quarta-feira, 4 de julho de 2018

Guiné 61/74 - P18809: Historiografia da presença portuguesa em África (123): L’affaire Salagna, Guiné, I Guerra Mundial: Primeiro estavam os negócios, depois o patriotismo (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Fevereiro de 2018:

Queridos amigos,
Aos poucos, desvelam-se situações de negócios ilícitos durante a I Guerra Mundial, em solo guineense. Os interesses alemães eram enormes, seguramente que o protocolo assinado pelas principais casas comerciais em janeiro de 1916, inibindo quem quer que fosse a negociar com os alemães montou máquinas expeditas de colaboração com empresas sem escrúpulos.
O espantoso do caso Salagna é o recurso a intermediários também sem escrúpulos e, como se poderá ler destes episódios folhetinescos, a casa mãe de Salagna dizia nada saber…
Um saboroso conjunto de documentos que traz outro modo de ver as coisas na Guiné, em 1916.
Leiam que vale a pena.

Um abraço do
Mário


L’affaire Salagna, Guiné, I Guerra Mundial:
Primeiro estavam os negócios, depois o patriotismo

Beja Santos

Na documentação avulsa que compulso no Arquivo Histórico do BNU, dei com uma troca de correspondência em 1916 que envolve empresas francesas a fazer negócios com casas alemãs, no momento exato em que Portugal já pendeu para entrar em guerra ao lado da Grã-Bretanha e França.
O primeiro documento data de Bafatá, é escrito por Vasco Calvet Magalhães, administrador de circunscrição e endereçado ao gerente do BNU em Bolama:
“A casa Rudolf Titzek & Ctª carregou em Bissau no motor Paula cerca de 10 toneladas de pólvora com destino a Bafatá. No dia em que esse navio deveria seguir para esta localidade apareceu no Boletim Oficial da Província a portaria proibindo a navegação alemã em toda a Província. A casa Rudolf Titzek & Ctª, não sei como, obteve permissão para desembaraçar essa pólvora e por intermédio do seu empregado Max Laval contratou a venda com o agente da casa Salagna, o Snr. Rombaut. Para encobrir tão escandalosa transacção de uma casa alemã para uma casa francesa, serviu de intermediário ainda uma terceira pessoa que foi o negociante Francisco Monteiro, negociante em Bambadinca, o cliente mais importante da casa Rudolf Titzek & Ctª, com o capital de cuja firma negoceia. Receando as casas alemãs que os seus bens fossem confiscados, trataram cada uma destas casas em liquidar por qualquer preço as mercadorias que tinham em armazém e nas lojas, como exemplo a casa Bafatá que num dia ficou com as prateleiras vazias. Como me interessava o assunto, pus uma pessoa de confiança em casa de Francisco Monteiro em Bambadinca e outra na casa Pachen, em Bafatá, a sucursal da firma Rudolf Titzek & Ctª, e dois dias depois sabia o seguinte: 
I – que o negociante Francisco Monteiro além de grande quantidade de tabaco e diversas mercadorias que tinha recebido da referida firma alemã, recebeu em Bafatá do agente da mesma casa, então demissionário, Pedro Mendes Moreira, cerca de 13.000 escudos em dinheiro que eles receavam lhe fossem também apreendidos. 
II – de Bambadinca fui informado que cerca de 10 toneladas de pólvora pertencentes à firma já citada estavam armazenadas em casa de Francisco Monteiro. Em minha consciência vi que devia apreender essa pólvora visto a sua origem suspeita, mas consultei o governo que me ordenou que efectuasse a apreensão.

Chamei o tal Monteiro que é homem de poucos escrúpulos e sem sombra de dignidade ou patriotismo e comunicando-lhe o que ia fazer, o homem ficou confuso e perturbado.
Cerca das 13 horas procurou-me e disse-me o seguinte:
‘Eu não sou senão intermediário neste negócio. A pólvora pertence à firma alemã mas foi vendida à casa Salagna. Ficou assim descoberta a negociata, que aliás era a confirmação de tudo o que me fora dito.
Não há pois dúvida que a casa Salagna negoceia ou negociou durante muito tempo com a casa Rudolf Titzek & Ctª e que o seu agente nesta colónia é de toda a suspeita, apesar de belga’.”

O segundo documento que encontrei data de Bafatá, 3 de junho, é redigido pelo Administrador da Circunscrição Vasco Calvet de Magalhães e é dirigido ao gerente do BNU em Bolama:
“A carta de V. Ex.ª. de 12 de Maio não teve logo resposta porque estava ausente no mato a mais de 150 km da Sede da Circunscrição, acompanhando Sua Ex.ª o Governador na visita que se dignou aqui fazer, e quando no regresso quis responder telegraficamente a V. Ex.ª não o pude fazer até hoje porque as comunicações telegráficas estão interrompidas entre Bambadinca e Buba e Bafatá.
Resolvi portanto escrever a V. Ex.ª. informando-o do que deseja.

I) Caso Salagna:
Esta casa muito embora francesa é dirigida por um belga que até há pouco teve sempre negócios com as casas alemãs. Com receio de passar algum vexame, como era natural, este belga que se chama Jules Rombaut, homem sem patriotismo nem dignidade moral, serviu-se do francês já falecido aqui há pouco, Max Laval, para fazer quantas transacções quis com a Casa Rudolf Titzek. O último negócio foi o da compra de cerca de 10 toneladas de pólvora no qual serviu de intermediário o negociante Francisco Monteiro (procurador, agente e cliente da Casa Rudolf Titzek em Bambadinca) e que eu apreendi em Bambadinca. Isto não são informações graciosas, incompatíveis com a minha posição e carácter, mas tão-somente a expressão da verdade e provado com os documentos de que pedi certidão extraídos do espólio do falecido Max Laval e que me foram fornecidos pelo cônsul francês nesta colónia. Além disso, o negociante Francisco Monteiro teve a franqueza de confessar tudo nesta administração quando se fez a apreensão. Este negociante, porém, não tem carácter nem dignidade porque além de continuar nas mãos da Casa de Titzek, quis num requerimento que fez ao Governo da Província provar que a pólvora lhe pertencia, juntando o despacho que fez em Bissau.”

O terceiro documento data de Bissau, 6 de junho, é confidencial e foi escrito pelo Vice-Cônsul da França na Guiné Portuguesa, Gustave de Coutuly, dirige-se ao gerente do BNU em Bolama, diz o seguinte:
“No decurso da sua amável visita, ontem, confiou-me ter recebido instruções da vossa Sede para cessar todo e qualquer crédito às empresas que continuaram a manter com os nossos inimigos comuns relações comerciais.
Pediu-me, por outro lado, e com o cunho de sigilo, que lhe desse a relação das casas francesas que se encontrassem nesta situação.
Bem gostaria de lhe responder pela negativa, mas devo à minha consciência de homem e de representante da França na Guiné Portuguesa de lhe denunciar os Estabelecimentos Salagna. A apreensão de 10 toneladas de pólvora operada em Bafatá pelo Sr. Administrador Vasco de Sousa Calvet de Magalhães e as declarações formais feitas a este distinto funcionário pelo intermediário cabo-verdiano Francisco Monteiro, implicado no negócio são suficientes para estabelecer que os Estabelecimentos Salagna não cumpriram o compromisso solene redigido em 1 de janeiro de 1916 e continuaram a negociar com a empresa alemã Rudolf Titzek & Cta.
No que concerne à Companhia Agrícola e Comercial dos Bijagós, fui informado pelo agente consular da Bélgica e da Grã-Bretanha que os seus directores teriam recentemente comprado em Cacheu o stock de arroz que possuía a mesma casa alemã Rudolf Titzek.”

Em 12 de junho, o gerente de Bolama escreve para a casa Salagna o seguinte:
“As informações que recolhemos são de tal forma peremptórias que não nos é possível, como seria nosso desejo, modificar a resolução que fomos forçados a tomar.
Vamos, porém, pela primeira mala, submeter o assunto à apreciação da nossa Sede e esperamos a decisão.”

E de facto, a 16 de junho segue para Lisboa o seguinte documento:
“Como tivéssemos aqui tido algumas denúncias de que a firma Salagna negociava com casas alemãs e de que ultimamente lhe tinha sido apreendida em Bafatá uma porção de pólvora comprada a alemães, escrevemos ao administrador de Bafatá, homem sério e o melhor funcionário da Província, Snr. Calvet de Magalhães, perguntando-lhe o que havia.
Pelas cópias que juntamos, verificarão V. Exas. as informações colhidas.
Podem V. Exas. estar certos de que toda a resolução que tomámos neste sentido será sempre comprovada, para que não haja dúvidas sobre o nosso modo de proceder, e porque bem avaliamos quanto melindroso é o assunto.”

De outra documentação espúria, apura-se que já era larvar a inquietação das casas alemãs e dos seus cúmplices, desde o início do ano de 1916. Com efeito, assinara-se um protocolo em que todas as casas comerciais da Guiné, mormente as estrangeiras, deixariam de fazer negócios com os alemães. Houve quem não respeitasse o protocolo assinado, a Salagna foi uma delas, estava sob vigilância desde que transaccionara 1000 toneladas de coconote à casa alemã Rudolf Titzek, contrariando a lei francesa de abril de 1915. O gerente da casa Nouvelle Société Commerciale Africaine, o cônsul belga e também vice-cônsul de Inglaterra, protestou junto do governo Dakar.

