terça-feira, 8 de maio de 2007

Guiné 63/74 - P1740: Há mortos que nunca se enterram (Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) , a quem o editor do blogue pediu o favor de nos falar dos seus sentimentos pessoais ao saber da morte do seu grande amigo Carlos Sampaio, Alf Mil de Artilharia, mobilizado para Moçambique em 12 de Abril de 1969:


Caro Luís, conforme combinado, junto depoimento breve sobre mortos intangíveis, aqueles que se colam à existência, que ultrapassam a necessidade de os esquecermos.

Acerca do tema que agora circula no blogue (2), queria também dizer o seguinte: mortos que ficam são os que matamos com as nossas mãos; mortos dolorosos são os que não podemos enterrar e que nos culpam por um determinado acto precipitado; mortos são aqueles cuja morte não percebemos como Uam Sambu que morreu nos meus braços ao amanhecer de 1 de Janeiro de 1970, num estúpido acidente de G3. O morto que vou falar tem a ver com uma amizade profunda, o insólito da notícia no dia em que me casei pelo civil.

Um abraço para todos
do Mário.



Há mortos que nunca se enterram

por Beja Santos

A 7 de Fevereiro de 1970 consegui telefonar de Bambadinca para a Cristina. Era o nosso casamento por procuração, e havia festa lá em casa depois do conservador ter saído. Ela insistia, cautelosa, na pergunta:
- Já recebeste a minha carta?.

Naquele dia não tinha chegado o correio, de modo que subi a rampa para o quartel de Bambadinca a perguntar o que de tão extraordinário vinha naquela carta. À entrada do corredor, quando íamos almoçar, o Tenente Pinheiro deu-me o meu correio e, claro está, fui logo abrir o correio da Cristina. É de lá que sai a notícia necrológica que te envio, um verdadeiro coice que me atirou à parede, fui aos urros para o meu quarto, estupidificado a ver o Carlos Sampaio, li, voltei a ler, disse que era impossível, ontem chegara a sua carta cheia de promessas para o nosso futuro como editores. Lembro ainda a entrada no quarto do Abel Rodrigues (Alf Mil da CCAÇ 12) que conversou comigo. Lá me enxuguei e fomos almoçar.


A seu tempo, vão aparecer as fotografias do jantar do meu casamento. Não sei como foi possível eu festejar o meu casamento depois de ter perdido o meu mais querido amigo.


Norte de Moçambique > Alf Mil Art Carlos José Paulo de Sampaio, natural de Anadia, mobilizado para Moçambique, pelo BCAÇ nº 10, em 12 de Abril de 1969.




É verdade que já tinha perdido muita coisa (1) e até Abril de 1970 ainda irei perder mais. Estou à vontade para testemunhar que há mortos, inteiros ou aos pedaços, que nos acompanham e enformam o carácter. Até desaparecermos deste mundo.

Fotos: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.

________

Notas de L.G.:

(1) Vd. último post do Beja Santos > 4 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1730: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (44): Uma temerária e clandestina ida a Bucol

(2) Vd. posts de:

8 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1739: É ruim de se ver mas faz parte da(s) nossa(s) memória(s) (Luís Graça / David Guimarães / José Martins)

7 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1738: Hospital Militar de Bissau (2): O terminal da guerra, da morte e do horror (Carlos Américo Cardoso, 1º cabo radiologista)

Guiné 63/74 - P1739: É ruim de se ver mas faz parte da(s) nossa(s) memória(s) (Luís Graça / David Guimarães / José Martins)

Guiné > Zona Leste > SEctor L1 > Xitole > CART 2716 (1970/72)> 1970 : O fado da guerra, das minas e armadilhas... Os Fur Mil Guimarães (tocando viola) e Quaresma, os dois sapadores da CART 2716 ... Um deles, o Quaresma, não voltaria a casa, vivo e inteiro (1)...

Foto: © David J. Guimarães (2005). Direitos reservados.



1. Comentário do editor do blogue, que seguiu para a tertúlia, a propósito do conteúdo do post anterior (2):

Amigos & camaradas:

São imagens que podem chocar alguns de nós... Hesitei bastante antes de as inserir, desde há três meses... Pedi ao Carlos para as enquadrar... Chegou-me o texto há pouco tempo, já em Abril... Têm uma história, um contexto, que é preciso entender... De qualquer modo, não as podemos ignorar, apagar, destruir, retocar, esquecer... É ruim de se ver, como diz o Carlos, mas fazem parte de nós, das nossas vivências, emoções, memórias... O horror começava no teatro de operações e viajava, de helicóptero, até ao Hospital Militar 241, ao seu bloco operatório, ao seu serviço de RAio X, às suas enfermarias... Homens mutilados, presos por um fio à vida e ao frasco de soro... Dos mortos, ou dos seus restos, faziam-se embrulhos, e levavam-se às costas, ou em padiolas improvisadas até ao aquartelamento mais próximo. Para os entregar ao cangalheiro e aos caixões de chumbo... Os presuntos: era a cruel expressão que usavam os vivos para falar dos mortos ou do que restavam deles...

Algumas das fotos que me chegaram, tiradas pelo Carlos Cardoso ou pelos seus amigos e camaradas da radioligia, durante a sua comissão no HM 241 (Bissau, 1972/74), não as publico mesmo, por que são demasiadas mórbidas, chocantes ou gratuitas... ou podem ser vistas como tal.

De qualquer modo, é precisar lembrar que o Hospital Militar 241 era o terminal da guerra, da morte e do horror... Alguns de nós também passaram por lá, pelo HM 241... O HM 241 e os camaradas que lá trabalharam - médicos, cirurgiões, enfermeiros, radiologistas, maqueiros, etc. - merecem uma palavra de apreço e de homenagem... Sem esquecer os pilotos, os técnicos de manutenção aeronáutica e as enfermeiras-paraquedistas.... E em primeiros lugar em nossos valorosos e valiosos 1ºs cabos enfermeiros que alinhavam connosco no mato e que corriam os mesmos riscos...

No HM 241 trabalhava-se em condições difíceis, de grande sobrecarga, de grande stresse físico e psicológico, que a guerra não dava descanso ao seu pessoal. Em muitos casos, lá operaram-se verdadeiros milagres. O Marques, que caiu numa mina anticarro comigo, em 13 de Janeiro de 1971, é um deles. O HM 241 era simultaneamente inferno e porto de abrigo, terminal da morte e do horror, mas também porta de salvação...

Obrigado, Carlos, pela tua sensibilidade, pelas fotos que juntaste e nos enviaste, que inevitavelmente despertaram em nós emoções fortes, associadas à lembrança da morte, da mutilação e da dor dos nossos camaradas...


2. Comentário do David Guimarães:

Luís, restantes camaradas e em especial Carlos:

Creio que andamos a escrever por aqui coisas e mais coisas, contando verdades e mais verdades e a história continua....

Bem, chega à baila o assunto dos mortos... Mas que coisa, mortos!.... Não sendo que se fale em exagero, não os podemos esquecer, eles foram gente que como nós queriam viver mas lerparam - termo da gíria militar que tão bem conhecemos. .. A guerra, a maldita guerra, que a certa altura, mesmo dentro do blogue, parecia algo que nós passámos, com enfim um ou outro morto... Até pdoeria parecer que tinha uma coisa mais ou menos boa...

O assunto, ora abordado, vem mesmo a talho de foice, com todos os cuidados que possamos ter ou não...

Conto um episódio - para explicar Espadanedo e Bissau, o mesmo soldado enterrado em dois lados (3)... Aconteceu... está lá aonde ???

