o Vilas Boas distinguiu-se nisso. Perdi a conta às minas que ele levantou.
Um dia na rotina habitual os picadores da frente gritam:mina!. Todos param. O Albuquerque repete a mensagem (mina!) e dá um passo atrás. Pisou uma mina antipessoal.
Puseste o pé em sítio errado
um som violento, o pó levantado
escondeu por algum tempo
o teu corpo violentado
sem pensar em outras minas
correram em teu socorro
o sangue fugia do teu corpo
e o "hélio" não chegava
tua cara, ainda de criança
ficava cada vez mais pálida
tudo num silêncio angustiado
Apesar dos teus vinte anos a
vida fugia-te em golfadas
porquê tanto sangue derramado?”
Minas
Parece inofensiva a maldita
Por José Manuel Lopes
“Desde o início da construção da estrada que as picagens se tornaram um cenário diário e hoje mesmo me surpreendo, como só tivemos uma vítima nesse trabalho perigoso que se tornou numa rotina. Só um trabalho muito responsável e competente dos picadores e dos Furriéis de Minas e Armadilhas explica tudo isso. Grande Vilas Boas e Fernandes!
"Estradas amarelas corpos
cobertos de pó
pica na mão à procura delas
o polegar ferrado num pau
tac,tac,tac,tac,tac,tac
tacteando por sons diferentes
o Fernandes com cara de mau
espeta no solo
o ferrão da pica
tac,tac,tac,tac,tac,toc...
o calafrio...
depois o grito
anunciando o perigo
o grupo é mandado parar
chega o Vilas à frente
e todos manda afastar
de joelhos no chão
numa simulada carícia
afasta a terra com a mão
com gestos simples e perícia
vai cavando devagar
ei-la... está aqui
parece inofensiva a maldita
deita-lhe a mão e grita
és minha, já te tenho
tira-lhe o detonador
e entre dentes diz...
esta não
esta não causará dor.”
Cheira a emboscada
Por José Manuel Lopes
"Em fila indiana
vai o grupo pela picada
um silêncio pesado
de natureza estranha
deixa os sentidos alerta
cheira... a emboscada
aos primeiros tiros
todos caem no chão
há avisos e gritos
e reina o palavrão
responde-se de pronto
com a arma na mão
subitamente, de lá
as armas se calam
enquanto por cá
elas ainda falam
e eis que
o silêncio volta
e chega a segurança
regressa a confiança
olha-se em volta
há um corpo caído
que não grita nem mexe
se adivinha razão
engole-se em seco
se desvia o olhar
se esconde a emoção."
************
Não pode haver melhor prenda
Por José Manuel Lopes
Em dia de correio, o grupo de serviço ia levantá-lo à Aldeia Formosa. Uma secção montava-se num Unimog, lá ia em busca das boas novas, aproveitando para levar as cartas que os militares escreviam aos familiares e madrinhas de guerra.
Eu raramente escrevia. A minha mãe queixou-se disso na primeira vez que vim de férias. Eu dizia-lhe que pouco havia para contar e que não se preocupasse, pois no nosso caso, a falta de notícias era a melhor das notícias, se algo corresse mal, a má nova chegava rápido.
Havia um Furriel já casado que todos os dias escrevia à mulher e numerava as cartas. Quando após o almoço passava junto à tabanca dele, lá estava o Santos sentado a escrever. Eu perguntava:
- Oh Santos quantos dias já levamos disto?
Ele olhava para a parte superior da primeira folha da carta e dizia:
-184, não falha.
Quando o correio chegava, ele recebia 7,8,10 cartas, pois a mulher também lhe escrevia todos os dias, mas nós não recebíamos o correio com muita regularidade.
Um dia foi a minha vez de ir buscar o correio a Aldeia Formosa e fiz uma maldade. Retirei do saco todas as cartas endereçadas ao Santos e guardei-as no bolso lateral das calças.
Ainda hoje recordo o olhar angustiado daquele Furriel a assistir à distribuição do correio. Entretanto, eu já tinha passado pela tabanca dele e deixado 6 cartas em cima da cama. Depois, assisti ao caminhar pesaroso do Santos, da cantina até à sua tabanca.
De seguida, ouve-se um grito de surpresa. Ele sai e diz:
- AH SEU FILHO DUMA PUTA, ISSO NÃO SE FAZ!... NA PRÓXIMA, DOU-TE UM TIRO NOS CORNOS!"
"Um ruído vem do céu
e há cabeças no ar é que
é dia de correio
há novas para chegar
faz-se a distribuição
com chamada frente ao bar
para o Santos, nada veio!
será que vai desmaiar?
p'ró Zé Manel veio a Bola
com notícias do Benfica
p'ró Nelson uma encomenda
e há quem lhe mande uma dica
fazendo-se para a merenda
sim, de correio foi o dia
não pode haver melhor prenda
é tempo de alegria
retiram-se os felizardos
procuram privacidade
relêem a mesma carta
até afogar a saudade."
************
Ao Santos de Leça
"Um dia nunca passava
sem que escrevesse uma carta
à mulher que tanto amava
como se fosse promessa
e todas elas numeradas
como que a testemunharem
a grande paixão do Leça"
____________
Nota do editor
Vd. poste anterior de 24 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18249: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (46): O Zé Manel de Mampatá - Poeta da Régua (1)