Quando o gerente de Bolama foi a Bissau, enquanto esperava informações de Calvet de Magalhães, entrevistou-se com este vice-cônsul inglês que lhe mostrou a lista negra dos que negociavam com os alemães: Etablissement Salagna, Empresa Agrícola e Comercial de Bijagós Lda. e Joaquim António Pereira.
Foi nessa altura que o gerente enviou de Bolama para a Sede a seguinte informação:
“A qualquer destas casas entendemos que é perigoso dar-lhes novamente créditos sem que elas transfiram os seus gerentes como satisfação e assim mostrarem que foi sem o seu conhecimento que tais negócios se realizaram. Com o Etablissement Salagna há ainda a resolver a apreensão da pólvora feita pelo Governo da Província de que tratava a carta do administrador de Bafatá. Enfim, como o gerente da casa Salagna será brevemente chamado às fileiras belgas, segundo nos informam, só depois disso entendemos que sem risco poderemos reatar as interrompidas relações comerciais se também a casa de Bordéus, da Salagna, conseguir que seja eliminado o seu nome da lista negra”.

Visita de Raul Ventura, Subsecretário de Estado das Colónias aos Serviços de Saúde em Bissau, 1953.

Bubaque, fotografia retirada do livro livro “Uma Apoteose- duas visitas - uma despedida”, obra relacionada com a partida do governador Raimundo Serrão, 1953.

Antigo Palácio do Governador, Ilha de Bubaque, fotografia de Francisco Nogueira, retirada com a devida vénia do livro “Bijagós, Património Arquitetónico”, Edições Tinta-da-China, 2016.
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Nota do editor

Último poste da série de 27 de junho de 2018 > Guiné 61/74 - P18785: Historiografia da presença portuguesa em África (121): A Guiné nas duas guerras mundiais, dois curtos episódios (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P18808: Parabéns a você (1466): Jorge Ferreira, ex-Alf Mil Inf da 3.ª CCAÇ (Guiné, 1961/63)

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Nota do editor

Último poste da série de 3 de Julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18804: Parabéns a você (1465): António Nobre, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2464 (Guiné, 1969/70)

terça-feira, 3 de julho de 2018

Guiné 61/74 - P18807: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (30): O anjo excomungado

1. O nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), em mensagem do dia 21 de Junho de 2018 enviou-nos mais uma memória da sua guerra.


Outras memórias da minha guerra

30 - O anjo excomungado


Um equilibrista em perigosa actuação entre arranha-céus de Nova-Iorque 

- Silva, ó Silva, olha aqui o João Albino. Lembras-te dele? – perguntou o meu vizinho Fiães, ao ver-me passar junto do refeitório da CCS de Catió.

Olhei com alguma curiosidade, ao mesmo tempo que tentava ligar-me ao nome apontado. Então, ele insistiu:
- Aquele equilibrista que subia e descia um arame lá no largo da Feira dos Dez, em Lourosa?

Aí, reagi logo afirmativamente. Quem é que não se lembrava daquele espectáculo presenciado pela multidão, próximo da Capela de S. Miguel?

O João Albino sorriu, ao mesmo tempo que parecia querer manter o anonimato. Manifestei a minha surpresa em vê-lo ali no nosso BART 1913, felicitei-o pelos seus sucessos e aproveitei para saber mais alguma coisa dele. E, afinal, não foi difícil.

- Lembro-me bem de ter ido a Lourosa. Quem me pediu para lá ir, foi o meu tio Jorge Miguel que vive ali por perto. Tem um salão de barbearia e cabeleireiro.

Confirmei logo que o conhecia bem. Casou com uma vizinha minha.

- Pois foi ele é quem me inspirou. É o meu ídolo. Aos 16 anos, o meu avô teve que o mandar para a França, para junto de um irmão, porque ele não queria trabalhar na barbearia, lá na aldeia, perto de Portalegre.

E continuou:
- Em França, veio a integrar-se num grupo de equilibristas de circo. E como era um gajo de muita coragem, tornou-se famoso. Foi ele o artista que substituiu a vara do equilíbrio por duas asas, dando a sensação de que voava. Era conhecido por “Michelangelo”. Fazia um número espectacular, mas muito perigoso. Bastava um pouquito de vento e a segurança estava logo em causa.

Dizem que não lhe faltavam miúdas. Ele era mesmo uma vedeta. Mas o que ele mais desejava era aproveitar esses momentos e gozar a vida.

- Mas, ele era manco!
- Sim. Num dia com mais vento, ele teimou em actuar com as asas de anjo, mas desequilibrou-se e quase se matou ao cair do arame. Ficou afectado de uma perna e teve que largar a actividade. Regressou a Portugal e influenciou-me para o substituir naquela loucura.

Já habituado ao ambiente afrancesado, o regressado Albino passou a sentir ainda mais o sacrifício de viver no isolamento alentejano.
E, um dia, quando falava sobre a sua vida atribulada e se lamentava da sua sorte na presença de um industrial de cortiça, que ali se deslocava com alguma frequência, foi encorajado a mudar-se para norte, para o concelho da Feira.
Conheci-o por altura dos meus catorze anos (1957). Frequentei a sua pequena barbearia, onde apareciam outros tipos de clientes.
Chegava sempre tarde à barbearia. Parecia fazer questão em ter clientes à espera, junto à porta. Devido à deficiência na perna direita (não a podia dobrar), caminhava bastante esticado, por forma a poder rodar essa perna, para a colocar na sua frente. O Senhor Michel parecia explorar bem a sua deficiência, assumindo uma pose erecta e altiva, bastante beneficiada pelos seus bastos cabelos ondulados, pelo seu bigode e sorriso tipo Clark Gable e pelos óculos escuros Ray Ban.

Capela de S. Miguel 

A aldeia era pequena e não podia dar-lhe muitos clientes. Além disso, a sua pose altiva, a sua permanente argumentação sobre tudo e todos e a sua frontal posição crítica face à religião, afastavam parte da possível clientela.
Todavia, a sua experiência francesa, aliada a uma certa dose de rebeldia alentejana, davam-lhe um à-vontade, pouco comum naquele ambiente rural nortenho. Pela frente, quase toda a gente o respeitava, mas, por trás, havia uma onda de contestação, bastante crítica, especialmente orquestrada pela família Ramirinho, pelo Tono Coninhas e por algumas beatas de sacristia.

Ora, o Senhor Michel, teve que aproveitar tudo para ganhar algum dinheiro que o pudesse ajudar a viver. Cortava o cabelo curto, como era hábito naqueles tempos difíceis mas, salientava-se noutros tipos de corte, onde realçava seus conhecimentos mais modernos. Além disso, veio a ter algum sucesso com o corte “à la garçonette” nas crianças e adolescentes do sexo feminino.
Eu simpatizava com o Senhor Michel. Ele já me influenciava a cortar pouco o cabelo, dando-me uma imagem “mais de acordo” com a minha postura de “revoltado”. Também me falava muito dos seus conhecimentos afrancesados. Mas, o que mais admirava nele era o seu optimismo de alentejano e o seu sentido crítico de homem livre.

Foi nessa altura que presenciei o Senhor Michel a arrastar a asa pela sua Luisinha. Ela tinha ido à barbearia para acompanhar a filha da Tininha, enquanto ele lhe cortava o cabelo.
A miúda já estudava francês e cismou adquirir um corte “à la mode”. Aliás, tive a oportunidade de apreciar a sua exuberante actuação de conquistador. A miúda sentada na cadeira limitava-se a olhar fixamente o espelho na sua frente. Porém, o Senhor Michel mexia-se constantemente. Após vários movimentos em falso, batendo, repetidamente, o clik da tesoura, aproximava-se da miúda e mal tocava no cabelo. Afastava-se, olhava-a de novo, elevava os lábios fechados e abanava ligeiramente a cabeça no sentido vertical. Por vezes, esboçava um “très belle, très belle” ou uma exclamação tipo: “oh la, la, jolie, petite demoiselle”!

De cabeça esticada, braços abertos, com o pente numa mão e a tesoura na outra, o artista arrastava a perna deficiente, enquanto rodopiava paralelamente à cadeira, que até me parecia um garnisé a arrastar a asa, preparando a (futura) galadela.

Desde que começou a constar que o marido da Luisinha d’Azenha, Jorge Miguel, fora apanhado a molestar a sua mulher, não havia dia de lavadouro ou noite de taberna, em que o assunto não viesse à baila.

- Para mim, ele é um excomungado. – Acusava a Felismina do Canto, que continuava:
- Um homem que desonra a namorada, leva-a de casa sem casar pela Santa Madre Igreja e que, ainda por cima, a trata mal, devia ser castigado.
- Realmente, e logo aquela rapariga, tão bonita, filha de tão boa gente e tão temente a Deus. – Lembrou a Ti Matilde.