Contarei pela rama dado, que o fulcro da questão está num ponto.... Na CART 2716 houve mortes - mas porque não haveria de haver mortes? Houve - não me vou agora referi a nomes pois eles estão por aí já relatados... Um dos meus camaradas que morreu lá foi ele em caixa de pinho.... Já morto rumo ao Hospital Militar... Ficou o espólio à guarda do Delegado de Batalhão e ... foi roubado.

Eu estava na altura de férias e, como conhecia a casa desse camarada, o Delegado do Batalhão pediu para eu ir resolver o assunto juntos dos pais para que não reivindicassem uma máquina fotográfica e um rádio... Enfim, não interessa agora os pomenores...

Eu, David Guimarães, saio do Porto em comboio e vou falar com a mãe do ex-camarada... A primeira coisa que ela me perguntou, com a mágoa de mãe:
- Ele está inteirinho ? - Eu lá menti:
- Sim, minha senhora, esteja sossegada quanto a isso....
- E o fio de outro que ele usava?
- Bom, minha senhora, aqueles indígenas lá o acharam e levaram possivelmente ... Deixe lá, tenha lá paciência, seu querido filho está connosco...

Amigos, este nosso camarada morreu a armadilhar e a colocar a cavilha de segurança no local próprio de armadilha: a granada era aquela granada instantânea vermelha com um cordão de aço helicoidal em volta... Isso rebentou-lhe nas mãos e em frente à zona do peito e pescoço (1)....

Curioso, não resolvi caso nenhum de espólio, mas isso é outro assunto que não vem ao caso de agora, um dia virá noutro contexto...

Nós, todos os combatentes, sabíamos como é que um individuo ficava depois de morto - em caso de mina por baixo de pés, nas minas anticarros em que se era projectado ou com rocketadas na tromba... Mas para a família contava muito saber se o corpo ficou ao menos inteirinho...É assim porque é assim e temos que respeitar...

Mas agora, se alguém mais expedito, resolve ir ver o que sobra do filho, do marido, sei lá... nas tumbas espalhadas por esse Portugal fora e mesmo nos teatros das operações... Valerá a pena haver segundo luto agravado com (ou pelas) nossas mentiras? E se alguém resolve ir ver esse meu camarada e não lhe encontra a cabeça? E se... e se...

Lá vem a história de Espadanedo e Bissau (3) e tantos outros casos que desembarcavam em Bissau em caixinhas... Sim, caixinhas, de madeira, bem pequenas que chegavam perfeitamente para albergar o que sobrou do morto...

O Vinhal sabe - falei com ele - desta outra hitsória: eu conhecia o alferes que andou na guerra para os seus lados e era bom homem... Rebenta-lhe a mina, creio que não mão - Vinhal corrige-me, se não for caso disso - e o que que sobrou? Este assunto também já foi aqui falado por mim e bem corrigido pelo Vinhal (4)... Enfim, um caso do caraças.

Creio que aqui hoje fica dada a resposta a todos os casos idênticos... Não vale a pena esconder a verdade... Claro que temos que mostrar isto a todos dizendo:
- Isto é verdade, olhai, era assim...

E na morte não há os bons e os maus... E as balas são tão assassinas atiradas por nós ou aqueles a quem combatíamos... E nenhuma bala, nenhum mina, nenhuma bazukada era dada com amor... Ela ia e quem dera que acertasse, mesmo quando muitos de nós tinham preocupações éticas, que na guerra também as havia...

Creio que agora chegamos ao epíteto da questão dos mortos... Morreu-se, a tiro, à canhoada, à facada, com enfartes e o que sobrava na maioria das vezes era isso, que aí está patente, um braço, um perna, uma cabeça... Choca sim, mas é bom que não se ignore... No entanto creio que agora basta, não vamos nós criar novos lutos onde eles já tinham sido totalmente aliviados... Porque, se as peripécias de guerra eram diferentes, o resultado de um morto era assim - isso que está ai patente, e que na maioria dos casos está contado....

Não chocado, ciente dos casos, gostaria que ninguém venha ainda chocar-se ao descobrir que seu filho, marido ou irmão não existe no cemitério onde foi aberta a sua campa que ainda visitam e enfeitam com flores e onde rezam...

Espanadelo pou Bissau ? E aqueles que ficaram sepultados numa frondosa copa de uma árvore de onde só o camuflado sobrou naquele clima tropical ?

Abraço, David Guimarães
Ex-Furriel Miliciano Atirador
Minas e Armadilhas
CART 2716 - Xitole 1970/72

3. Comentário do José Martins:

Caros camaradas: As imagens são impressionantes (1). Mas esta tema - a morte, e tudo o que ela envolve - não deve ser esquecido.

Há mentiras, que os próprios acontecimentos geraram, e que agora se pretende apresentar como libelo acusatório contra quem as usou, que se traduziram numa mentira de amor para com aqueles que puderam fazer o seu luto, já que nada mais lhes restava.

Um dia - porque há sempre um dia - que conseguiremos falar disso e, sobretudo, desfazer alguns pruridos de consciência.

José Martins
Ex- Fur Mil Trms
CCAÇ 5 -ç Gatos Pretos
Canjaude (1968/70)
__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. posts de 10 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - XCIX: Estórias do Xitole: 'Com minas e armadilhas, só te enganas um vez' (David Guimarães)

(2) Vd. post de 7 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1738: Hospital Militar de Bissau (2): O terminal da guerra, da morte e do horror (Carlos Américo Cardoso, 1º cabo radiologista)

(3) Vd. post de 22 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1684: Sepultado em Cinfães e em Bissau: 1º Cabo Enfermeiro Correia Vieira, da CCAÇ 1419 (Casimiro Vieira da Silva / A. Marques Lopes)

(4) Vd. post de 18 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P968: A morte do Alf Couto, de minas e armadilhas, CART 2732, Mansabá, Outubro de 1970 (Carlos Vinhal)

segunda-feira, 7 de maio de 2007

Guiné 63/74 - P1738: Hospital Militar de Bissau (2): O terminal da guerra, da morte e do horror (Carlos Américo Cardoso, 1º cabo radiologista)




Guiné > Bissau > Hospital Militar 241 > 1972 > O 1º Cabo Radiologista Cardoso e os seus amigos

Fotos: © Carlos Américo Rosa Cardoso (2007). Direitos reservados.



II parte das memórias do 1º Cabo Radiologista Carlos Cardoso, dos Serviços de Saúde Militar (1972/74) (1):


No dia 18 de Novembro de 1972 ao desembarcar no aeroporto de Bissau tudo era novidade para mim, o cheiro da terra, as tabancas no percurso até ao hospital, enfim, a simpatia com que os meus camaradas do Raio X me dispensaram. Por sorte até cheguei a uma sexta feira ao fim do dia, pelo que só me tive de me apresentar na segunda feira.


O Manel Bolinhas que estava em fim de comisão e que era vizinho da minha namorada, combinou comigo no aeroporto que no sábado me ia buscar para irmos - penso que era a Safim - dar uns mergulhos na piscina e comer carne de porco frita naqueles estabelecimentos que existiam à beira da estrada.

No domingo fiquei no Hospital com os meus camaradas do Raio X: o Coelho, que era do Cadaval e que eu fui substituir; o Carvalho que era de Coimbra e que me deu a conhecer as canções do Zeca Afonso (que eu não sabia que não era permitido o Eles comem tudo, mas que eu achava piada porque era do contra); e o Teixeira que era de Ceira, perto de Coimbra.

