Foto (e legenda): © Paulo Salgado (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Mensagem de Paulo Salgado (ex-Alf Mil Op Esp da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), autor dos livros, "Milando ou Andanças por África", "Guiné, Crónicas de Guerra e Amor" e "7 Histórias para o Xavier":
Assunto . Um poema
Meu caro Luís Graça,
Meus Caros Editores,
Junto um poema que fiz em Abril de 1986. Li-o em Santarém no encontro anual da minha Companhia - CCAV 2721.
Peço-vos o favor - se for publicado no nosso Blogue - de atender à separação das estrofes. Obrigado.
Um abraço a todos.
E votos de resistência.
Paulo Salgado
Anos de
setenta
de
surpresas e desventuras,
de guerra
e de paz,
de ódio e
de amor,
de
carnificina e fraternidade.
As
viaturas lançando poeira vermelha.
O cigarro
fumado à sombra do mangueiro.
As
crianças atraídas pela nova gente.
Os
velhinhos dizendo chacota e piada.
As casas
cobertas de capim.
O arame
farpado rodeando o imenso terreiro.
Mulheres
e homens de olhar indiferente.
As casas
comerciais antigas.
As
casernas os abrigos
as valas
Os postos
de sentinela o longe mirando
O rio
correndo ao fundo pelos matagais
A
floresta e a bolanha de grandeza nunca vistas
Os
carreiros por entre matas serpenteando
- Pedaços
de Abril de setenta
Anos de
setenta
de
surpresas e desventuras ,
de guerra
e de paz,
de ódio e
de amor,
de
carnificina e fraternidade.
Mansoa,
Bissau, o Pidgiguiti cais
da luta
sangrenta de operários e arrais
lá onde
acostou o “Carvalho Araújo”,
(com nome
do bravo marujo)
trazendo
no seio carne para canhão.
A viagem
foi lenta e segura.
Levar a
bom porto tal gentalha
(que a
guerra há tanto tempo dura)
p’ra
alimentar de novo a fornalha.
Cada qual
chorando os entes queridos,
alguns,
do porão, lançando vómitos repetidos,
outros,
amigos, conversando na amura.
Mar alto,
mar de calma,
muitos
companheiros nunca olharam,
mas
outros antanho navegaram,
fosse Zarco
ou Tristão, Nola ou Gama,
aqueles
que sonharam com impérios
(se tais
sonhos, loucos, ousaram)
de Lisboa
até à Oceânia
vivos,
agora, lançariam vitupérios
à
desordem, à guerra, à infâmia
que de
guerras tantas sofreram.
Anos de
setenta
de
surpresas e desventuras ,
de guerra
e de paz,
de ódio e
de amor,
de
carnificina e fraternidade.
Olossato,
Cansambo, Canicó,
Cansonco,
Fajonquito, Nemanacó,
Amina
Dala, Canjaja, Morés,
Iracunda,
Bissancage, Maqué,
e outra
belas tabancas,
de fulas,
mandigas, balantas
mil
etnias desta Guiné.
Destruídas,
arrasadas, queimadas,
incultas,
nuas, abandonadas,
terras
que deram fruto e vida
agora
chão fratricida.
Irmãos de
raça ou de cor
lutando
no lado de lá
com armas
deitando fogo.
As voltas
que a vida dá.
Já não se
saboreiam cajus,
já não se
cultivam bolanhas
nem se
colhe o bom feijão
apenas se
ouve o obus
e se
contam as façanhas
de cada
guarnição
Quem
imagina um passeio
rio acima
de canoa
ou viagem
a Mansoa
Bafatá ou
Farim?
Não
passará de anseio,
quem
pensa coisa assim?
Mancebo
quer casar
bajuda
formosa, nubente.
Como
podem eles folgar
ao som do
batuque dançar
e
amarem-se no palmar
se a
pobreza está presente?
Mistério
este incompreendido
por deus.
lá no
alto dos céus
bem por
cima dos poilões
ele não
vela
não vê o
que se passa na Terra.
Terra
Negra
Terra
Dura
Obscura
em que os
homens são caminheiros
de
estradas cortadas
esbarrando
no arame farpado.
Com as
mãos sangrando
aos seus
deuses gritando:
Acabaram-se
os sonhos?
Acabou-se
o amor?
Não
vedes, ó deuses,
as
crianças de olhar parado e triste?
Anos de
setenta
de
surpresas e desventuras ,
de guerra
e de paz,
de ódio e
de amor,
de
carnificina e fraternidade.
Troaram
metralhadoras
e
cantaram “costureirinhas”
pelo
tarrafo lá ao fundo
e pelo
rio atá à foz.
E a nossa
voz
é um
grito profundo
Quantos
padeceram
a doença
e o sofrimento
da fome e
da solidão!
Quantos
se picaram
e se
vergastaram
pelo
movimento
dos
corpos suados!
Tristeza
no coração.
Tapámos
os olhos para não ver
o sangue
escorrendo nas carnes feridas.
Tapámos
os ouvidos para não ouvir
os ais
lancinantes de desesperança
que
brotavam das bucas sujas,
cheias de
terra.
Nos dedos
escorre a morte a dor o suor.
Os olhos
choram companheiros
sem
sorte.
Nós
queremos erguer
a
bandeira branca
e cantar
e ouvir
canções
contra a injustiça
contra as
trevas
contra a
infâmia maldita
que
lançaram sobre o nosso destino.
Anos de
setenta
de
surpresas e desventuras ,
de guerra
e de paz,
de ódio e
de amor,
de
carnificina e fraternidade.
Tantos
anos já passaram
desde
aquelas horas
à chuva
ao calor
ao
cansaço
ao
sofrimento…
Dezasseis anos passaram
depois de
tantos homens
e tantas
mulheres
e tantas
crianças
morrerem
sofrerem
no mato
na
bolanha
na
tabanca ardida
incendiada
violada.
Dezasseis
anos passaram
cheias de
mortes,
anónimas,
algumas concretas próximas desesperantes
vivas.
Dezasseis
anos já passaram.
A nossa
memória
paira na
poeira do tempo
e da
história .
Não
esqueceremos
o
capitão,
o
Sebastião
a Kadi
mulher
e os
homens e mulheres
que na
guerra se encontraram.
Tantos
anos depois
não
esqueceremos.
Anos de
Abril de setenta
sonhando
com Abril próximo
Abril sem
ódio e sem guerra.
Com paz e
fraternidade
na nossa
terra.
Paulo
Salgado
Abril de 1986
(nas vésperas do encontro da nossa Companhia – CCAV 2721,
em Santarém).
Nota do editor:
Último poste da série > 27 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21587: Bombolom XXVIII (Paulo Salgado): Saudação e participação