Logo a Maria Bolachona interveio em jeito de aparente despeito:
- Chamas bonita àquela magricela, um pau de virar tripas que não pesa 70 quilos, que tem os olhos grandes de ougada e cabelos ripados, sem ondas nem caracóis?
- Nós dizemos que gordura é formosura, mas não te esqueças do que diz o outro ditado: O que é demais, é moléstia.- Observou a Ti Matilde.

Um pouco mais ao lado, num tom mais suave, murmurava a Tina Beata:
- Pois é, mas eu continuo a pensar que a culpa é das mulheres porque se deixam levar e não se sabem portar bem. Por acaso, se fosse comigo, iam ver do que eu era capaz. Até o capava, se me faltasse ao respeito.
- Ei, mulheres do solheiro, estais a serrar de alguém? – Interrompeu a Irmã Julinha, que surgiu por ali, vinda do fundo da quinta da família Ramirinho, onde se encontrava de férias pascais.
- Ó Julinha, não queira saber que aquele excomungado, que desonrou a Luisinha e que a obriga a viver com ele em pecado, foi apanhado a molestar a rapariga.
- A molestar, como? A bater-lhe? A magoá-la? Digam-me, por favor, o que essa alma do diabo lhe anda a fazer.

A Felismina, agarrou nalgumas peças de roupa, para as pôr a corar e aproximou-se da Irmã Julinha e, em voz mais baixa, confessou:
- Na sexta-feira passada, quando ia para a primeira missa, ao passar junto à casa da Luísa, ouvi-a gritar baixinho e, por curiosidade, aproximei-me e olhei por uma frincha da portada da janela. Ó Julinha, sabe bem que eu não sou mulher de levar e trazer. Nem sou nada dessa gente que levanta boatos, maledicências ou falsos testemunhos. Apenas me lembrei de espreitar, antes de a acudir.
- Não me digas que estava a bater-lhe? – Interrompeu a Irmã Julinha
- Não sei. Só sei que eles estavam nuínhos, conforme Deus os botou ao mundo. Tal como Adão e Eva no Paraíso.
- Credo em Cruz, Santo nome de Jesus! Nem me digas? Que pecado!
- E o pior é que ele estava em cima dela como se ela fosse uma cadela, coitadinha!
- Deve-a ter magoado?
- Sim, sim, até porque vi o excomungado a querer sarar-lhe “as partes” com a saliva da língua.

********** 

Quando regressei da Guiné, andei uns meses a trabalhar como Comercial numa empresa de produtos químicos. Corria quase o País todo e logo que passei por Portalegre, encontrei o Sr. Jorge Miguel. Levou-me à sua aldeia, almocei com toda a família (mulher e três filhos – um rapaz e duas meninas). Pareceram-me bastante felizes. Falámos agradavelmente de muita coisa, inclusive do seu sobrinho João da CCS de Catió, agora a viver na Bélgica.

Antes da despedida, teve um desabafo:
- Amigo Zeca, gosto muito do norte e da maior parte das pessoas de lá. Gostava de ter continuado naquela terra, mas tivemos que vir para cá antes que aquelas ratas de sacristia matassem a Luísa à pedrada, como se fazia na Grécia Antiga. Aquelas putas, faziam-lhe a vida negra!

Ficou sentado num extremo da mesa, com uma lindíssima criança sentada sobre a sua perna esquerda. Fitou-me, saudando-me com alguma comoção, elevando a mão direita com o copo do vinho que restava do nosso último brinde:
- Obrigado Zeca. Que sejas sempre tão feliz como eu! Tu mereces.

A mulher veio abrir-me o cancelo de acesso à rua. Ao abraçar-me na despedida, confessou-me:
- Zeca, às vezes sinto muitas saudades da família e dos bons vizinhos, como vós. Mas, diz àquela gente que sou muito feliz. Tenho quatro anjos; três filhos e um marido, a quem devo a maior sorte do mundo.

Afastei-me, comovido com o que tinha visto e ouvido. Ainda acenei um adeus, já de longe. E pensei:
- Não deve ser só por ele ter sarado as feridas com a saliva da língua…
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de dezembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18036: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (29): “Amor à Pátria”

Guiné 61/74 - P18806: Ser solidário (214): SOS!!!... SOS!!!... Por Timor Leste e pela língua portuguesa... Há um esforço (deliberado) da Austrália para fomentar o uso do inglês, e da Indonésia, para promover o bahasa... Camarada, manda até ao fim do dia um email ao Senhor Presidente da República para que envolva Portugal e os portugueses nesta campanha em defesa da educação, em português, na pátria de Xanana Gusmão e Ramos Horta... O verdadeiro "campeonato do mundo", não o da bola mas o do futuro, joga-se e ganha-se aqui... (João Crisóstomo, Nova Iorque)

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Timor-Leste > Símbolos Nacionais > Bandeira: "A bandeira nacional é rectangular e formada por dois triângulos isósceles de bases sobrepostas, sendo um triângulo preto com altura igual a um terço do comprimento que se sobrepõe ao amarelo, cuja altura é metade do comprimento da bandeira. No centro do triângulo de cor preta fica colocada uma estrela branca de cinco pontas, que simboliza a luz que guia. A estrela branca apresenta uma das pontas viradas para a extremidade superior esquerda da bandeira. A parte restante da bandeira tem a cor vermelha. Amarelo - os rastos do colonialismo; Preto - o obscurantismo que é preciso vencer; Vermelho - a luta pela libertação nacional; Branco - a paz. Iin "Constituição da República Democrática de Timor-Leste", Parte 1, Artigo 15º".

(Fonte: Portal do Governo de Timor-Leste, que é em Tetum, em Português e em Inglês)

João Crisóstomo
1. Mensagem do nosso amigo e camarada João Crisóstomo (Nova Iorque), a quem o saudoso cardeal patriarca de Lisboa,  Dom José Policarpo (1936-2014) chamava "o berbequim", devido à persistência, teimosia e coerência com que luta(va) pelas causas em que se empenha(va):

Data: 3 de julho de 2018 às 13:02
Assunto: SOS! SOS!

SOS...SOS....

Para quem vacila, eu quero responder a uma pergunta que me puseram sobre o porquê da minha campanha por Timor Leste (*)  quando outras nações da CPLP também precisam de ajuda. 

É que, no que se refere à língua portuguesa, Timor Leste é um caso único de muita preocupação: eu constatei -  e muitos outros me dizem terem verificado o mesmo - que há aí um esforço deliberado de muitas partes, especialmente da Austrália, fomentando o uso do Inglês, e da Indonésia que promove o uso língua indonésia bahasa, para acabar com o uso da língua portuguesa. 

Eu quero citar um exemplo deste evidente esforço que eu mesmo experimentei e sou testemunha: mesmo no centro de Dili, com cinismo, irónico e premeditado, pois foi nada mais nada menos que dentro do "Centro Alexandre Gusmão! - o que pode parecer parece incrível, mas é pura verdade. 

Foi aí mesmo que isto sucedeu: quando eu fiz uma pergunta em português,  houve um indivíduo aí presente nesse momento que veio ter comigo e me disse para falar inglês: "Aqui não se fala português, que é uma língua sem importância". 

Evidentemente que causei um "alvoroço tremendo " que não dá para descrever aqui. Mas se alguém ainda vacila, na nossa campanha (*), pensem no que vai suceder se cruzarmos os braços. 
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Nota do editor:

(*) Vd. poste da série > 27 de junho de 2018 > Guiné 61/74 - P18784: Ser solidário (213): Petição, urgentíssima (até 3 de julho), ao sr Presidente da Republica, para instruir os seus serviços a apresentarem, na próxima reunião cimeira da CPLP em Julho próximo, em Cabo Verde, uma proposta visando a implementação dum plano extraordinário para os próximos dez anos no campo da educação em Timor Leste (João Crisóstomo, Nova Iorque)


(...) Mensagem por email a enviar à Presidência da República (até ao fim do dia 3 de julho de 2018)

(...) Endereço de email: belem@presidencia.pt

Exmo Senhor Presidente Marcelo Rebelo de Sousa,

Senhor Presidente,

A situação da educação em Timor Leste, especialmente para todos os que seguimos e partilhamos os anseios deste país, é de muita preocupação. É com muita confiança e esperança que viemos pedir o favor da sua ajuda para o que segue:

Uma vez que a promoção da Língua Portuguesa é um dos objectivos para que a CPLP foi criada e dada a necessidade e urgência dum esforço extraordinário no ensino da língua portuguesa no jovem país de Timor Leste, venho pedir ao Senhor Presidente o seguinte: que instrua os seus assistentes para prepararem uma proposta a ser apresentada na próxima reunião cimeira da CPLP em Julho próximo em Cabo Verde, visando a implementação dum plano extraordinário para os próximos dez anos no campo da educação em Timor Leste.

O fim deste é de que no 25.º aniversário deste país (em 2027) o acesso à educação esteja já ao alcance de toda a juventude e o uso da língua portuguesa seja mais generalizado, no seguimento da premissa de que a língua portuguesa e a religião católica foram os grandes pilares na luta pela reaquisição da Independência de Timor Leste.

