Espero que esteja tudo bem consigo e que tenha conseguido superar a Covid. Junto envio um pequeno conto que o meu pai escreveu em Maio de 1973 e que relata as desventuras de um homem num tribunal de Bissau. Pode publicá-lo se achar que ele se enquadra no seu site.
Um grande abraço
Joao Schwarz da silva
PRIMEIRO QUADRO
O juiz ordenou:
— Senhor oficial, recolha as testemunhas !
E o oficial de diligências começou encaminhando-as para a sala contígua à dos julgamentos, com certa dificuldade.
As testemunhas, incluindo o réu e o ofendido, eram da raça balanta e no seu ar bisonho e desconfiado denotavam logo pouco convívio com o branco.
— Levante-se o réu — disse o juiz — e o intérprete traduziu, o que provocou por parte do arguido um salto brusco, não fosse o branco pensar que não queria obedecer.
— Nome?
— Uaná Nhante.
— Casado ou solteiro?
— Tem mulher.
— Em que se emprega? Em que trabalha?
— Lavrador.
— Nome dos pais?
— Bidjane e Najá.
— Já alguma vez respondeu ou esteve preso?
— Esteve preso na Administração de Mansoa, por ter morto um homem.
— Há quantos anos?
— Não sabe.
—Então não sabe há quantos anos esteve preso?
Aqui o homem embaraçou-se, começou contando pelos dedos, repartia três de uma das mãos e três da outra e ia falando para o intérprete que, a espaços, aprovava com um aceno de cabeça.
Por fim traduziu:
— Ele diz que há mais de seis chuvas.
O juiz, voltando-se para o delegado, observou:
— Não consta do certificado...
O agente do Ministério Público depois de uma leve hesitação, explicou :
— Dantes, as administrações não mandavam os boletins. A justiça lá feita lá morria.
Dirigindo-se ao intérprete. o juiz informou:
— Diga-lhe que até aqui ele era obrigado a responder sob pena de desobediência. Daqui por diante só responde se quiser. Pode delegar a defesa no seu advogado oficioso. Quer responder?
— Quer.
— É verdade que ele quis matar o irmão com uma catana?
— É verdade.
— É porque estava bêbado?
— Não, não estava bêbado.
— Então, porquê?
Repetida a pergunta ao réu, este falou, fazendo gestos estranhos, avançando com os braços estendidos e as mãos encurvadas, agachando-se e abrindo os olhos desmedidamente, emitindonsons guturais, como se estivesse representando uma pantomima.
No final da cena, o intérprete explicou:
— Ele diz que o irmão, ao anoitecer, se vira em lobo e vem perseguir as pessoas da tabanca que se atrasam nos trabalhos do campo.
O juiz deu um salto na cadeira e, com ar severo, de quem não admite graças, disse:
— Advirta o réu de que neste tribunal não se brinca.
Nessa altura o advogado oficioso, mais filósofo do que advogado e que a filosofia levara a exilar-se em Africa havia mais de vinte anos, pediu a palavra para explicar que não havia, por parte do réu a mais pequena intenção de falta de respeito ao tribunal. Era assim: ele acreditava e todos os nativos acreditavam. Desconhecia S. Exa que nas aldeias, lá na Metrópole, o povo também acreditava em lobisomens?
O juiz, mais sereno, só comentava:
—É estranho! É estranho ! E isto em pleno século vinte! !...
— E tem V. Exa, Sr. Dr. Juiz, a certeza de que um homem não se pode transformar em lobo?!
— Mas há quaisquer dúvidas a esse respeito? — inquiriu o juiz, pasmado.
— Tenho-as eu, e grandes mas são contos largos que não vêm ao caso... Se V. Exa perguntar lá no seu íntimo o que é a realidade, talvez encontre um princípio de resposta para esta questão.
— Então o Sr. Dr. acredita...?
— Eu não disse que acreditava; eu conjecturei, quando muito.
— É o mesmo!
— Talvez...
E o advogado filósofo sorria, com um sorriso miudinho que mal lhe aflorava ao canto dos lábios, e parecia conferir-lhe um ar de superioridade e desdém.
O juiz suspendeu a audiência por um quarto de hora e, já no seu gabinete, mandou chamar o advogado. Este apareceu, ainda de toga, uma toga velha, a tornar-se ruça, atestando idade e má qualidade da fazenda. Sem mais preâmbulos, abertamente, o magistrado disse-lhe,
— Sou novato nestes casos de África. Estive quatro anos, como delegado, em Luanda, e lá, mal contactamos com os indígenas. Nunca vi nem ouvi falar destas superstições. O que mais me espanta é que o doutor, com a sólida cultura que me dizem ter, acredite nestas balelas populares...
Ia a continuar, mas o filósofo interrompeu-o:
—Perdão, Sr. Dr. Juiz. Eu não disse que acreditava. Pois, se nunca sei em que hei-de acreditar; se não consegui uma revelação que me afirme «isto é», como posso acreditar? Aceito as coisas, procuro encontrar a sua razão profunda e, até hoje, não a encontrei. O que existe é tudo o que vemos, sentimos e cheiramos, e só isso, ou antes: o que vemos, sentimos e cheiramos, não será uma ilusão dos nossos sentidos? A ciência com «c» pequeno. Bom arrimo para os que só gostam de trilhar os caminhos já percorridos...
