Queridos amigos,
A pandemia a todos incitou a fazer férias cá dentro, tentou-se a diversidade e o resguardo com muitas cautelas, no grupo incluía-se uma criança de nove anos. Assentou-se num ponto de partida, com poder irradiante, Óbidos, foi um sucesso em encontros e descobertas, até uma tarde de saudades daquela Foz do Arelho que se conheceu ainda nos anos 1950, uma quase aldeia, com passeios de burro, de bateira atravessando a Lagoa para diferentes pontos, ver-se-á adiante a radical transformação que ocorreu, para ser sincero só na Lapinha é que se encontrou vestígios desse mundo antigo, retocado e beneficiado. Há que reconhecer que o Parque D. Carlos I, nas Caldas da Rainha, está muitíssimo cuidado e entrar no Museu José Malhoa ou na Igreja de Nossa Senhora do Pópulo é muito mais do que um dever. O calor era muito, fazia-se o itinerário às parcelas, para que a vista não esmorecesse com as pernas moídas e o corpo suado. Tempos para recordar, depois mudou-se de azimute, seguiu-se para o Pinhal Interior e Serra da Estrela, tudo será contado a seu tempo, ou quase.
Abraço do
Mário
Andar a um certo vapor na Linha do Oeste: Hoje em Óbidos (1)
Mário Beja Santos
Partimos para Óbidos com a declarada vontade de aqui ter poiso irradiante para vários locais de grande estimação, caso de Peniche, Caldas da Rainha e Foz do Arelho. À cautela, inclui-se na bagagem o livro Linha do Oest, Óbidos e Monumentos Artísticos Circundantes, coordenação de Benedita Pestana, Assírio & Alvim, 1998. Trata-se de uma linha ferroviária que constituiu o último grande troço da rede ferroviária nacional construído na segunda metade do século XIX. Partia de Lisboa para Torres Vedras, seguia por Bombarral, Óbidos, Caldas da Rainha, Marinha Grande, Leiria e Figueira da Foz. Encontrava em Alfarelos a Linha do Norte. Mas foi a propósito desta Linha do Oeste que se lançou um projeto coletivo de olhares sobre o património abrangendo Óbidos, Bombarral, o Mosteiro de Alcobaça, Atouguia da Baleia e outros locais circundantes. Se arribámos a Óbidos, essa preciosa vila muralhada, com belas igrejas, um palácio quinhentista e uma urbanização cuidada, havia que lhe conceder a primeira manhã de itinerância. Entre os séculos XII e XVI a vila teve o seu papel preponderante, só lhe veio a ser subtraído pelas Caldas da Rainha, a estância termal tornou pálida a sua estrela. História ligada à fundação da nacionalidade, mesmo com as Caldas a bater-lhe o pé manteve um património histórico-cultural incontornável, na dita Linha do Oeste não tem rival, mesmo depois da concorrência das Caldas retomou o esplendor, há hoje imenso turismo que vem à procura de um mundo antigo e de uma arte espetacular como seja o túmulo de D. João de Noronha ou a pintura de Josefa d’Óbidos.
Percorrendo a Rua Direita, depara-se-nos, aí a meio caminho, o Pelourinho, tendo uma importante igreja ao fundo. Deste livro da Linha do Oeste retiram-se algumas memórias do pintor Filipe Rocha da Silva, que aqui viveu a sua juventude, durante as férias. Recorda a miséria de quem andava descalço, usa alguns estrangeiros que aqui arribaram e diz: “Viver em Óbidos era um pouco um conto de fadas, uma fatalidade como a de pertencer a uma família real. A verdade é que desde então Óbidos se desertificou de habitantes e se povoou de lojas de artesanato e restaurantes, para além do zimmer, bem entendido. Tornou-se uma vila de serviços pouco diversificados. Por vezes interrogo-me sobre qual é o nexo entre um sítio como Óbidos, que se visita, e um objeto qualquer que se compra, dito de artesanato. As aldeias vizinhas, entretanto, foram-se enchendo de gente e ganhando poder e animação, como se a pesada estrutura arquitetónica da Vila-mãe dissuadisse as pessoas de lá se instalarem. O que sucedeu nos séculos anteriores em relação às Caldas e ao Bombarral, pode vir a repetir-se como as Gaieiras e a Usseira. E Óbidos restringe-se ao seu habitual papel: Centro que deve ser histórico e de lazer”.
Mais adiante, o pintor não esconde o seu entusiasmo: “A cerca do Castelo e a face adjacente das muralhas voltadas para a Várzea da Rainha são uma região notável, que deverá ser defendida a todo o custo, pois trata-se de uma espécie de bolsa ecológica mais ou menos intocada pelo boom turístico, e que funciona como um pulmão que faz que o resto seja mais equilibrado e suportado”. É um texto eivado de saudade e de uma contida melancolia, um olhar imenso sobre a Lagoa de Óbidos, lembra a chegada do pintor Eduardo Malta em cuja casa onde viveu funciona hoje um museu com uma interessante polivalência.
E por ali se circunda, anotando cuidados na boa conservação, dando muita atenção a pormenores, deixa-se para depois os pratos de substância, como a pintura e a escultura, já se saliva por ir visitar o Retábulo de Santa Catarina, na Igreja de Santa Maria de Óbidos, obra da magistral Josefa, nem sequer mesmo entrar no Museu Municipal onde há belíssimas telas de Belchior de Matos, Diogo Teixeira e até do pai da magistral Josefa, Baltasar Gomes Figueira. É uma viagem solta, sem guia, entregues à pura curiosidade, daquela que permite entrar em construções monumentais que hoje são livrarias, e que estão na base de um festival que percorre fronteiras.
E é nesta deambulação sem azimute que chego à Livraria Artes & Letras e me confronto com Luís Gomes que na década de 1980 me cuidou do arranjo gráfico e ilustrou uma publicação minha sobre a camada de ozono. Quando eu trabalhava no Ministério da Qualidade de Vida, sito na Rua do Século, aproveitava a hora do almoço para bisbilhotices culturais. O Luís, ali no Largo da Misericórdia, pontificava uma loja de livros antigos e antiguidades de vários continentes. Pressionado pelo disparo das rendas, veio para Óbidos e mantém nos mais elevados níveis de bom gosto o seu negócio. Quis surpreender-me, levou-me a uma tipografia imemorial onde a mulher produz as suas obras, que assombro, que rico depósito da história da imprensa e da tipografia.
A surpresa foi só minha, estava esquecido que no Largo da Misericórdia, em frente à Santa-Casa e à Igreja de São Roque já o Luís alardeava o seu bom gosto mostrando o que de melhor há na arte Bijagó e mesmo Nalu. A título meramente exemplificativo, embeveça-se o leitor com três peças dignas de museu. A surpresa foi total, a de rever o Luís na sua costumada caverna de Ali Babá, a de regressar à Guiné inesperadamente neste primeiro dia da Linha do Oeste. Bem feita!
(continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 2 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21725: Os nossos seres, saberes e lazeres (431): De Trancoso para Santa Maria de Salzedas (Mário Beja Santos)