Contavam-me histórias que eu, desconfiado, pensava:
- Não é bem assim, os gajos estão-me a meter medo... - Mas dizia-lhes que sim. Mais tarde confirmei que aquilo que me diziam até não andava muito longe da realidade.

Até ai tudo marchava bem, piscina, petiscos... E como eramos três cabos radiologistas, combinámos com os sargentos fazer entre os três o serviço nocturno de urgência e eles só fariam o serviço diurno quando estivessem de serviço. Assim dormiriamos no Raio X, passaríamos a ter mais qualidade de vida, teríamos ar condicionado e evitaríamos a bagunça da caserna. Ao mesmo tempo não estavamos tão dispersos quando houvese alguma eventualidade.

Entretanto chegou a segunda feira, dia de apresentação e entrada ao serviço. Deram-me uma G3 que nunca tinha disparado um tiro e aí vou eu direitinho ao Raio X. Nos primeiros dias nada se passou de anormal, a vida continuava com as consultas externas a que eu estava habituado em Lisboa no Hospital da Estrela quando estive a tirar a especialidade.




Guiné > Bissau > Hospital Militar 241> 1972 > O heliporto
Foto: © Carlos Américo Rosa Cardoso (2007). Direitos reservados
Mas um dia tinha de começar o meu baptismo... Deviam ser para aí umas cinco horas da tarde, ouço um burburinho, espreito à janela e vejo uma viatura do nosso exército com cinco ou seis corpos a monte. Perguntei a um camarada o que tinha acontecido, ao que ele me respondeu :
- É, pá, mararam todos, foi um acidente... Isto aqui é mato, é quase todos os dias. - E era verdade, muitos dos nossos camaradas morreram tambem por imprudência.

E eu pensei cá para com os meus botões:
- Se é assim, tens que te começar a habituar... - E assim foi durante a minha comissão de serviço, depois era o normal.

Entretanto o Carvalho estava a terminar a comissão e quem o vinha substituir era o Hermínio Clemente, o Bigodes, que era do meu curso e já tinhamos feito o estágio na Estrela juntos, sabia que era ele que marchava a seguir.

E aí começou a história das fotografias: o Hermínio Clemente era (e penso que ainda é) fotógrafo profissional... Anda por aí, algures em lisboa, quem souber dele diga porque tem muito mais fotos do que quando ele chegou ao Hospital com as suas máquinas fotográficas e a sua veia jornalistica... Ele disse-me:
- Ó Cardoso, temos que fotografar isto... - E como devem calcular, não era permitido e se fossemos apanhados teríamos graves problemas. Tivemo-lo que fazer às escondidas, com a colaboração de camaradas enfermeiros e de alguns médicos.

Eu, uma vez por volta das três da manhã, estava já a dormir assim como os meus camaradas. Fomos acordados pelo enfermeiro de serviço às urgências para estarmos preparados. Tinha rebentado uma granada num café em Bissau e havia muitos feridos. Não me lembro o nome mas sei que era na avenida principal do lado direito de quem ia para o cais. Talvez Ronda, será?

Seriam para aí uns trinta feridos e, como calculam, quando há estilhaços, é radiografia da cabeça aos pés. Terminámos o nosso serviço já era de madrugada. Aí entrava o cabo do rancho porque eu ´nãoo perdoava um bife com batatas fritas para todos.





Guiné > Bissau > Hospital Militar 241 > 1972/74 > Cenas do bloco operatório e restos humanos... Imagens que podem, ainda hoje, ferir a sensibilidade de alguns amigos e camaradas... Diz o Carlos: É mau de se ver, mas faz parte da nossa história... Aqui era o terminal da guerra, da morte, do horror (2)... Aqui chegavam, quase sempre com vida e alguma esperança, os nossos camaradas feridos pelas minas e pelos rockets...
Amputados, muitos sobreviveram. Mas desses, quantos não ficaram estropiados para o resto da vida ? Quantos sofrem, ainda hoje, de stresse pós-traumático de guerra ? Quantos estiveram em reabilitação no Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão ? Quantos tiveram apoio na reintegração na vida civil e profisisonal ? Quantos regressaram à Pátria e não perderam a esperança ? Infelizmente, não temos uma ideia de grandeza dos nossos feridos (graves) durante a guerra colonial. (LG)

Fotos: © Carlos Américo Rosa Cardoso (2007). Direitos reservados


Quando chegavam os feridos tanto da cidade como do mato e tínhamos oportunidade - porque nem sempre podia ser -, fechávamos as portas do Raio X e batíamos umas quantas fotos. Quando eramos chamados ao bloco operatório para fazer RX aos operados apercebemo-nos que havia material que nos interessava fotografar, então combinámos com o enfermeiro Jesus e à noite fotografávamos os restos dos nossos camaradas.

É mau de se ver mas tem que ficar para a história. Não sei o que faziam, se enterravam ou queimavam, mas se algum camarada me estiver a ler e puder complementar a informação, poderemos encontrar a verdade.

Quando em 73, nos confrontos em Guidaje e em Guileje recebemos a notícia que estavam para chegar cerca de cinquenta feridos. Passadas umas horas já só eram trinta, acabando por chegar ao hospital cerca de vinte, completamente destroçados, com o moral muito em baixo, em mísero estado.

O cheiro dos ferimentos putrefactos era insuportavél por não poderem ter sido socorridos com a devida urgência. Tivemos que andar com máscaras a socorrer os nossos camaradas.

Por tudo isto, camaradas, o meu testemunho é uma pequena amostra do que nós todos sofremos e passo a citar uma frase do nosso general Spínola quando se encontrava a visitar estes mesmos feridos no Hospital:
- É para isto que está guardada a juventude portuguesa ?

Depois veio o 25 de Abril.

Com um grande abraço
Cardoso RX

___________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 1 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1481: Hospital Militar de Bissau (1): Apresenta-se o ex-1º Cabo Radiologista Cardoso

(2) 10 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1578: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (37): O horror do Hospital Militar 241 e o grande incêndio de Missirá

domingo, 6 de maio de 2007

Guiné 63/74 - P1737: Confirmo que vi um de dois Fiat ser abatido, em 1968, quando fazia a cobertura de uma coluna para Gandembel (Zé Teixeira)

1. Mensagem do Zé Teixeira:

Saúdo fraternalmente o Vitor Barata e agradeço a sua preocupação em apurar a verdade dos factos (1).
Isto é fazer história. No entanto reforço a afirmação de que vi, com estes olhos que ainda tenho, um dos Fiat que faziam a cobertura aérea da coluna de mantimentos que seguia de Aldeia Formosa para Gandembel e ao mesmo tempo fazia a cobertura do pelotão da CCAÇ 2317 que vinha ao nosso encontro, dado que a coluna anterior tinha sido terrivelmente massacrada, tal como foi a seguinte, a qual teve de recuar, como já escrevi, face à agressividade do IN (2).

Ou será que era um Fiat clandestino ou uma aeronave do IN ? Umas coisa, é certa foi abatido por alguém que estava no meio da mata a vigiar-nos, quando estavamos já muito perto de Ponte Balana e despenhou-se na mata no lado oposto a Gandembel. Eu não vi o Piloto saltar em paraquedas, mas recordo-me muito bem de ouvir colegas afirmarem que o viram ser projectado. Vi o Avião largar um jacto de fumo negro e começar a perder altura muito rapidamente, despenhando-se com estrondo.

