Queridos amigos,
Aos poucos, desvelam-se situações de negócios ilícitos durante a I Guerra Mundial, em solo guineense. Os interesses alemães eram enormes, seguramente que o protocolo assinado pelas principais casas comerciais em janeiro de 1916, inibindo quem quer que fosse a negociar com os alemães montou máquinas expeditas de colaboração com empresas sem escrúpulos.
O espantoso do caso Salagna é o recurso a intermediários também sem escrúpulos e, como se poderá ler destes episódios folhetinescos, a casa mãe de Salagna dizia nada saber…
Um saboroso conjunto de documentos que traz outro modo de ver as coisas na Guiné, em 1916.
Leiam que vale a pena.
Um abraço do
Mário
L’affaire Salagna, Guiné, I Guerra Mundial:
Primeiro estavam os negócios, depois o patriotismo
Beja Santos
Na documentação avulsa que compulso no Arquivo Histórico do BNU, dei com uma troca de correspondência em 1916 que envolve empresas francesas a fazer negócios com casas alemãs, no momento exato em que Portugal já pendeu para entrar em guerra ao lado da Grã-Bretanha e França.
O primeiro documento data de Bafatá, é escrito por Vasco Calvet Magalhães, administrador de circunscrição e endereçado ao gerente do BNU em Bolama:
“A casa Rudolf Titzek & Ctª carregou em Bissau no motor Paula cerca de 10 toneladas de pólvora com destino a Bafatá. No dia em que esse navio deveria seguir para esta localidade apareceu no Boletim Oficial da Província a portaria proibindo a navegação alemã em toda a Província. A casa Rudolf Titzek & Ctª, não sei como, obteve permissão para desembaraçar essa pólvora e por intermédio do seu empregado Max Laval contratou a venda com o agente da casa Salagna, o Snr. Rombaut. Para encobrir tão escandalosa transacção de uma casa alemã para uma casa francesa, serviu de intermediário ainda uma terceira pessoa que foi o negociante Francisco Monteiro, negociante em Bambadinca, o cliente mais importante da casa Rudolf Titzek & Ctª, com o capital de cuja firma negoceia. Receando as casas alemãs que os seus bens fossem confiscados, trataram cada uma destas casas em liquidar por qualquer preço as mercadorias que tinham em armazém e nas lojas, como exemplo a casa Bafatá que num dia ficou com as prateleiras vazias. Como me interessava o assunto, pus uma pessoa de confiança em casa de Francisco Monteiro em Bambadinca e outra na casa Pachen, em Bafatá, a sucursal da firma Rudolf Titzek & Ctª, e dois dias depois sabia o seguinte:
I – que o negociante Francisco Monteiro além de grande quantidade de tabaco e diversas mercadorias que tinha recebido da referida firma alemã, recebeu em Bafatá do agente da mesma casa, então demissionário, Pedro Mendes Moreira, cerca de 13.000 escudos em dinheiro que eles receavam lhe fossem também apreendidos.
II – de Bambadinca fui informado que cerca de 10 toneladas de pólvora pertencentes à firma já citada estavam armazenadas em casa de Francisco Monteiro. Em minha consciência vi que devia apreender essa pólvora visto a sua origem suspeita, mas consultei o governo que me ordenou que efectuasse a apreensão.
Chamei o tal Monteiro que é homem de poucos escrúpulos e sem sombra de dignidade ou patriotismo e comunicando-lhe o que ia fazer, o homem ficou confuso e perturbado.
Cerca das 13 horas procurou-me e disse-me o seguinte:
‘Eu não sou senão intermediário neste negócio. A pólvora pertence à firma alemã mas foi vendida à casa Salagna. Ficou assim descoberta a negociata, que aliás era a confirmação de tudo o que me fora dito.
Não há pois dúvida que a casa Salagna negoceia ou negociou durante muito tempo com a casa Rudolf Titzek & Ctª e que o seu agente nesta colónia é de toda a suspeita, apesar de belga’.”
O segundo documento que encontrei data de Bafatá, 3 de junho, é redigido pelo Administrador da Circunscrição Vasco Calvet de Magalhães e é dirigido ao gerente do BNU em Bolama:
“A carta de V. Ex.ª. de 12 de Maio não teve logo resposta porque estava ausente no mato a mais de 150 km da Sede da Circunscrição, acompanhando Sua Ex.ª o Governador na visita que se dignou aqui fazer, e quando no regresso quis responder telegraficamente a V. Ex.ª não o pude fazer até hoje porque as comunicações telegráficas estão interrompidas entre Bambadinca e Buba e Bafatá.
Resolvi portanto escrever a V. Ex.ª. informando-o do que deseja.
I) Caso Salagna:
Esta casa muito embora francesa é dirigida por um belga que até há pouco teve sempre negócios com as casas alemãs. Com receio de passar algum vexame, como era natural, este belga que se chama Jules Rombaut, homem sem patriotismo nem dignidade moral, serviu-se do francês já falecido aqui há pouco, Max Laval, para fazer quantas transacções quis com a Casa Rudolf Titzek. O último negócio foi o da compra de cerca de 10 toneladas de pólvora no qual serviu de intermediário o negociante Francisco Monteiro (procurador, agente e cliente da Casa Rudolf Titzek em Bambadinca) e que eu apreendi em Bambadinca. Isto não são informações graciosas, incompatíveis com a minha posição e carácter, mas tão-somente a expressão da verdade e provado com os documentos de que pedi certidão extraídos do espólio do falecido Max Laval e que me foram fornecidos pelo cônsul francês nesta colónia. Além disso, o negociante Francisco Monteiro teve a franqueza de confessar tudo nesta administração quando se fez a apreensão. Este negociante, porém, não tem carácter nem dignidade porque além de continuar nas mãos da Casa de Titzek, quis num requerimento que fez ao Governo da Província provar que a pólvora lhe pertencia, juntando o despacho que fez em Bissau.”