Portugueses, e todos para quem Timor Leste e a língua portuguesa estão no coração – e porque sabemos que podemos contar com a sua ajuda –, estamos desde já antecipadamente muito gratos.

Com muita confiança aceite, Senhor Presidente, os meus respeitosos cumprimentos.

Local, Data, Nome (e mais algum dado, se achar bem incluir como ID: Nº de BI, Cidadão, Passaporte, Profissão... )

Guiné 61/74 - P18805: (Ex)citações (339): "Hoje sentimo-nos bem connosco, por termos ajudado a minorar o sofrimento dos feridos e doentes, que nos foram confiados. Em nós ficou o sentimento de um dever cumprido" (Maria Arminda Santos, capitão, enfermeira paraquedista, ref)


Leiria, Monte Real > Palace Hotel Monte Real > XII Encontro Nacional da Tabanca Grande > 29 de abril de 2017 > Da esquerda para a direita, a Giselda, a Maria Arminda Santos (que veio pela primeira vez a um encontro nacional da Tabanca Grande) e a Maria de Lurdes (de perfil) (, esposa do nosso camarada Jorge Canhão).

Foto: © MIguel Pessoa (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1, Pedi às nossas amigas, camaradas e grã-tabanqueiras, as enfermeiras paraquedistas, hoje jubiladíssimas, mas sempre atentas, disponíveis e amáveis, Giselda, Arminda, Rosa... para comentarem o poste do nosso Dino, que esteve em Fulacunda, região de Quínara, em 1972/74, e em especial um excerto de um aerograma à namorada e futura mulher, Amélia, com data de setembro ou outubro de 1973, em que dizia assim:

“Antes de te falar romanticamente, quero informar-te que hoje veio aqui um helicóptero e nele vinham duas moças pára-quedistas brancas,  foram para uma operação no mato e por causa do nevoeiro tiveram de aterrar aqui. Com estas duas, são três as mulheres brancas que vi em Fulacunda. Quando puderam partir levaram correio, espero que desta vez recebas”. 

Eu próprio comentei no poste, em tom de brincadeira, o seguuinte;

"Dino, com um ano de Guiné tinhas a 'obrigação' de saber que havia mulheres, nossas camaradas, enfermeiras paraquedistas que andavam nos helis e nas DO 27 a 'socorrer' os desgraçados dos nossos feridos graves, com direito a evacuação Ypsilon...

Geralmente não paravam nos quartéis, faziam as evacuações a partir do mato até ao HM 241, em Bissau...Não tinham tempo para se 'coçar'...

Acho que havia muita gente, nos nossos quartéis, que não sabiam mesmo da existência das enfermeiras paraquedistas... Elas não precisavam de pôr anúncios nas revistas cor de rosa da época... Mas eu vi-as, no mato e no quartel de Bambadinca, sempre elegantes, sempre eficientes, sempre corajosas... Temos uma grande dívida de gratidão para com estas raparigas, hoje com a nossa idade"...


Capa do livro "Nós, enfermeiras  paraquedistas" (Coord., Rosa Serra) Porto: Fronteira do Caos Editores. 2015 (Há já uma 2º ed). Prefácio do professor Adriano Moreira.



Da esquerda para a direita, a Maria Arminda, a  Maria  Zulmira André (falecida em 2010) e a Júlia Almeida (, falecida em 2017). Guiné, Bissalanca, BA12, s/d .  Foto de cronologia do Facebook da Maria Arminda Santos. (Reproduzida aqui com a devida vénia...).



2. A Maria Arminda Santos,  que esteve na Guiné (e mais do que uma vez, foi de resto a primeira a chegar ao território, logo em julho de 1962; e em 1969/70 era tenente enfermeira paraquedista; hoje capitão reformado, vive em Setúbal e tem 4 dezenas de referências no nosso blogue),  já me respondeu, ontem às 23h00, dizendo:

"Obrigada,  amigo Luis Graça, por me ter feito chegar esta mensagem. Não me surpreende que muitos militares desconheçam ainda muita coisa, da nossa existência e das missões que desempenhámos, durante o decurso da Guerra do Ultramar, ou Colonial.

Já coloquei o meu comentário no Blogue, conforme a sua solicitação. Envio um grande abraço. Não esqueço quem sempre nos tratou bem, apesar de eu participar pouquíssimo no blogue. Até sempre, M. Arminda Santos".

Aí vai comentário da Maria Arminda Santos,  deixado no poste P18799:

 "Li com atenção e não levo a mal, por esse nosso camarigo, desconhecer da nossa existência, na Guiné e nas Tropas Paraquedistas.

Realmente nós éramos poucas para acudir a todos os locais, mas de facto eram muitas as saídas em DO 27, Alouette III e até em Dakota, fizemos evacuações de feridos e não só, porque até a elementos da população civil, prestámos cuidados.

Também fizemos Bases de Operações, principalmente em Aldeia Formosa e Cufar, mantendo-nos de alerta para possíveis evacuações de feridos , que viésssem a ocorrer em teatro de operações, como na realidade aconteceram.

Ainda bem que esse camarada, não precisou de nos conhecer, no âmbito do nosso trabalho. Bom sinal para ele.


Hoje sentimo-nos bem connosco, por termos ajudado a minorar o sofrimento dos feridos e doentes, que nos foram confiados. Em nós ficou o sentimento de um dever cumprido.
Um abraço.

M. Arminda Santos" (**)

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(**) Último poste da série > 1 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18798: (Ex)citações (338): Quem não sabe beber, que beba m..., dizia um durão de Bambadinca... Mas, camaradas e amigos, era mesmo m... a famosa "água de Lisboa" que nos chegava aos nossos quartéis para matar a nossa dor e a nossa sede... (Luís Graça / Virgílio Teixeira)

Guiné 61/74 - P18804: Parabéns a você (1465): António Nobre, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2464 (Guiné, 1969/70)

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Nota do editor

Último poste da série de 1 de Julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18797: Parabéns a você (1464): Silvério Lobo, ex-Soldado Mec Auto do BCAÇ 3852 (Guiné, 1971/73)

segunda-feira, 2 de julho de 2018

Guiné 61/74 - P18803: Estórias avulsas (89): A noite mais longa da recruta… e não só (Carlos Pinheiro, ex-1.º Cabo TRMS Op MSG do STM/QG/CTIG)

1. Em mensagem do dia 17 de Junho de 2018, o nosso camarada Carlos Pinheiro (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70), revive os tempos inglórios da sua Recruta do CSM na Escola Prática de Cavalaria de Santarém.


A noite mais longa da recruta… e não só

Carlos Pinheiro

Tínhamos assentado praça no dia 10 de Outubro de 1967 na EPC (Escola Prática de Cavalaria), em Santarém, em conformidade com a Lei do Serviço Militar Obrigatório.
O país estava em guerra em três teatros de operações, envolvendo todos os meios humanos e materiais possíveis, Angola, Moçambique e Guiné. Mas também tinha tropas destacadas em Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe e até em Macau e em Timor, tudo isto depois do desastre da Índia, pelo que o destino da juventude daquele tempo estava traçado.

Na noite desse dia 10, depois de nos terem sido indicadas as instalações, nomeadamente a caserna com sessenta camas, mais uma do plantão, dois chuveiros, duas sanitas e meia dúzia de lavatórios, e de nos ter sido fornecido o fardamento, depois de termos ido ao refeitório tomar a 3.ª refeição, fomos a esse mesmo refeitório passar uma parte importante do serão para aprendermos o que era a tropa. Foi uma conversa aberta e franca onde ficámos a saber, minimamente, quem é que mandava e quem é que tinha que obedecer. Ficámos a saber também que o porta-voz do Comando do Grupo de Esquadrões era o Tenente Sentieiro que ali fez todas as apresentações.

- Ficámos saber que só podíamos sair do Quartel depois de sabermos bem todos os distintivos dos vários postos da hierarquia militar para evitar que fossemos fazer continência ao porteiro do Hotel Abidis, que tinha uma farda parecida com a de um Marechal.

- Ficámos a saber que aquela coisa, onde estávamos a depositar a cinza e as beatas dos cigarros – naquele tempo podia-se fumar em todo o lado – a servir de cinzeiro, de manhã, ao pequeno-almoço, era, como se fosse, uma chávena de Vista Alegre para o café com leite e ao almoço era, como se fosse, um copo de cristal para o vinho, para a água ou para a água com algum vinho.

- Ficámos a saber que tínhamos que comer pão duro todos os dias porque, apesar da Escola receber todos os dias pão fresco da Manutenção Militar do Entroncamento, havia sempre dois dias de pão de reserva para evitar qualquer imprevisto que prejudicasse o nosso direito ao “casqueiro” diário.

- Ficámos ali a saber que passávamos a ser um número e mais nada. Mas foi útil essa conversa.

Logo no dia 11, pela manhãzinha, pela fresca, formámos na parada e marchámos para a terraplanagem, no quartel Sede, onde começámos a tomar contacto com a vala, com as barreiras, com a ponte interrompida, com o galho, com o pórtico, com o slide, e acima de tudo com a lama constante e em todo o lado da tal terraplanagem.