Não tenho dúvidas que os Fiat foram os nossos protectores nos céus da Guiné e muito especialmente nesse dia. Aliás o Idálio Reis (3), que desconheço se estava no aquartelamento em Gandembel ou se estava no Grupo de Combater quer veio ao nosso encontro, até identificou o Piloto, o Tenente coronel Piloto-Aviador Costa Campos. O local mais próximo para ser recuperado era Gandembel ou Chamarra/Aldeia Formosa e por esta banda não passou, pelo que só poderia ser recolhido em Gandembel

Sei que no dia seguinte apareceram os Páras em Aldeia Formosa e seguiram para Gandembel/Guileje fazer umas férias, para descanso psicológico dos camaradas de Gandembel, Guileje e Gadamael.

Caro Vitor, continua a pesquisar, para que seja esclarecido devidamente o caso do Fiat abatido.

Um abraço

J.Teixeira
Esquilo Sorridente
__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 4 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1731: Não há registo, no Arquivo Histórico da FAP, de nenhuma areonave abatida no sul da Guiné em 28 de Março de 1968 (Victor Barata)

(2) Vd. post de 3 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1724: Em 1968 eu vi ser abatido um Fiat G.91 sob os céus de Gandembel (Zé Teixeira)

(3) Vd. post de 2 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1721: O primeiro Fiat G-91 foi abatido em 28 de Março de 1968 (Idálio Reis)

Guiné 63/74 - P1736: CCAÇ 1419: Mortos na flor da idade (Casimiro Vieira da Silva)

Marco de Canaveses > Candoz > Quinta de Candoz > Maio de 2007 > For do campo

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.



Legenda: "Companhia de Caçadores 1419 > Guiné Julho/65 a Maio/67 > Os companheiros que não regressaram porque a morte os levou, estando sempre presentes, entre nós, em espírito... Grande é a saudade que deixaram. Imewnsa seja a paz em que descansam"...
Foto: © Casimiro Vieira da Silva (2007). Direitos reservados.


Comentário do editor do blogue:
Eu acho uma ternura a anotação que o Casimiro Vieira da Silva, ex-1º Cabo Enfermeiro - desconheço a unidade - apôs nesta imagem, com a fotografia dos quatro mortos da CCAÇ 1419 (1965/67), entre os quais o seu amigo, vizinho, conterrâneo e também 1º cabo enfermeiro José Maria Correia Vieira, morto em combate na noite de 5 de Janeiro de 1966, na Ponte do Rio Blassar - Matar, Olossato (1).

O Casimiro, que é um inseparável companheiro e amigo do Xico Allen (estiveram ambos, em Pombal, no dia 28 de Abril de 2007), escreveu esta singela frase que vale um poema: "Meninos de 20 anos que também lá foram-se"...

Gostaria que ele fizesse parte da nossa tertúlia. Ele e o Xico recusam-se a ter email, mas estão sempre a espreitar o nosso blogue na casa dos amigos ou dos filhos... O Xico esteve em Pombal acompanhado do Casimiro, tendo no entanto cancelado, na véspera, a sua já periódica viagem à Guiné-Bissau, de jipe... Não houve tempo para os pormenores. Qualquer deles são tertulianos do coração. Daqui, de tão perto - estou no Porto, onde vim à festa da queima das fitas de dois sobrinhos -, vai um abraço especial para eles.
PS - De repente, ao olhar para cara dos meus sobrinhos (um deles, sobrinho-neto) que acabam agora os seus cursos superiores, dou-me conta que também eu já tive vinte e poucos anos... e que nessa altura, aos vinte e três, já estava na Guiné, em 1969... Estávamos todos na flor da idade... Sinto-me feliz por o meu país não estar hoje em guerra, e a geração dos meus filhos e dos meus sobrinhos não viver a angústia de ter morrer na flor da idade, na frente de batalha...


_____

Nota de L.G.:

(1) 22 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1684: Sepultado em Cinfães e em Bissau: 1º Cabo Enfermeiro Correia Vieira, da CCAÇ 1419 (Casimiro Vieira da Silva / A. Marques Lopes)

Guiné 63/74 - P1735: II Encontro em Pombal (14): Vídeo do Hugo Moura Ferreira

1. Mensagem do nosso camarada Hugo Moura Ferreira:

Caros amigos e camaradas

A todos os que foram (e também aos que não estiveram presentes), quero agradecer o excelente sábado que me proporcionaram, a mim e ao meu amigo Braima Baldé que na viagem de regresso me confidenciou ter sido para ele um dos dias mais felizes da sua vida. Só por isso, e porque sou muito amigo dele, lhes agradeço do fundo do coração, tal como já o fiz aos pessoalmente aos organizadores (Junqueira, Vinhal e Marques).

Tive pena por não ter estado mais tempo e ainda mais por saber que houve festa quase até às 4 da madrugada.

Paciência... sabemos que cada reunião que façamos sairá mais bem organizada. Bom..., da organização não se poderá fazer qualquer reparo pois estava de 5 estrelas, mas que no futuro se poderá fazer um programa mais objectivo, não tenho dúvidas. Eu mesmo, conjuntamente com alguns camaradas, acabámos por nos desencontrar e não visitar os locais interessantes que o Vitor Junqueira andou a divulgar. Outro dia lhe pedirei para o fazer.

Por agora quero apenas acrescentar mais algo àquilo que já foi divulgado no Blogue, com desejos de boa saúde para todos. Aqui fica um vídeo, de 6 m e 11 s, que está disponível no You Tube:

http://www.youtube.com/watch?v=bRxd65WDBN4

Moura Ferreira
Ex-Alf Mil (Mec 5409564)
Guiné 1966/1968
CCAÇ 1621 - Cufar
e CCaç6 - Bedanda

2. Comentário de L.G.:

Camarada Moura Ferreira: Deixa-me dizer-te, aqui do Porto onde me encontro, que foi-me muito grato conhecer-te pessoalmente, há dias em Bombal. No 10 de Junho de 2006, em Belém, desencontrámo-nos. Tive pena de não ter tido mais tempo, em Pombal, para conversar um pouco mais contigo e com o teu amigo Braima Baldé que, pelo que percebi, era natural de Bambadinca, ou tinha família lá, ou amigos lá... Ficará para a próxima. Ele será sempre bem vindo. É uma boa ocasião para o convidares a fazer parte da nossa tertúlia. Obrigado também pela surpresa do teu vídeo que capta muito bem a atmosfera, cordial e descontraída, com que se desenrolou o nosso almoço-convívio, no dia 28 de Abril de 2007, no Restaurante O Manjar do Marquês, em Pombal, sob a batuta do nosso maestro Vitor Junqueira.

sábado, 5 de maio de 2007

Guiné 63/74 - P1734: II Encontro em Pombal (13): Paco Bandeira: Lá longe, onde o sol castiga mais.. (J. L. Vacas de Carvalho / J. Mexia Alves)




Videoclipe (2 m 32 s) > "Lá longe, onde o sol castiga mais" ... (Letra e música de Paco Bandeira, n. 1945, e que fez a guerra do Ultramar em Angola, como 1º cabo de transmissões) ... Vozes: Joaquim Mexia Alves e J. L. Vacas de Carvalho. Viola: J. L. Vacas de Carvalho. Para reproduzir o vídeo, basta clicar duas vezes na imagem (1).

Vídeo: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.Vídeo alojado no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau_Videos. Copyright © 2003-2007 Photobucket Inc. All rights reserved.