O terceiro documento data de Bissau, 6 de junho, é confidencial e foi escrito pelo Vice-Cônsul da França na Guiné Portuguesa, Gustave de Coutuly, dirige-se ao gerente do BNU em Bolama, diz o seguinte:
“No decurso da sua amável visita, ontem, confiou-me ter recebido instruções da vossa Sede para cessar todo e qualquer crédito às empresas que continuaram a manter com os nossos inimigos comuns relações comerciais.
Pediu-me, por outro lado, e com o cunho de sigilo, que lhe desse a relação das casas francesas que se encontrassem nesta situação.
Bem gostaria de lhe responder pela negativa, mas devo à minha consciência de homem e de representante da França na Guiné Portuguesa de lhe denunciar os Estabelecimentos Salagna. A apreensão de 10 toneladas de pólvora operada em Bafatá pelo Sr. Administrador Vasco de Sousa Calvet de Magalhães e as declarações formais feitas a este distinto funcionário pelo intermediário cabo-verdiano Francisco Monteiro, implicado no negócio são suficientes para estabelecer que os Estabelecimentos Salagna não cumpriram o compromisso solene redigido em 1 de janeiro de 1916 e continuaram a negociar com a empresa alemã Rudolf Titzek & Cta.
No que concerne à Companhia Agrícola e Comercial dos Bijagós, fui informado pelo agente consular da Bélgica e da Grã-Bretanha que os seus directores teriam recentemente comprado em Cacheu o stock de arroz que possuía a mesma casa alemã Rudolf Titzek.”
Em 12 de junho, o gerente de Bolama escreve para a casa Salagna o seguinte:
“As informações que recolhemos são de tal forma peremptórias que não nos é possível, como seria nosso desejo, modificar a resolução que fomos forçados a tomar.
Vamos, porém, pela primeira mala, submeter o assunto à apreciação da nossa Sede e esperamos a decisão.”
E de facto, a 16 de junho segue para Lisboa o seguinte documento:
“Como tivéssemos aqui tido algumas denúncias de que a firma Salagna negociava com casas alemãs e de que ultimamente lhe tinha sido apreendida em Bafatá uma porção de pólvora comprada a alemães, escrevemos ao administrador de Bafatá, homem sério e o melhor funcionário da Província, Snr. Calvet de Magalhães, perguntando-lhe o que havia.
Pelas cópias que juntamos, verificarão V. Exas. as informações colhidas.
Podem V. Exas. estar certos de que toda a resolução que tomámos neste sentido será sempre comprovada, para que não haja dúvidas sobre o nosso modo de proceder, e porque bem avaliamos quanto melindroso é o assunto.”
De outra documentação espúria, apura-se que já era larvar a inquietação das casas alemãs e dos seus cúmplices, desde o início do ano de 1916. Com efeito, assinara-se um protocolo em que todas as casas comerciais da Guiné, mormente as estrangeiras, deixariam de fazer negócios com os alemães. Houve quem não respeitasse o protocolo assinado, a Salagna foi uma delas, estava sob vigilância desde que transaccionara 1000 toneladas de coconote à casa alemã Rudolf Titzek, contrariando a lei francesa de abril de 1915. O gerente da casa Nouvelle Société Commerciale Africaine, o cônsul belga e também vice-cônsul de Inglaterra, protestou junto do governo Dakar.
Quando o gerente de Bolama foi a Bissau, enquanto esperava informações de Calvet de Magalhães, entrevistou-se com este vice-cônsul inglês que lhe mostrou a lista negra dos que negociavam com os alemães: Etablissement Salagna, Empresa Agrícola e Comercial de Bijagós Lda. e Joaquim António Pereira.
Foi nessa altura que o gerente enviou de Bolama para a Sede a seguinte informação:
“A qualquer destas casas entendemos que é perigoso dar-lhes novamente créditos sem que elas transfiram os seus gerentes como satisfação e assim mostrarem que foi sem o seu conhecimento que tais negócios se realizaram. Com o Etablissement Salagna há ainda a resolver a apreensão da pólvora feita pelo Governo da Província de que tratava a carta do administrador de Bafatá. Enfim, como o gerente da casa Salagna será brevemente chamado às fileiras belgas, segundo nos informam, só depois disso entendemos que sem risco poderemos reatar as interrompidas relações comerciais se também a casa de Bordéus, da Salagna, conseguir que seja eliminado o seu nome da lista negra”.
Visita de Raul Ventura, Subsecretário de Estado das Colónias aos Serviços de Saúde em Bissau, 1953.
Bubaque, fotografia retirada do livro livro “Uma Apoteose- duas visitas - uma despedida”, obra relacionada com a partida do governador Raimundo Serrão, 1953.
Antigo Palácio do Governador, Ilha de Bubaque, fotografia de Francisco Nogueira, retirada com a devida vénia do livro “Bijagós, Património Arquitetónico”, Edições Tinta-da-China, 2016.
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Nota do editor
Último poste da série de 27 de junho de 2018 > Guiné 61/74 - P18785: Historiografia da presença portuguesa em África (121): A Guiné nas duas guerras mundiais, dois curtos episódios (Mário Beja Santos)