Durante a recruta tivemos de tudo um pouco. Muitas instruções nocturnas pelo Monte do Zé Morto, pelas Ómnias, deslocações diárias pelos arredores da cidade, sempre a marchar com a cadência militar, fosse a subir a Calçada do Monte, fosse a caminho da Carreira de Tiro, fosse a caminho da Escola, a caminho do Campo da Feira, fosse para onde fosse.

Logo no terceiro dia de tropa, uma quinta-feira dia 13, fomos confrontados com uma situação tão inesperada como impensável. Estávamos, como disse, no terceiro dia de tropa. Tínhamos regressado da terraplanagem e tínhamos dez minutos para tomar banho, fazer a barba, fazer a cama e apresentarmo-nos impecavelmente fardados na Parada, mesmo que enlameados mas com as botas devidamente engraxadas e a luzir e os talabartes também a brilhar. Nesse entretanto, eis que um camarada nosso, que terá conseguido tomar banho, ao fardar-se em cima da cama terá dito, mais ou menos isto:
- Eh malta, ninguém faz as camas, não temos tempo, não somos escravos.

Só que na Caserna estava um Cabo Miliciano, de Sargento de Dia, que trocou algumas palavras, mais ou menos azedas, com o tal instruendo. Mas tudo acabou, melhor ou pior, todos nos apresentámos na formatura dentro dos tais 10 minutos. Então, o Oficial porta-voz, dirigindo-se às forças em parada, ordenou que o tal instruendo saísse da formatura e acompanhasse o Sargento da Guarda. E o nosso camarada lá foi e esteve preso até Domingo, em prisão particular, tendo na segunda-feira saído à Ordem a sua detenção durante 18 dias, o que lhe deu 54 dias de dispensas cortadas e assim impedido de ir a casa durante esse período. Mas esse nosso camarada aproveitou o tempo de semiclausura e preparou-se para ir fazer duas cadeiras que lhe faltavam, dum bacharelato, num Instituto qualquer em Lisboa. E fez as cadeiras e passou para o COM. Mais tarde foi parar à Guiné, como eu fui, como foi o tal Cabo Miliciano e também o porta-voz. Penso que nunca nos encontrámos todos na Guiné mas eu encontrei, separadamente, o nosso camarada, já como Alferes Miliciano e o referido Cabo Miliciano, já como Furriel. Coisas da vida militar daqueles tempos.

Não foi só a última noite da recruta que foi longa, como lá mais para a frente referirei, mas ali tudo era longo. Os dias, as marchas, as noites, as instruções, especialmente na terraplanagem, as noites a engraxar as botas de sair e os talabartes para as revistas, sempre longas e rigorosas, o rigor da disciplina, a espera pelo fim-de-semana quando havia e só esse é que era sempre curto. A Cavalaria não era melhor nem pior do que as outras armas. Era diferente.

Um dia ao subirmos a Calçada do Monte, a descer ia o Major Duarte Silva, Director da Instrução, a conduzir o seu jeep Austin e porque o nosso Comandante de Pelotão não mandou olhar à esquerda, tivemos um fim-de-semana diferente. Ordem unida no sábado das 10 às 12 e das 15 às 17 e no domingo o calendário repetiu-se.

Foi durante a recruta que aconteceu a tragédia das grandes inundações da grande Lisboa, concretamente no dia 25 de Novembro de 1967, onde morreram largas centenas de pessoas e ficaram desalojados alguns milhares. Não tivemos intervenção directa nesta tragédia, mas muitos dos nossos camaradas que viviam na zona de Alverca, Carregado e Vila Franca, foram atingidos pela tragédia e chegaram com atrasos significativos naquele princípio de semana e contaram-nos episódios terríveis.
Nesse fim-de-semana, a Especialidade de Atiradores de Cavalaria, que tinha entrada no 3.º Turno, estava na semana de campo e também sofreu as consequências daquela intempérie.

Também fizemos a nossa semana de campo com tempo horrível. Na primeira noite a água chegou a congelar nos cantis que tínhamos à cintura. Nunca montámos tenda porque o “inimigo” estava por ali. Passámos frio, mas frio a sério, tudo para lá da Chamusca. Sempre a pé, a marchar, a andar e até a correr.
Mas algo de diferente parecia estar guardado para o fim da recruta, e estava mesmo.

Foi na última noite. No outro dia era o Juramento de Bandeira, mas o meu pelotão teve que cumprir nessa noite mais uma instrução nocturna visto que tinha faltado, com a devida autorização, a uma dessas instruções, dias antes quando nos juntámos, com o Comandante do pelotão, o Aspirante Maciel, para festejarmos o aproximar do final da recruta. E as contas tinham que se acertar. Não podia haver um pelotão beneficiado e não fazer aquela instrução que estava no calendário. E nós fizemos. O pior foi o resto.
A instrução correu bem dentro das normas estabelecidas e regressámos ao Destacamento da EPC, o nosso Quartel, já depois da uma da madrugada. Estava tudo em silêncio e nós respeitámos todos que estavam a descansar. Porém, quando chegámos ao nosso “quarto particular” com 60 camas – dois pelotões – e nos preparávamos para descansar, verificámos que as nossas camas estavam todas armadilhadas, à espanhola, trabalho efectuado certamente pelos camaradas do outro pelotão.

O meu pelotão no campo, mais propriamente nas Ómnias
Foto de autor desconhecido – Direitos reservados

Começou então a barafunda. Cabeçalho para ali, cabeçalho para acolá, alguns iam-se abrindo e espalhando a palha pelo chão, mas eis quando um desses cabeçalhos bate num pequeno vaso de flores que havia por cima da cama do Plantão, e o tal vaso partiu-se. Foi uma chatice. O Plantão levantou-se, fardou-se e desceu as escadas e foi participar o sucedido ao Oficial de Dia. Passado pouco tempo, com a confusão a complicar-se, já com colchões a voarem e a palha a espalhar-se cada vez mais pelo chão da caserna, entra o Oficial de Dia que ordenou que os responsáveis se apresentassem imediatamente na Parada. A barafunda acabou, mas ninguém se mexia para se apresentar na Parada. Então, três voluntários encheram-se de coragem e lá foram. Mas o Oficial exigiu que eles fossem buscar os outros responsáveis, porque aquilo que viu não era “trabalho” só de três instruendos. E assim, dos tais sessenta, viemos trinta e seis em cuecas, uns descalços, outros em botas e foi-nos tirado o número para não haver mais confusões. Voltámos à caserna e lá limpámos, impecavelmente, aquilo que parecia um palheiro mal organizado. Quando nos deitámos já seriam mais de quatro da matina e a Alvorada tocou à hora regimental.

O dia começou como habitualmente com a formatura geral, a toque de caixa, para o pequeno-almoço e de seguida subimos à caserna para nos barbearmos e fazermos a higiene pessoal possível, visto que só havia dois chuveiros para sessenta homens e o tempo estava cronometrado como acontecia todos os dias.

Aula técnica na Parada do Destacamento da EPC com o Comandante do Pelotão, Aspirante Maciel, a supervisionar os resultados

Mas à hora marcada, lá estávamos devidamente fardados e equipados na Parada, com os talabartes e as botas a brilhar, com o grande capacete na cabeça e a companheira Mauser à mão, a aguardar ordens.
E então, o Porta-voz do Comando do Grupo dos dois Esquadrões – trezentos e sessenta homens – lá deu os avisos da praxe, salientando e passo a citar de memória “que este era o dia mais solene da vossa vida militar pelo que estão autorizados a ir almoçar fora com a família, com as noivas, as mulheres ou as namoradas, à excepção daqueles trinta e seis “gabirus” que ficam detidos até novas ordens”.

Era tudo apurado. O do meio calçava 35 e andou em sapatilhas a recruta toda porque não havia botas para ele. Mas foi apurado

Nós, os tais trinta e seis, ficámos detidos – detenção particular – naquele dia e mais dois dias para não esquecermos onde nos tínhamos metido.
Entretanto, o pior estava para vir. Fomos de férias, por volta das vésperas do Natal desse ano de 1967, e regressámos no dia 4 de Janeiro de 1968, para sabermos a especialidade que nos caberia em sorte e a Unidade para onde iríamos. Mas de facto o pior estava para vir. Nesse dia soubemos que a maior parte da malta – 201 em 360 - chumbou no CSM e passou para o Contingente Geral. E eu fui um deles.