Pombal > 28 de Abril de 2007 > 2º encontro da malta do nosso blogue > Restaurante O Manjar do Marquês > Fim de tarde > Audiência: Eu, o Paulo Santiago e o seu filho João, o Humberto Reis e a Teresa, o Victor Tavares, o Artur Soares e o António Barroso.... A este pequeno grupo ainda se juntaria depois o Tino Neves e a esposa (acabados de chegar... de Coimbra). Artistas: o J. L. Vacas de Carvalho, viola e voz; e o Joaquim Mexia Alves, voz. O resto da maralha, desafinada, também deu uma ajuda... Para a próxima, temos que ir a treinos e trazer as letras decoradas... Somos acometidos de saudade e de emoção ao ouvir estas velhas letras e músicas com que passámos as noites em branco, de Bambadinca ao Xitole, ou de Guidaje a Guileje... (LG).

A letra do Paco Bandeira rezava assim (e já agora com música)...

Refrão

Lá longe
Onde o Sol castiga mais,
Não há suspiros nem ais
Há coragem e valor.

À noite
Com os olhos postos no Céu
Pedimos ao nosso Deus
Que nos dê a salvação.

1

Quem nunca viu
Quem nunca andou a combater
Não dá valor, não faz ideia o que é sofrer
Ter de matar, para não morrer
Saber sofrer sem chorar, saber chorar e sorrir.

2

E quando algum do nosso grupo cai
Ainda é pior ainda sofremos mais
Faz-nos sentir, faz-nos pensar
Talvez da próxima vez
Seja eu quem vai tombar.
__________

Nota de L.G.:

(1) Vd. posts de:
1 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1717: Tertúlia: Encontro em Pombal (8): Ah, tigres! Ou uma dupla de fadistas (J.L. Vacas de Carvalho / J. Mexia Alves)

1 de Maio de 2007 Guiné 63/74 - P1720: Tertúlia: Encontro em Pombal (9): (Não) me tirem daqui (Sousa de Castro / Vacas de Carvalho / Mexia Alves)

Guiné 63/74 - P1733: II Encontro em Pombal (12): Lições para o futuro (Raul Albino)

Pombal > 28 de Abril de 2007 > 2º encontro da nossa tertúlia > Dois representantes da CCAÇ 2402/ BCAÇ 2851 (1968/70), o Raul Albino (assinalado com um círculo a amarelo) e o Maurício Esparteiro (a verde)...

O Raul Albino com a ajuda do fotógrafo Maurício Esparteiro concebeu e realizou uma ideia original: um livro da CCAÇ 2402 onde todos e cada e um são gente... Do capitão ao soldado básico, toda a gente tem lá a sua foto, o seu espaço... Além disso, cada um dos camaradas da CCAÇ 2402 pode ter uma versão única e original do livro, com registos exclusivos sobre a sua pessoa... Com uma pontinha de orgulho, o Raul e o Maurício mostraram-me um exemplar do seu livro: cada exemplar saíu da tipografia a 8 euros, sendo vendido a 10 euros, para cobrir as quebras e as borlas (1)...

Fotos: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.

1. Mensagem do Raul Albino (ex-alf mil da CCAÇ 2402, pertencente ao BCAÇ 2851 (, Mansabá, Olossato, 1968/70), contemporâneo do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70):

Caro Luís,

Após os agradáveis momentos de Pombal, é altura de voltarmos ao activo. Aqui vai o 5º texto das memórias da CCAÇ 2402 (2).

Ainda sobre Pombal e depois de tantos comentários elogiosos e algumas chamadas de atenção (3), aqui fica um meu apontamento.

Quando o Vítor indicou a seguir ao almoço que ia haver uma visita guiada com os automóveis a seguirem em fila, tive um pressentimento de que não ia ser fácil o esquema resultar. É que no ano anterior no convívio da CCAÇ 2402 em Figueiró dos Vinhos, o Beja Santos conseguiu que a Câmara cedesse dois autocarros para uma visita semelhante e tudo correu às mil maravilhas. Uma coluna de viaturas não é a mesma coisa e os meus receios de dispersão, infelizmente, vieram a concretizar-se. Foi uma iniciativa de periquito, que não afectou o global da óptima organização do Vítor. Parabéns a ele pelo seu evento.

Saudações a todos,
Raul Albino
___________

Notas de L.G.:

(1) Vd. posts de:

23 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1105: Como escrever um livro de memórias de guerra 'à la carte' (Raul Albino, CCAÇ 2402)

4 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1246: O meu livro Memórias de Campanha da CCAÇ 2402 (Raul Albino)


(2) Vd. ultimo post desta série > 13 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1658: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (4): Uma emboscada em Catora e um Lobo Mau pouco predador

(3) Vd posts anteriores:

3 de Maio de 2007 > Guine 63/74 - P1728: Tertúlia: Encontro em Pombal (11): A parábola do porco e da tesoura de barbeiro (David Guimarães / Vitor Junqueira)

3 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1725: Tertúlia: Encontro em Pombal (10): O nosso bom gigante J. Mexia Alves (Vitor Junqueira)

1 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1720: Tertúlia: Encontro em Pombal (9): (Não) me tirem daqui (Sousa de Castro / Vacas de Carvalho / Mexia Alves)

1 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1717: Tertúlia: Encontro em Pombal (8): Ah, tigres! Ou uma dupla de fadistas (J.L. Vacas de Carvalho / J. Mexia Alves)

30 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1716: Tertúlia: Encontro em Pombal (7): Camaradas radicais (Paulo Santiago / Vitor Junqueira)

30 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1715: Tertúlia: Encontro em Pombal (6): Vitor, não temos a tua pedalada, mas foi bom (Sousa de Castro)

30 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1714: Tertúlia: Encontro em Pombal (5): Perdidos & achados (Carlos Vinhal / Vitor Junqueira)

30 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1713: Tertúlia: Encontro em Pombal (4): O nosso bom humor (Tino Neves / Vitor Junqueira)

30 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1712: Tertúlia: Encontro em Pombal (3): Obrigado e até ao próximo, em Monte Real (Joaquim Mexia Alves)

29 de Abril de 2007 > Guiné 63/74: P1710: Tertúlia: Encontro de Pombal (2): Saudades (João Parreira / António Pinto / Vitor Junqueira)

29 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1709: Tertúlia: Encontro em Pombal (1): Malta de cinco estrelas (José Martins)

Guiné 63/74 - P1732: Tabanca Grande: David Peixoto, ex-Soldado Condutor Auto-Rodas da CART 3492 (Xitole, 1972/74)


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Estrada de Bambadinca-Mansambo-Xitole > Ponte do Rio Jagarajá (?) > CCAÇ 2590/ CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71)> "Eu, o então Fur Mil Ap Armas Pesadas Inf Henriques, pau para toda a obra, e o soldado condutor auto-rodas Dalot, o Diniz G. Dalot, talvez o melhor condutor de GMC do mundo ou, pelo menos, o melhor que eu alguma vez conheci... Berliet e GMC nas mãos dele, carregadas de sacos de arroz, não ficavam atoladas na famosa estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole, a menos que rebentassem debaixo de uma mina. E mesmo assim, era preciso que os cabos de aço ou os troncos das árvores não aguentassem... Eu dizia que era preciso ser maluco para conduzir uma GMC. Ele ofendia-se: era o mais profissional dos nossos condutores auto-rodas...

Reguila, setubalense, condutor de pesados na vida civil, apanhou logo no princípio da comissão, em Julho de 1969, cinco dias de detenção. Por ser reguila, setubalense, condutor de pesados, descendente de franceses, e se calhar por ser o melhor condutor de GMC que eu alguma vez vi na vida... Gostava de te rever, Dalot. Sinceramente, gostava de te rever. Tu fazes parte da mítica galeria dos meus (anti)-heróis, tu e todos os bravos soldados condutores auto-rodas que passaram pela Guiné" (1)... (LG).

