Wang Zhaojun (76 a.C.-33 a.C.), uma das quatro beldades da China clássica. Foi contemporânea de Cleópatra (69 a. C. - 30 a.C.)
Imagem: cortesia de António Graça de Abreu. Fonte: descomhecida.
1. Mais um excerto do "meu diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983", do nosso camarada António [José] Graça de Abreu. (*)
[ Recorde-se que ele viveu na China, em Pequim e en Xangai, entre 1977 e 1983; foi professor de Português em Pequim (Beijing) e tradutor nas Edições de Pequim em Línguas Estrangeiras. Na altura, ainda era, segundo sabemos, simpatisante ou militante do Partido Comunista de Portugal (marxista-leninista), o PC de P (m-l), fação Vilar (Eduímno Gomes), alegadamente o único recomhecido pela República Popular da China.
Ex-alf mil SGE, CAOP 1 (Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74), é membro sénior da nossa Tabanca Grande, e ativo colaborador do nosso blogue com mais de 230 referências. Compulsivo viajante, tem "morança" em Cascais. É um cidadão do mundo, poeta, escritor e reputado sinólogo. Nasceu no Porto em 1947.] É casado com a médica chinesa Hai Yuan, natural de Xangai, e tem dois filhos, João e Pedro.] (*)
Huhehot, Mongólia Interior, 10 de Julho de 1981 (**)
A capital da região autónoma da Mongólia Interior não prima pela monumentalidade dos seus edifícios, nem pela beleza natural envolvente. Como cidade estruturada tem apenas quatrocentos anos e nota-se a dispersão entre vivências chinesas, vivências mongóis e vivências muçulmanas. Há bairros e bairros de casas térreas, de adobe, quase tudo a cair de velhice, há templos lamaístas-tibetano-mongóis e taoistas, uma igreja católica, mesquitas muçulmanas, tudo a precisar de urgente restauro e de modernização.
Existe, porém, um lugar antigo que congrega muita História e a atenção de inúmeros chineses. É o túmulo de Wang Zhaojun王昭君, uma colina artificial, arredondada, que se levanta solitária na planície, a uns vinte quilómetros de Huhehot, rodeada de uns tantos campos de cultura. Esta mulher é uma das quatro beldades da China clássica, cuja saga, famosíssima na China, eu já conhecia, ao de leve.
Eis a história:
Era uma vez uma menina nascida lá longe, na fronteira entre as províncias de Sichuan e Hubei. Cresceu bonita, recatada e inteligente na sua aldeia meio perdida no mundo. Na dinastia Han havia recrutadores de concubinas que costumavam viajar pelo império em busca das mais belas mulheres para levar para o serralho do imperador. Estes homens acabaram por descobrir a formosa Zhaojun (76 a.C.-33 a.C.). Sem demora, foi conduzida ao palácio do imperador e colocada numa longa lista de espera até ao dia, ou noite, em que lhe seria concedido o “favor imperial”.
O imperador Han Yuandi (75 a.C. – 33 a.C.), atarefado com os assuntos da governação, não tinha muito tempo para dedicar à escolha de novas concubinas a quem ofereceria o sublime “favor”. Contratou então um pintor que lhe retratava as meninas recém-chegadas. Han Yuandi escolhia-as pela formosura que irradiava do retrato. O pintor da corte, um homem de nome Mao Yensho, habituara-se a receber umas tantas moedas de prata de cada concubina, melhorando assim os dotes das donzelas e alindando-as até quase à perfeição. Wang Zhaojun, confiante na sua beleza, não subornou o pintor que, por isso, a retratou gorda e com uma verruga no rosto. A concubina estava condenada a jamais ter as honras do “favor imperial”.
Um ano mais tarde, encontrava-se de visita a Chang’an, a capital (actual cidade de Xi’an), um príncipe xiongnu 匈奴, ou seja, o grande chefe dos hunos, antepassados dos mongóis. Como demonstração de amizade, para o estabelecimento de uma paz duradoura entre xiongnu e chineses, o imperador Han Yuandi resolveu oferecer ao chefe “bárbaro” uma das damas do seu serralho. Uma rápida vista de olhos pelos retratos, levou-o a escolher a “desagradável” Wang Zhaojun.
No banquete de despedida oferecido ao príncipe estrangeiro, o imperador chinês viu pela primeira vez a esbelta, elegante e estonteante concubina. Surpreso, estarrecido diante de tanta magnificência e beleza, Han Yuandi pediu a mulher de volta. Mas já não era possível, o chefe xiongnu, enfeitiçado, encantado com aquela beldade que desejava apertar nos braços, e já considerava sua, não concordou em devolvê-la ao imperador. Conformado, mas fervendo em ira, o soberano chinês mandou de imediato prender e decapitar o pintor Mao Yensho.
Logo depois, Wang Zhaojun, chorosa e abatida, levando consigo uma pipa, uma espécie de alaúde, e infindáveis saudades da sua China, partiu para as terras inóspitas da Mongólia, exactamente para a capital dos xiongnu, não muito longe da actual cidade de Hohehot. Teve um filho do príncipe “bárbaro” que lhe sucedeu como chefe dos hunos e o sacrifício da beldade, longe dos seus e da pátria, correspondeu a um longo período de prosperidade e paz entre chineses e xiongnu.
Muitos são os poetas do velho Império que têm composto poemas em louvor de Wang Zhaojun. O grande Du Fu (712-770) escreveu:
Dez mil vales, mil montanhas conduzem a Jingmen,
Na brisa da Primavera, um retrato fixou seu rosto,
nas noites de luar, o tilintar dos enfeites de jade.
Partiu outrora dos terraços púrpura para os desertos do norte,
na poeira do entardecer, o seu túmulo eternamente verde,[1]
sua alma de regresso.
Durante mil anos, a voz do alaúde bárbaro,
a música, ressentimento e mágoa. [2]
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Notas do autor:
[1] Trinta anos depois, em Abril de 2011, regressei a Huhehot e ao túmulo de Wang Zhaojun. Encontrei-o outra vez verde, polvilhado de flores selvagens.
[2] Em Poemas de Du Fu, trad. António Graça de Abreu, Macau, Instituto Cultural de Macau, 2015, pag. 245. Para um relato mais desenvolvido da história desta famosa mulher, ver António Graça de Abreu, “Com a beldade Wang Zhaojun em terras mongóis”, em Toda a China I, Lisboa, Guerra e Paz Ed., pags. 121 a 124, 2013. Para uma excelente exegese deste poema, ver François Cheng, L’écriture poétique chinoise, Paris, Ed. Seuil, 1977, pags. 68 a 70.
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Notas do editor:
(**) Último poste da série > 1 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19846: Os nossos seres, saberes e lazeres (329): No condado de Oxford, a pretexto de um casamento em Fairford (7) (Mário Beja Santos)