Mais tarde, já na Guiné, no ano de 1970, em data que não posso precisar, mas de certeza ainda no 1.º semestre, encontrei no Cais o Capitão Carvalho de Andrade que tinha sido Comandante do Grupo de Esquadrões na minha recruta em Santarém em 1967. Conheci-o à distância, e com a devida vénia prestei-lhe a continência a que ele correspondeu e disse-me que lhe parecia que me conhecia de qualquer lado. Respondi-lhe que também o conhecia, mas sabia de onde era. Então ele perguntou-me de imediato – estava a ver as minhas divisas de Cabo – se eu tinha sido um dos lixados do 4.º Turno de 67 de Santarém. Claro que lhe respondi que sim, que tinha sido um dos 201 que tinham chumbado. Então, com o vagar que havia, pois estávamos à espera dum barco que nunca mais chegava, penso que era o Carvalho Araújo, disse-me que tudo aquilo aconteceu porque terá havido um erro na classificação das pautas de tiro e o Comandante, porque o Tiro dependia da Direcção de Arma de Infantaria, não quis pedir a revisão das provas pelo que os chumbos calharam quase todos a Santarém onde só estavam 360 instruendos, ao passo que no CISM em Tavira e no RI5 nas Caldas da Rainha estariam cerca de 1200, em cada lado, e onde os chumbos não teriam chegado às duas dezenas. Era a tropa a funcionar no seu melhor.

Porque as conversas são como as cerejas, aproveito para recordar que o Capitão Carvalho de Andrade que acima referi, morreu na Guiné em 25 de Julho de 1970, num desastre do helicóptero, que vinha a voar em linha – eram três helis - e que caiu no Rio Mansoa devido a um tornado. Naquele helicóptero vinham quatro Deputados à Assembleia Nacional - Dr. James Pinto Bull, Dr. José Pedro Pinto Leite, Dr. Leonardo Coimbra e José Vicente de Abreu que também morreram nesse acidente assim como a tripulação do Heli.
As buscas duraram vários dias, com trabalho exaustivo de forças da Marinha, e só foram recuperados dois corpos, sendo um do Dr. Leonardo Coimbra e o outro do Capitão de Cavalaria Carvalho de Andrade, cujo corpo esteve em câmara ardente passados uns dias na Sé de Bissau, onde eu tive oportunidade de lhe prestar as minhas últimas homenagens.

Três dias depois da tragédia do Heli, em 28 de Julho de 1970, morre Salazar, e as atenções da Comunicação Social, apesar de nunca terem sido muito activas, porque a censura escondia tudo e mais alguma coisa que se referisse à guerra, aos mortos e aos acidentes, mesmo assim passam para segundo plano o impacto com o desastre da Guiné e creio que foi mais um assunto que caiu no esquecimento.

Para terminar, eu que só queria contar a história da noite mais longa da minha recruta, acabei por me esticar desde o 4.º trimestre de 1967 até ao último de 1970. Aliás, sempre foram mais de 38 meses de tropa, dos quais mais de 25 na Guiné.

As minhas desculpas a quem teve a coragem e a paciência suficientes para ler todo este escrito. Obrigado.

Carlos Pinheiro
16.06.18
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18026: Estórias avulsas (88): Recordações da minha passagem por terras da Guiné, vaca morta junto ao arame farpado (Abel Santos, ex-Soldado Atirador Art.ª)

Guiné 61/74 - P18802: Convívios (865): XXXIII encontro anual da CART 3494 (Xime e Mansambo, 1972/74) - Seia, 9 de junho de 2018 (Jorge Araújo)

Foto nº 1 > Oliveira do Hospital > Nogueira do Cravo > Capela do Senhor das Almas,  local do XXXII Encontro-convívio da CART 3494... Foto de família.


Jorge Alves Araújo, ex-Furriel Mil, Op Esp /RANGER,  
CART 3494 (Xime-Mansambo, 1972/1974): nosso coeditor


XXXIII ENCONTRO/CONVÍVIO ANUAL DA CART 3494
"OPERAÇÃO SENHOR DAS ALMAS, NOGUEIRA DO CRAVO - SEIA"

EM 9 DE JUNHO DE 2018


1. INTRODUÇÃO

Quarenta e quatro anos após o seu regresso à Metrópole (Lisboa), depois de cumprida a sua Missão Ultramarina no TO da Guiné, no período de 1971 a 1974 [correspondente a vinte e oito meses], o contingente da Companhia de Artilharia 3494 [CART 3494], a terceira Unidade de quadrícula do BART 3873 [Bambadinca], que esteve aquartelado no Xime, Enxalé, Mansambo e Ponte do Rio Udunduma, continua activo, realizando as suas "operações" anuais [encontros/convívios] em diferentes regiões do território nacional.

Recorda-se, a propósito, que este projecto foi iniciado em 1986, com o (re)agrupar das/dos tropas, com a 1.ª edição a ser realizada em 14 de Junho desse ano, no Restaurante «O Frangueiro», em Aver-o-Mar, Póvoa de Varzim. 

O Encontro deste ano, o XXXIII consecutivo, teve lugar no passado dia 9 de Junho, sábado, na região Centro, também conhecida pela «Região das Beiras», com o colectivo dos ex-combatentes a ter de cumprir as suas tarefas em dois distritos: Coimbra e Guarda.

No primeiro caso, no lugar da Capela do Senhor das Almas, a um quilómetro da freguesia de Nogueira do Cravo, Município de Oliveira do Hospital, verificou-se a chamada, e o "controlo", das quatro dezenas de ex-combatentes disponíveis para esta acção, onde foi preparado o «golpe de mão» à Tabanca «Restaurante Pastor da Serra», sito no Município de Seia, distrito da Guarda.


2. O DESENROLAR DAS ACÇÕES


A organização desta edição XXXIII, que esteve a cargo do camarada José do Espírito Santo Vicente, de Nogueira do Cravo, previa a concentração a partir das 09h30 para os mais madrugadores, como era o caso dele, pois tinha de dar o exemplo como o mais responsável e, naturalmente, como anfitrião.

Foto nº 2 > Capela do Senhor das Almas, Nogueira do Cravo,
Oliveira do Hospital
Com o decorrer do tempo, cada um dos ex-combatentes, acompanhado dos seus familiares, foi chegando no seu meio de transporte ao local previamente acordado – Largo da Capela do Senhor das Almas (imagem ao lado) – depois de ter percorrido mais ou menos quilómetros em função do início da viagem. Os mais atrasados (e houve alguns) não tiveram outra alternativa senão ir directamente para o local do "ataque", em Seia.

Para uma estimativa das distâncias até Seia, referem-se alguns exemplos: de Coimbra (98 kms), da Guarda (67 kms), de Viseu (45 kms), de Lisboa (298 kms), do Porto (163 kms) e de Viana do Castelo (235 kms).

Os ex-combatentes da CART 3494 que compareceram na Capela Senhor das Almas, freguesia de Nogueira do Cravo, ei-los aqui  na «foto de família» [vd. foto acima].

Era meio-dia quando se deu início à marcha da "Coluna Auto(móvel)", num percurso de vinte e dois kms pela Estrada Nacional 17, rumo ao objectivo, em Seia. Aí chegados, cada um dos membros ocupou a sua posição em redor dos diferentes alvos de modo a cumprir, com sucesso, a sua missão individual em interacção com os seus camaradas, dela fazendo depender, justamente, o sucesso colectivo das "forças" mobilizadas.

Durante a operação tudo decorreu como planeado, pelo que no final a satisfação era plena para os oitenta participantes, que uma vez mais recuperaram muitas das suas memórias de tensões e emoções da "aventura africana". Houve música, muita animação, e por último cantou-se os parabéns por mais um aniversário. Nessa ocasião voltámos a erguer os nossos copos brindando aos presentes e aos ausentes, com votos de felicidades e de muita saúde para todos, no sentido de no próximo ano podermos repetir, no mínimo, os resultados agora obtidos e, se possível, com mais presenças.

Despedimo-nos até ao próximo Encontro Anual – o XXXIV – a realizar no dia 1 de Junho de 2019, sábado, no Município de Montemor-o-Velho, organização a cargo do camarada António de Sousa Bonito. Até lá…

3.  FOTOGALERIA


Foto nº 3


Foto nº 4

Fotos nº 3 e 4 > Salão do Restaurante Pastor da Serra durante o convívio da CART 3494


Foto nº 5  > O camarada José Vicente, organizador do Encontro, na companhia de sua esposa.



Foto nº 6


Foto nº 7

Fotos nºs 6 e 7 > Actuação do dueto musical do XXXIII Encontro, que esteve brilhante, constituído pelos camaradas Américo Russa, ex-Furriel Vagomestre da CCS do BArt 3873, e Acácio Correia, ex-Alferes do 3.º Gr Comb da CArt 3494. [Ambos membros da nossa Tabanca Grande]



Foto nº 8 >Sousa de Castro e João Godinho


Foto nº 9 > Da esquerda para a direita, Américo Russa, Jorge Araújo e António Bonito


Foto nº 10 > Bolo comemorativo do XXXIII Encontro/Convívio dos ex-combatentes da CART 3494.

Fotos (e legendas): Jorge Araújo e Sousa de Castro (2018).

Como nota final, dá-se conta que entre o Encontro de 2017 e o deste ano o colectivo da CART 3494 perdeu mais três membros, a saber:

● António Alves Ramos (sold) – Alvoco da Serra, Seia († 7 de Julho de 2017);

● Orlando Bilro Bagorro (1º sarg) – Damaia, Amadora († ? de Fevereiro de 2018);

Augusto Vieira Fidalgo (sold) – Santa Marinha, Vila Nova de Gaia († 4 de Abril de 2018).