Foto: © Luís Graça (2005). Direitos reservados.



1. Mensagem do David Peixoto:

Caldas das Taipas, 1 de Maio de 2007:

Luís: Apresenta-se David Peixoto, ex-soldado condutor auto-rodas da CART 3492 (Xitole, 1972/1974), do BART 3873 (Bambadinca, 1972/74).

Desde já, peço-te para me autorizares a fazer parte da família da tertúlia, o que muito te agradeço. Já falei via telemóvel, com os seguintes camaradas: ex-alf Mexias Alves e ex-furriel Artur Soares. Eles pertenceram à minha companhia e sei que estiveram presentes em Pombal, encontro no qual, como sabes, não estive presente, por motivos profissionais. Espero no próximo poder estar presente, para partilhar convosco as alegrias e as tristezas do passado.

Camarada e amigo Luís, por hoje não te faço perder mais tempo, recebe um grande e forte abraço.

David Peixoto

Tlm > 938643896

2. Mensagem do co-editor do blogue, Carlos Vinhal:

Caro Amigo e Camarada David Peixoto:

Encarregou-me o nosso Comandante Luís Graça de te dar as boas-vindas. Serás bem-vindo à nossa Caserna virtual onde as regras mais elementares estão em disponíveis na página da nossa tertúlia: www.ensp.unl.pt/luis.graca/guine_guerracolonial_tertulia.html.

Deverás, logo que possas, enviar uma foto tua, fardado, da época em que eras certamente mais bonito e uma de agora certamente mais velhote. Podes e deves colaborar enviando as tuas estórias e as fotos que por aí tenhas. As tuas vivências fazem parte de um passado comum a todos nós, tertulianos. Partilha connosco a tua experiência e colabora no aumento do património do nosso blogue.
Em nome de todos, vai para ti um abraço de boas vindas.

Carlos Vinhal

3. Comentário (circunstancial) de L.G.:

David:

Como tu és bom rapaz, estiveste no Xitole de saudosa memória, foste um glorioso maluco condutor auto-rodas, de GMC, Berliet ou Unimog (por quem sempre tive uma especial admiração, já que fiz, no meu tempo, muitas colunas logísticas de Bambadinca para os teus sítios) e pertenceste à companhia do Mexia Alves (que vive hoje na Marinha Grande) e do Artur Soares (que é da Figueira da Foz), eu autorizo excepcionalmente a que apareças no blogue, sem as fotos da praxe e um resumo das tuas andanças pela Guiné.

Quando puderes, manda os elementos que te pediu o Carlos Vinhal, meu co-editor. Quanto ao resto, estás automaticamente em casa, entre camaradas que te vão estimar e que desde já te saudam, vivamente.

Pensando em ti penso também nos valentes soldados condutores auto-rodas, em geral, e dos da minha companhia, em particular (a CCAÇ 2590/CCAÇ 12), como o Dalot ou o Soares... Ambos caíram em minas anticarro: o Dalot safou-se na estrada que tu bem conheceste; o Soares, esse, teve menos sorte, na estrada de Nhabijões-Bambadinca, teve um trágico encontro com a morte... Num dia 13, do mês de Janeiro do ano de 1971, que por acaso não era sexta-feira, mas quarta... A dois meses do fim da comissão (Paz à tua alma, camarada Soares!).

Como vês, David, nem todos tiveram a mesma sorte que tu e eu. LG
_________

Nota de L.G.:

(1) Vd. posts de:

11 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CLXX: As heróicas GMC e os malucos dos seus condutores (CCAÇ 12, Septembro de 1969) (Luís Graça)

(...) "Porquê falar em sorte ? É que eu ia justamente à frente da viatura que accionou a mina, justamente do lado do pendura, com uma perna de fora… À turista, como quem vai num alegre e matinal safari algures num parque no Quénia… A pouco e pouco, o periquito ia ganhando confiança… Com três meses e meio de Guiné, e baptismo de fogo ainda muito recente (...) considerava-me já quase um veterano…´

"Recordo-me da viatura: um Unimog 404… Apesar da relativa tranquilidade que nos davam a experiente equipa de 12 picadores que iam à nossa frente com dois grupos de combate apeados, eu tinha recomendado ao condutor do Unimog que seguisse milimetricamente o rodado da viatura da frente… Um desvio de um milímetro podia ser fatal para o artista… O Dalot, que ia a atrás de mim, levava um bicho que tinha dez rodas, dois rodados duplos atrás, várias toneladas de ferro, mais três de arroz… Daquela vez vez foi ele e a sua GMC que voaram… Eu fiquei para a próxima, já lá mais para o fim da comissão" (...).

23 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCV: 1 morto e 6 feridos graves aos 20 meses (CCAÇ 12, Janeiro de 1971) (Luís Graça)

(...) "Às 11.25h, na estrada de Nhabijões-Bambadinca, uma viatura tipo Unimog 411, conduzida pelo Sold Soares (CCAÇ 12) que ia buscar [a Bambadinca] a 2ª refeição para o pessoal daquele destacamento, accionou uma mina A/C."0 condutor teve morte instantânea. Ficaram gravemente feridos 1 Oficial (CCS / BART 2917)[Alf. Mil. Moreira] (a), 1 Sargento (Fur Mil Fernandes/CCAÇ 12) e 1 Praça (CCS / BART 2917)(...).

(...) "Regressado ao local das viaturas, o Gr Comb pelas 13.30h recebeu ordens para recolher, tendo o pessoal tomado lugar no Unimog e na GMC em que tinha vindo. Esta última [onde vinham as secções, comandadas pelos Fur. Mil. Marques e Henriques] (d) , entretanto, ao fazer inversão de marcha, e tendo saído fora da estrada com o rodado trazeiro, accionaria uma outra mina A/C colocada na berma, a 10 metros da anterior, e que não havia sido detectada pelos picadores.

"Em resultado de terem sido projectados, ficaram gravemente feridos o Fur Mil Marques e os Sold Quecuta, Sherifo, Tenen e Ussumane. Sofreram escoriações e traumatismos de menor grau o Alf. Mil. Rodrigues, o Sold TRMS Pereira e os Sold Cherno e Samba"(...).

2 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXIX: E de súbito uma explosão (Luís Graça)

(...) "E de súbito uma explosão. O sol dos trópicos desintegra-se. O céu torna-se bronze incandescente. O mamute de três toneladas dá um urro de morte ao ser projectado sob a lava do vulcão. E depois, silêncio... Era uma hora e meia da tarde quando o meu relógio parou, na estrada de Nhabijões-Bambadinca" (...).

sexta-feira, 4 de maio de 2007

Guiné 63/74 - P1731: Não há registo, no Arquivo Histórico da FAP, de nenhuma areonave abatida no sul da Guiné em 28 de Março de 1968 (Victor Barata)

Mensagem do Victor Barata, o nosso único representante, até ao momento, dos heróis do ar:

Olá amigo Luis e Camaradas Tertulianos!

Li com atenção as intervenções dos nossos camaradas Idálio Reis (que tive o prazer de conhecer em Pombal durante o diálogo travado com o Rui Ferreira) (1) e do José Teixeira (2), depois de já ter lido a do Casimiro de Carvalho (3) e, como militar que fui da Força Aérea, achei por bem dar o meu esclarecimento, ressalvando desde já não querer com esta minha intervenção fazer critíca ou desmentir o que quer que seja.