E voltando-se de frente para o juiz:
— O que interessa neste caso é sabermos se o réu acreditava ou não que seu irmão se transformava em lobo e vinha comer as pessoas da tabanca. Se isso era uma realidade para ele,
tão real como a sua presença neste julgamento. Se, psicologicamente, ele agiu nessa convicção,
agiu em legitima defesa própria e colectiva ou então é juridicamente um inimputável: um caso de psicopatia a definir pelos médicos.
E acrescentou:
— Sr. Dr. Juiz: para mim, neste caso interessa a certeza da verdade do réu, desde que ela coincida com a certeza da verdade das testemunhas.
— Mas, então, vamos comtemporizar com a barbária?
—Dois mundos paralelos que, por mais que se prolonguem, não se encontram. — comentou o filósofo.
A audiência reiniciou-se passados momentos, com a audição do ofendido. Este explicou que
havia muitos anos, já, seu irmão o via com maus olhos, que o mataria porque era feiticeiro. Que o homem que o irmão matara fora grande amigo e companheiro dele, ofendido. Que não existia qualquer razão de inimizade entre ambos.
As testemunhas afinaram pelo mesmo diapasão, acrescentando que o réu era pacato, bom pai
de família e trabalhador. Matara um homem há anos, mas esse homem transformava-se em lobo e fazia mal à tabanca.
A instâncias do advogado declararam, ainda, que não havia dúvida de que o homem que ele
matara se transformava em lobo. Quanto ao irmão, não podiam afirmar, mas era voz corrente que também se transformava em lobo. Um pouco mais apertadas, vieram a confessar que toda a gente sabia que o homem se transformava em lobo e era um elemento perigoso na povoação.
Perguntados como é que um homem se podia transformar em lobo, foram unânimes em dizer
que bastava que ele fosse inteligente e tivesse nascido no primeiro tornado depois da primeira
chuva do ano.
O delegado e o advogado limitaram-se a pedir justiça. Um porque “crime era evidente”, outro,
porque era impossível refazer as consciências. O réu foi condenado em três anos de prisão maior.
Na tabanca, à hora em que o Sol se esconde no horizonte e as pessoas velhas, de autoridade e
conselho, se reúnem para comentar os acontecimentos do dia. E nesse dia havia acontecimentos graves a comentar, porque tinham regressado as testemunhas do julgamento do Uaná. Mesmo aqueles mais velhos, que pela sua extrema idade já mal andavam, tinham vindo para se inteirarem de como tudo correra e saber da justiça do branco.
Taná, que fora como testemunha e, no consenso geral, era o mais avisado dos presentes, encarregou-se de contar o feito. Taná preparou o ambiente, mandando que os circunstantes se sentassem em círculo, por forma a que, no meio, pudesse falar para todos. Acenderam-se uns molhos de palha sobre os quais puseram uns troncos de árvores e Taná começou:
— Casa onde branco faz justiça é grande e bonita. Tem muitos bancos mas ninguém se senta neles. Numa mesa veio sentar-se um branco velho, de boa cara, mas vestia um fato com saias, como as mulheres deles, e pôs-se a escrever. Depois entraram dois brancos — com uma capa preta e logo a seguir outros dois brancos novos, também com saias de mulher. Todos se
levantaram : um deles era o dono da justiça dos brancos. O dono da justiça falou e nós fomos
levados para outra casa. Eu fui o primeiro a sair dessa casa e a voltar para onde estava Uaná. O
dono da justiça falava para um balanta que eles lá tinham e este perguntava-nos o que ele queria. Nós respondíamos. O dono da justiça não acreditava que um homem se pudesse transformar em lobo e perguntou-me multas vezes se era verdade. O tal branco que entrou primeiro, esse acreditava. Perguntou-me como era e eu dei uma resposta qualquer. Depois vi que o branco falava balanta — falava mal, mas eu percebi-o. O diabo até conhecia a nossa tabanca. Disse-me que já caçara um cavalo marinho na bolanha das palmeiras. Vocês lembram-se?
Houve uma pausa e um velho recordou que há muito tempo estivera ali um branco a caçar. Assim alto e forte, com uns vidros no nariz, até lhes tinha dado a carne do cavalo marinho...
— Já me lembro, já me lembro! — comentaram diversas vozes.
— Pois devia ser esse — aquiesceu Taná, que continuou contando as diversas cenas do julgamento, procurando imitar a voz e os gestos das pessoas.
Por fim, contou que Uaná, iria ficar preso durante três anos. Fez-se um silêncio geral em que se poderia ouvir um zumbido de um mosquito. Então o mais velho dos presentes comentou:
— Estes brancos são pessoas crescidas, mas têm coisas de meninos... Então o dono da justiça dos brancos não sabia que Uaná tinha razão?
E a pergunta ficou em suspenso porque ninguém podia imaginar o que o dono da justiça dos
brancos pensava.
2. Relembrando o Pepito (Bissau, 1949 - Lisboa, 2012)
Foto (e legenda): © Luís Graça (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Portugal > Alcobaça > São Martinho do Porto > Estrada do Facho > Casa do Cruzeiro > c. 1957 > O pai, Artur Augusto Silva (1912-1983), com os filhos, da esquerda para a direita, João, Iko (já falecido) e Carlos (1949-2014). Cortesia de João Schwarz da Silva, que nos diz que a data deve ser "provavelmente 1957"... Teria então o Pepito (, nascido em Bissau, em 1949) os seus oito anos...
Foto (e legenda): © João Schwarz da Silva (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
19 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9232: O meu Natal no mato (36): Conversas com um homem de Deus (Artur Augusto Silva, Quebo, 1962)