Considerando que estes casos não mereceram a devida atenção durante o Encontro, por esquecimento colectivo, que só mais tarde foi notado, importa agora reparar esse lapso tornando público estas ocorrências, ao mesmo tempo que endereçamos aos familiares dos três camaradas falecidos as nossas mais sentidas condolências.

Obrigado pela vossa atenção.

Com um forte abraço de amizade.

Jorge Araújo

13JUN2018
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Nota do editor:

Último poste da série > 30 de junho de 2018 > Guiné 61/74 - P18796: Convívios (864): VIII Encontro da CCAÇ 1586, "Os Jacarés" (Piche, Ponte Caium, Nova Lamego, Béli, Madina do Boé, Bajocunda, Copa, Canjadude, 1966/68): os cinquenta anos do regresso, comemorados em 19 de maio p.p., em Abrantes (Jorge Araújo)

Guiné 61/74 - P18801: Notícias (extravagantes) de uma Volta ao Mundo em 100 dias (António Graça de Abreu) - Parte XXXVII: Mascate, sultanato de Omã, onde a água pode ser mais cara do que o petróleo...




Muscat (ou Mascate, sultanato de Omã ) > A grande mesquita, mandada construir pelo sultão Qaboos bin Said Al Said (n. 1940)



Fotos (e legendas): © António Graça de Abreu(2018). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Continuação da publicação das crónicas da "viagem à volta ao mundo em 100 dias" [3 meses e oito dias], do nosso camarada António Graça de Abreu.

Escritor, poeta, sinólogo, ex-alf mil SGE, CAOP 1 [Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74], membro sénior da nossa Tabanca Grande, e ativo colaborador do nosso blogue com cerca de 220 referências, é casado com a médica chinesa Hai Yuan, natural de Xangai, e tem dois filhos, João e
Pedro. Vive no concelho de Cascais. Deu recentemente, em 20 de junho passado,  uma longa entrevista (c. meia hora) ao canal Sporting TV, programa Conversas na Lua, sobre a sua história de vida, a sua obra literária e a sua "relação especial" com a China e a cultura chinesa. Vd. aqui o vídeo em You Tube > Sporting Clube de Portugal.

Hai Yuan e António Graça de Abreu

2. Sinopse da série "Notícias (extravagantes) de uma Volta ao Mundo em 100 dias" (*)

(i) neste cruzeiro à volta do mundo, o nosso camarada e a sua esposa partiram do porto de Barcelona em 1 de setembro de 2016; [não sabemos quanto despenderam, mas o "barco do amor" deve-lhes cobrado uma nota preta: c. 40 mil euros, no mínimo, estimamos nós];

(ii) três semanas depois de o navio italiano "Costa Luminosa", com quase três centenas de metros de comprimento, sair do Mediterrâneo e atravessar o Atlântico, estava no Pacífico, e mais concretamente no Oceano Pacífico, na Costa Rica (21/9/2016) e na Guatemala (24/9/2017), e depois no México (26/9/2017);

(iii) na II etapa da "viagem de volta ao mundo em 100 dias", com um mês de cruzeiro (a primeira parte terá sido "a menos interessante", diz-nos o escritor), o "Costa Luminosa" chega aos EUA, à costa da Califórnia: San Diego e San Pedro (30/9/2016), Long Beach (1/10/2016), Los Angeles (30/9/2016) e São Francisco (3/4/10/2017); no dia 9, está em Honolulu, Hawai, território norte-americano; navega agora em pleno Oceano Pacífico, a caminho da Polinésia, onde há algumas das mais belas ilhas do mundo;

(iv) um mês e meio do início do cruzeiro, em Barcelona, o "Costa Luminosa" atraca no porto de Pago Pago, capital da Samoa Americana, ilha de Tutuila, Polinésia, em 15/10/2016;

(v) seguem-se depois as ilhas Tonga; visita a Auckland, Nova Zelândia, em 20/10/2016;

(vi) volta pela Austrália: Sidney, a capital, e as Montanhas Azuis (24-26 de outubro de 2016);

(vii) o navio "Costa Luminosa" chega, pela manhã de 29/10/2016, à cidade de Melbourne, Austrália; visita à Austrália Ocidental, enquanto o navio segue depois para Singapura; o Graça de Abreu e a esposa alugam um carro e percorrem grande parte da costa seguindo depois em 8 de novembro, de avião para Singapura, e voltando a "apanhar" o seu barco do amor...

(viii) de 8 a 10 de novembro. o casal está de visita a Singapura, seguindo depois o cruzeiro para Kuala Lumpur, Malásia (11 de novembro);  Phuket, Tailândia (12-13 de novembro); Colombo, capital do Sri Lanka ou Ceilão ou Trapobana (segundo os "Lusíadas", de Luís de Camões. I, 1), em 15-16 de novembro. de 2016;

(ix) na III (e última) parte da viagem, Graça de Abreu e a esposa estão, a 17 de novembro de 2016, em Cochim, na Índia, e descobrem a cada passo vestígios da presença portuguesa; a 18, estão em Goa, seguindo depois para Bombaím (20 e 21 de novembro de 2016);

(x) com 2 meses e 20 dias, depois da Índia, os nossos viajantes estão Dubai, Emiratos Árabes Unidos, passando Muscat, o sultanato de Omã, em data que já não podemos precisar, de qualquer modo já estamos em finais de novembro ou já  princípios de em dezembro de 2016; a viagem vai terminar em Roma.


Viagem de volta ao mundo em 100 dias > Muscat, sultanato de Omã [s/d, finais de novembro de 2016] (pp. 17-19], da terceira e última Parte]


O António, tendo atrás o forte de Muttrah
Muscat, sultanato de Omã

Desde o mar, vários fortes, tipo castelo, plantados em montes escalavrados, pontilham o horizonte quase circular da baía de Muscat. Foram construídos em finais do século XVI pelos inevitáveis portugueses, aquela gente aventureira e doida de quem herdei o sangue e que um dia resolveu ir lavrar o mar, e deixar na vastidão do mundo um padrão, uma cruz, um pendão soluçante.

O forte de Muttrah, assim como os outros próximos, de nome Al Marani e Al Jalali (São João) - estes dois agora encaixados nos espaços de um dos palácios do sultão de Omã -, estão impecavelmente restaurados e conservados. Todos fechados ao público, o forte de Muttrah funciona ainda hoje como instalação militar e, no alto, é bem visível uma bateria de modernos canhões apontados à entrada da baía.

Muscat [, em português, Mascate]foi conquistada por Afonso de Albuquerque em 1507 e desde então funcionou como um lugar estratégico para os portugueses nas rotas entre a Índia, o Golfo Pérsico e o Mar Vermelho. Hoje, este sultanato de Omã, três vezes maior do que Portugal, conta com 4,5 milhões de habitantes, metade dos quais são imigrantes, muitos deles sazonais.

A maior parte do território estende-se por inóspitos desertos aparentemente esquecidos. Mas é aí, sob milhões de toneladas de areia, que descansam imensas jazidas de petróleo e gás natural, o ouro vermelho escuro e os hidrocarbonetos incolores que enchem de dólares os cofres do sultanato. 

O sultão Qaboos bin Said Al Said está no poder desde 1970, é senhor de uma enorme fortuna, tem já setenta e seis anos de idade, mas aparece em fotografias espalhadas por tudo quanto é sítio aparentando uns quarenta [, foto à direita]. Possui três palácios na Europa, em Marbella, Espanha, na Inglaterra e na Alemanha. 

No porto de Muttrah, Muscat, em frente ao nosso Costa, estão ancorados três grandes iates que lhe pertencem e dizem-me que tem mais dois navios para se passear, atracados noutros portos de Omã. Conta também com sete palácios no sultanato, onde reside alternadamente, saltitando de um para outro. Ninguém costuma saber exactamente em que palácio se encontra o sultão que, só de longe em longe, se dá à vista de quem quer que seja, mas que me dizem ser um benemérito para o seu povo, estimado pela maioria dos omanis, os cidadãos do sultanato. 

Nos quarenta e sete anos de poder do sultão Qaboos, o território de Omã mudou muito. No passado, eram conhecido como entreposto de escravos, terra de pescadores e plataforma de venda de armas brancas, sobretudo adagas, punhais e cimitarras de variados tamanhos, e de eficácia garantida, comprovada. A descoberta do petróleo em 1964 veio alterar, por completo, o estatuto e as realidades de Omã. O actual sultão - quando jovem educado em Inglaterra e na Alemanha -, tem acompanhado inteligentemente o crescimento da região, retirando daí os benefícios a que acha ter direito e, com tantos dólares a inundarem-lhe os palácios e os iates, melhora também as condições de vida da população.

Muscat, que cresceu, a partir de Muttrah neste espaço da baía, vive do turismo e dos pequenos negócios. Recomendo a ida ao souk, o mercado e zona comercial, não muito diferente dos souks de outros países árabes, onde se vende de tudo, de ouro a babuchas, de especiarias às adagas, de perfumes aos estilizados vestidos de seda, mais toneladas de quinquilharia, a preços baratos. E como são vaidosas algumas mulheres muçulmanas! Sob o niqab negro, a túnica que lhes cobre todo o corpo, excepto a fresta dos olhos, usam roupa de costureiros franceses, à venda também neste souk, garante-me o guia local.