De facto, eu tinha conhecimento que no dia 11 de Novembro de 1966 um avião Fiat G91, quando operava na zona do Xitole, tinha sido atingido com tiros, não sei de que tipo de arma, que lhe perfuraram a fuselagem junto ao motor, sem quaisquer lesões para o piloto, Castanheira e Sá (se não estou em erro).

Mas como, em relação aos camaradas citados, sou um periquito, para poder enriquecer a minha própria cultura sobre a Aviação Portuguesa procurei a entidade que acho mais competente para me esclarecer sobre o assunto, o Arquivo Histórico da Força Aérea Portuguesa, e de facto não existe qualquer registo de acidente com uma aeronave tipo Fiat G91 no dia 28 de Março de 1968... Será outro tipo de aeronave a que os nossos camaradas se referem?

Luís, gostaria de ressalvar que não quero com esta minha intervenção menosprezar quem quer que seja mas sim esclarecer, através dos registos históricos, o que se passou.

Ao Casimiro, Idálio e Teixeira um grande abraço de amizade.

Victor Barata

2. Comentário de L.G. : 

Obrigado, Victor, pela tua contribuição, oportuna e pertinente. Não se trata de provocar gratuitamente nenhuma polémica, mas sim de apurar a verdade dos factos, como nos compete. Em breve vou publicar o texto original do Idálio Reis, onde este facto vem mencionado. 

Diz-me: consultaste apenas a página da Força Aérea Portuguesa - Arquivo Histórico ? Não haverá outras fontes ? Continua as tuas pesquisas sobre este assunto... É bom recordar que o PAIGC, em 1968, já tinha antiaéreas, e que só em 1973 (em Março) é que começaram a usar os mísseis terra-ar Strella. Olha, gostei de te ver em Pombal, a ti, ao Rui e ao Carlos. Infelizmente, falámos pouco.

PS - Já chegámos todos à conclusão de que houve um lamentável lapso, ou meu ou do Idálio: a data correcta é, de facto, 28 de Julho de 1968. Já corrigi o título do post de 2 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1721: O primeiro Fiat G-91 foi abatido em 28 de Julho de 1968 (Idálio Reis) .

_______

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 2 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1721: O primeiro Fiat G-91 foi abatido em 28 de Março de 1968 (Idálio Reis)



(2) Vd. post de 3 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1724: Em 1968 eu vi ser abatido um Fiat G.91 sob os céus de Gandembel (Zé Teixeira)

(3) Vd. post de 25 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1699: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (1): Abatido o primeiro Fiat G 91

Guiné 63/74 - P1730: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (44): Uma temerária e clandestina ida a Bucol

Pombal > 28 de Abril de 2007 > 2º encontro da tertúlia Luís Graça & Camaradas da Guiné > O reencontro de dois camaradas do tempo de Bambadinca (BCAÇ 2852, 1968/70): J. L. Vacas de Carvalho (Pelotão de Reconhecimento Daimler 2206, 1969/71); Mário Bejas Santos (Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70).

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.


44ª Parte da série Operação Macaréu à Vista, da autoria de Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1). Texto enviado a 13 de Abril de 2007. Subtítulos do editor do blogue.

Meu caro Luís, ainda bem que descansaste na Páscoa. Comigo aconteceu o mesmo, não me recordo de uma semana em Inglaterra com 18 ou 19 graus, sem uma pinga de chuva. Reenvio-te o texto, pois faltavam os elementos referentes às leituras. Se tudo correr bem, esta tarde seguirá mais outro texto. Por favor, dá esta versão como a definitiva (...) . Mário.

A operação Bucol
por Beja Santos


Em meados de Maio, vale a pena percorrer em Missirá os caminhos que levam a 15 cubatas reconstruídas e três abrigos resistentes. Não há praticamente sinais do desastre de Março, luta-se contra o tempo e as chuvas fustigantes que acabam de chegar.

Há 45 dias, ou mesmo mais, que o centro da nossa existência está marcado pelos seguintes eixos: pelas idas permanentes a Mato de Cão, emboscadas nocturnas, as pequenas surtidas no Geba por causa de Mero ou de proteger as viagens do Sintex mas sobretudo a reconstrução de Missirá, que neste momento é visível, é a nossa grande alegria. É nesse preciso instante que me meto numa aventura, para a qual vou arrastar meia Missirá, em que quebrei as regras elementares da prudência, invadindo território alheio sem ponderar as consequências.


Um pedido do Comandante Teixeira da Mota

Um dia, recebo um aerograma do Comandante Teixeira da Mota, chegado em data recente a Bissau, colocado no Comando Naval (2). Depois da troca de cumprimentos, o ilustre historiador avança subtil e gentilmente um pedido:

"Acabei há dias de escrever um longo artigo contendo as aventuras de um príncipe fula, que vencido em guerra civil, aí por volta de 1600, foi parar a Mazagão e daí a Lisboa e Madrid a pedir auxílio militar, acabando por se baptizar. Juntei elementos que me permitirão reconstituir a sequência e duração de reinados dos imperadores fulas do Futa-Toro desde o lendário conquistador Tenguela e seu filho Coli (ambos continuam nas bocas dos fulas de hoje) desde 1465 e 1591. Vou ver se publico este estudo em Dakar. A propósito, para completar uma nota desse artigo, pedia-lhe para averiguar junto da gente de Missirá o que sabem acerca de uma tabanca aí perto, além Gambiel, no Joladu, chamada Bucol.

"O que eu pretendia saber é se a tabanca é antiga ou moderna, qual o grupo étnico de quem a fundou e lhe deu o nome e se este é de língua fula, mandinga ou beafada. A tabanca em si nada tem com o meu artigo, mas num documento antigo diz-se que os fulas invasores destas bandas partiram de uma cidade chamada Bucol, no Sudão, e interessava-me averiguar se o nome é fula ou não, pois não encontro esse nome nos clássicos da história sudanesa".

Ao fim dessa tarde, pedi para me reunir com Quebá Soncó e o chefe da tabanca Mussá Mané. Havia tais e tantos pormenores a esclarecer que decidi pedir ajuda de interpretação ao Cabo Domingos Silva, papel de Bissau que falava perfeitamente português, crioulo, mandinga e beafada . Quebá começou por me dizer que o príncipe Coli fazia parte das histórias da Guiné, tinha sido um grande guerreiro e um grande muçulmano. Quanto a Bucol, sabia que era tabanca beafada, fora lá várias vezes antes da guerra, o nome era antigo , muito antes dos mandingas serem os senhores do Cuor. Muito provavelmente, sugeriu, Bucol era nome fula.

O chefe de tabanca recordava uma grande construção, uma parede imensa do que lhe parecia ter sido uma muralha, quando visitara Bucol na sua infância. Tinha sido uma tabanca rica, terra de agricultura fértil, talvez a mais rica do Gambiel. Nada sabia sobre a origem da palavra Bucol , mas com os mandingas tinham chegado depois dos fulas, muito provavelmente tinha sido fundada por fulas mas confirmava que se falava beafada em Bucol.

Ouvi-os e perguntei repentinamente a Quebá:
-Oiça, não parece muito difícil irmos com o Sintex até junto da Aldeia do Cuor, acima do rio Gambiel e atravessarmos a bolanha do lado de Joladu e subirmos talvez duas horas a pé. Concorda?.