Por detrás da baía e dos montes de pedra acastanhada, que delimitam Muttrah, a sul e a oeste, abre-se a grande Muscat com quase um milhão de habitantes. Partimos em busca da maior mesquita do sultanato de Omã, a uns quinze quilómetros de distância. Trata-se de um conjunto arquitectónico recentemente concluído, com uma torre e quatro minaretes, pouco capaz de encher o olho ao turista em viagem mas que será, por certo, um excelente lugar para os muçulmanos rezarem a Maomé e pedirem as generosas bênçãos de Alá. 

Atravessamos a zona dos ministérios e vastos complexos habitacionais, mais uma zona de stands de automóveis, Porsches, BMWs, Bentleys, Rolls-Royce. O dinheiro do petróleo, e dos subsequentes negócios, dá para dez mil extravagâncias. Mais adiante, deparamo-nos com uma instalação enorme onde se procede à dessalinização da água do ar. Enormes depósitos guardam a, agora, água doce. A propósito, dizem-me que em Muscat chove em média cinco dias por ano, apenas em Dezembro e Janeiro, por isso a água, fundamental para todas as vidas, pode ser mais cara do que o petróleo.

(Continua)

Guiné 61/74 - P18800: Notas de leitura (1080): História das Missões Católicas na Guiné, por Henrique Pinto Rema; Editorial Franciscana, Braga, 1982 (7) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Outubro de 2016:

Queridos amigos,
Chegámos à penúltima etapa, a atividade missionária entre 1955 e 1973.
Em 1955, a Missão da Guiné Portuguesa foi elevada à categoria de Prefeitura Apostólica. É um período de construções e de intensificação da ação educativa e existencial. Em 1961, começa o refluxo missionário com a chegada de contingentes militares que ocupam instalações de muitas missões, e muitos missionários, por insegurança, abandonam lugares. Como observa o Padre Pinto Rema, a atividade missionária foi apanhada entre dois fogos, e dá o exemplo do Padre António Grillo, da Missão de Bambadinca, que ainda é recordado pelos muçulmanos e animistas de Bambadinca, Samba Silate e Nhabijões.

Um abraço do
Mário


História das Missões Católicas na Guiné, por Henrique Pinto Rema (7)

Beja Santos

Prevíamos ser este o texto derradeiro da necessariamente longa recensão à incontornável obra “História das Missões Católicas da Guiné”, por Henrique Pinto Rema, Editorial Franciscana, 1982. Não será assim, haverá ainda um texto sobre as missões católicas na República da Guiné-Bissau.

O período ora em análise compreende 1955 até 1973. Temos agora os franciscanos na Prefeitura Apostólica. Com efeito, em 1955, a chamada Missão da Guiné Portuguesa foi elevada à categoria de Prefeitura Apostólica. D. Martinho Carvalhosa, franciscano português, é confirmado como Prefeito Apostólico. O gesto da Santa Sé coroava o esforço missionário dos últimos 15 anos. O autor descreve assim D. Martinho:  
“Sempre insatisfeito com os outros, ele está em toda a parte a dar palavra de ordem aos seus padres e religiosos e aos seus professores-catequistas. Como construtor de igrejas, de capelas, de residências missionárias e de escolas, os gerentes das casas fornecedoras de materiais, os administrativos da Guiné e os encarregados das obras estão-lhe constantemente no pensamento para lhes regatear preços e pedir descontos especiais em ajudas. Ele próprio empenha, em meados de 1954, ao Banco Nacional Ultramarino, o seu vencimento de 500 contos, depois de ter obtido autorização da Santa Sé e do seu conselho missionário”.

E segue-se ume esclarecimento importante:  
“Monsenhor Carvalhosa está a par dos movimentos subversivos, ainda subterrâneos, em 1955. Acompanhá-los-á de perto e com ansiedade, até à sua manifestação violenta na madrugada de 21 de Julho de 1961, no ataque a S. Domingos. Ele previu o que representavam as greves dos estivadores no cais do Pidjiquiti nos dias 6, 7 e 8 de Março de 1956 e os recontros então havidos com as forças da ordem, as organizadas debandadas para território estrangeiro (aliás sempre notadas pelo Superior da Missão de Bula em 1956 na sua área), a existência de certos grupos de orientação política e rácica e a rebelião do Sul contra os impostos”.

Monsenhor Carvalhosa regressa à metrópole em Setembro de 1962, sucede-lhe o Padre João Ferreira, que chega a Bissau no ano seguinte. Por razões de saúde, retira-se em 1965. Nas ausências dos Prefeitos Apostólicos tomou quase sempre conta do expediente da Circunscrição Missionária da Guiné o Padre Amândio Neto, franciscano português que chegara a Bolama em 1941.

Pois bem, os franciscanos da Província de Santo António de Veneza chegam a Bissau em 1955, logo entre eles D. Settimio Ferrazzetta, que irá ter um papel da maior importância na tentativa de reconciliação entre as partes em litígio no dramático período do conflito político-militar no fim do século. Até ao ano de 1969 a única congregação feminina que exerceu atividade na Guiné foi a das Irmãs Franciscanas Hospitaleiras da Imaculada Conceição. Em 1969, a Prefeitura pediu ao governo da Guiné a entrada de mais uma congregação irmãs religiosas estrangeiras, as Missionárias Franciscanas do Coração Imaculado de Maria, com sede em Roma.

Um apontamento sobre a ação educativa. Em Julho de 1954, Monsenhor Carvalhosa escrevia: “Na Guiné é absolutamente certo que a diferença entre o indígena das nossas escolas e os assimilados é nula ou simplesmente mínima”. Um acontecimento político acabou por contribuir para a melhoria da ação educativa na esfera missionária. O Governador Melo e Alvim chega à Guiné no início de Janeiro de 1954 e logo se lançou nos preparativos da viagem do Presidente da República General Craveiro Lopes, que ocorreu em Agosto de 1955. Apareceu dinheiro e as obras começaram a sair dos alicerces. Escreveu então o Prefeito Apostólico: “Foi possível que durante 18 meses, em construções, movimento escolar, assistência e meios culturais as missões católicas avançassem 10 anos”. Mas as dificuldades eram inúmeras, como escreve Pinto Rema:  
“O pessoal docente era formado nas escolas das Missões de Bula e Bafatá. Os rapazes dali saídos não eram muitos nem possuidores de grande bagagem cultural. No entanto, tal pessoal docente era único capaz de se sujeitar a todos os ambientes e a trabalhar nas piores condições. A ausência de escolas de adaptação no Leste da província da Guiné explica-se pela extensão enorme daquela área, servida unicamente pelas missões de Bafatá e Bambadinca e sem meios de transportes capazes para a tal constante fiscalização, sempre necessária”.
Na ação assistencial, ganha relevo o histórico que o investigador apresenta acerca da leprosaria de Cumura.

Bastante interesse tem também o conjunto de notas que o autor intitula “As Missões da Guiné na conjuntura da guerrilha”. As instalações das missões vão sendo sacrificadas com a chegada de contingentes militares. Logo a Missão de Mansoa foi a primeira a ser sacrificada com entrega ao Exército do pavilhão acabado de construir, em Maio de 1961. O Governador Peixoto Correia pediu à Prefeitura, em Junho de 1961, a cedência de duas salas, do refeitório e dos sanitários da missão de Bula. Foi ocupada a escola missionária de Mansabá e também a Missão de Suzana foi ocupada em Outubro de 1961. Nesse mesmo mês, o comandante militar pede à Prefeitura o edifício das Missões de Catió e depois Teixeira Pinto, Bambadinca, Ingoré e Xitole. Tudo muda em Bissau com o êxodo provocado pela guerra e o autor descreve detalhadamente o funcionamento das missões neste período crítico. Dar-se-ão conflitos entre missionários e as Forças Armadas. Veja-se o exemplo da Missão de Bambadinca que atingiu diretamente um missionário altamente prestigiado e que trabalhava na área populosa de Samba Silate e Nhabijões. Vindo de férias em Abril de 1962, o Padre António Grillo vê-se entre dois fogos, guerrilheiros do PAIGC e Forças Armadas, os grupos comandados por Domingos Ramos já estão ativos. O Padre Grillo vê-se envolvido, é preso em Fevereiro de 1963 e recambiado para Itália. A Missão de Bambadinca é ocupada pelo Exército que nunca mais a abandonou. Pinto Rema explica que o mal funcionamento das escolas no mato é fenómeno anterior à chegada da guerrilha, mas o período de subversão a partir de 1962 alterou tudo. Falando ainda de Bambadinca, diz o autor que as escolas da Ponta do Inglês, Ponta Luís Dias, Finete e Santa Helena não abriram em Outono desse ano por falta de frequência dos alunos e por causa da intranquilidade da área. A guerrilha iria afetar profundamente a atividade missionária em todo o território, incluindo Bissau e os Bijagós.

(Continua)
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Nota do editor

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