Quebá vacilou, lançando contra-argumentos de peso:
-Alfero, o inimigo é muito poderoso na zona de Sinchã Jobel. Lembre-se do que foi a nossa ida ao rio Gambiel, em Janeiro. A bolanha do lado da Aldeia do Cuor é grande, seremos facilmente avistados pelos sentinelas... Eu, se fosse a si, não ia . - Não tomei ali nenhuma decisão, adiei a resposta ao Comandante Naval em Bissau.


Aproveitando um boleia de DO para um RVIS entre Madina/Belel até ao Rio Gambiel

Como a vida se faz de muitas peripécias e também de felizes encontros, conhecer Bucol pelo ar foi uma imprevista coincidência, três dias depois. Regressado de Mato de Cão ao amanhecer, apresentei-me o Major Pires da Silva para lhe dar conta de um episódio preocupante: a gente de Madina/Belel tentara dinamitar um pontão na estrada de Gambaná, mesmo em frente ao grande palmeiral de Chicri. Mas fora uma operação mal sucedida, o pilar fora sacudido pela carga mas aguentara firme. Tínhamos assim provas de que o inimigo tentava eliminar qualquer hipótese da circulação rodoviária e dificultar-nos os patrulhamentos diários a Mato de Cão.

Mas mal entrei no gabinete quando ele me disse eufórico:
- Ora ainda bem que veio. Está a chegar uma DO e vamos fazer um RVIS entre Madina até ao Gambiel. Não desisto de percorrermos o Cuor e desalojarmos definitivamente o inimigo.

E de facto, meia hora depois a DO levantou voo acima dos Nhabjões, atravessou o Geba, vi Mato de Cão, depois Sinchã Corubal, os trilhos bem sulcados à saída de Cabuca, Madina cada vez mais activa, verdadeiras autoestradas passando por Quebá Jilã e inflitrando-se no Oio a partir de Barnir até Sinchã Boébé, já muito perto de Sarauol.

Em escassos meses, era notório a crescente presença de pontos de passagem, de campos lavrados, ocupação do território. Sem revelar a razão de fundo do meu interesse, pedi ao piloto para sobrevoarmos os rios Passa e Gambiel. No termo do rio Gambiel, pedi-lhe para sobrevoar a estrada que, antes da guerra, chegava a Geba. E pude confirmar que a região de Bucol não tinha sinais de presença humana, se bem que à volta do rio Gambiel fossem nítidos os campos lavrados entre Mansomine e Joladu.

No regresso a Missirá, pedi para conversar com Cibo Indjai, bravo soldado e um dos nossos mais valorosos caçadores. Como se estivesse a procurar informações sobre a presença do inimigo junto do rio Gambiel, questionei Cibo sobre campos cultivados na região de Bucol e Ponta, no fundo terra firme na vastíssima bolanha em frente à Aldeia do Cuor, do lado de lá do rio Gambiel.
- Ali não há nada, meu alfero, há bolanha e floresta cheia de capim. É bom para apanhar gazela. Bucol deve ter sido uma grande tabanca, há restos de construção, devia ser gente rica. Ali só há inimigo de passagem. Para cima é que é território deles.


Uma patrulha de reconhecimento a Bucol, clandestina e temerária

Com a maior das naturalidades, perguntei a Cibo se ele encontrava perigos numa patrulha de reconhecimento a Bucol. Caçador experimentado e dominando a palmo os diferentes recantos do Gambiel, respondeu com igual espontaneidade:
- Não vejo dificuldade nenhuma. Podiámos levar o Sintex em cima do Unimog grande, patrulhávamos a picada acima de Aldeia do Cuor, atravessamos o rio no Sintex ao princípio da manhã, caminhamos pela bolanha, percorremos Ponta e seguimos até Bucol. Depois de Aldeia do Cuor são três horas de viagem. Bem, talvez 5, para ver com cuidado se há gente de Sinchã Jobel ali perto.

E dois dias depois anunciei ao anoitecer que sairíamos de manhã num patrulhamento um pouco excêntrico, com Unimog, Sintex, salva vidas, dois morteiros, 40 homens, iríamos atravessar o Gambiel, 15 homens ficariam a tomar conta da viatura, os outros 25 iriam reconhecer a região. Em particular, Quebá Soncó suplicou-me:
- Eu vou, mas por favor prometa que é ir só a Bucol e voltar. Ir mais acima só com três companhias, ali há muito mais gente que em Madina, há muitos obstáculos, irá morrer muita gente.

Descansei Quebá, pedindo-lhe que guardasse completo sigilo. Saímos pelas três da manhã, vimos nascer o sol quando o Sintex, mesmo em frente à Aldeia do Cuor, começou a passar a tropa no longo trilho que avança numa bolanha de 4 quilómetros até ao mato circundante do que foi a tabanca de Ponta. Cibo, Sambu, Mamadu Camará e Quebá Soncó seguiam na dianteira. A viagem foi muito fatigante devido ao acidentado do terreno e confirmou-se a falta de presença humana. Ponta deve ter sido enorme e Queta mais tarde assegurou-me:
- Sim, Ponta era rica, tinha muita gente fula, oincas, beafadas, gente que atravessava Mansomine até Oio, para fazer negócios. Ponta foi abandonada em 63, logo no início da guerra, muita gente fugiu para Geba e Bafatá, outros foram para Sinchã Jobel. Naquela patrulha confirmamos que o território estava abandonado.

Dentro da mata e usando a maior prudência chegámos praticamente ao fim da manhã a Bucol. Lembrava um pouco a Aldeia do Cuor e o tal pano de muralha que falara Mussa Mané era empedrado e alto. Não consegui nenhuma explicação da sua utilidade, houve quem referisse tratar-se de um vestígio de uma refinaria. Com os binóculos, procurei sinais de presença humana e nada encontrámos. O regresso foi calmo e eram 4 da tarde quando entrámos em Missirá onde o Teixeira das transmissões anunciava a passagem de um comboio de navios pela noite escura em Mato de Cão.

Os dados obtidos seguiram no dia seguinte em aerograma para Bissau:

(i) ninguém associava o príncipe Coli a Bucol;
(ii) a povoação teria sido fundada por fulas e falava-se até antes da guerra predominantemente beafada;
(iii) ninguém sabe a antiguidade da tabanca, mas havia ali riqueza e certamente construções apoiadas por colonos cabo-verdianos.

O que não lhe disse é que tinha sido um acto estupidamente destemido, não teria qualquer explicação plausível caso me encontrasse com tropas de Geba ou tivesse havido um reencontro com uma patrulha de Sinchã Jobel [, regulado de Mansomine]. Não sei de facto o que se passou na minha cabeça para cometer tal atrevimento. Eu sei que dentro de meses voltarei ao Enxalé onde irei almoçar com o Alferes Taveira. Mas o Enxalé tinha a lógica que é quadrícula militar actual não contemplada: o nosso inimigo era comum, fora e continuaria a ser comum. O nosso inimigo não estava no Xime, nem em Mansambo, nem mesmo nas margens do rio Gambiel, estava em Madina, era entre S. Belchior e Enxalé que se fazia o transbordo de armamento pesado em canoas para a região de Aldeia Formosa. Só que a quadrícula é cega e não se podia interferir em sector alheio.

Omiti a ida a Bucol em Bambadinca e no correio para Lisboa. Penso mesmo que em Sinchã Jobel não se soube desta intrusão. Rendi-me ao imaginário do mundo de aventuras, sabe-se lá se não esperava encontrar em Bucol uma outra Tombuctu, uma esquecida cidade de ouro que pudesse mudar o rumo àquela guerra desventurada.




Capa do romance de Albert Camus, L' étranger [O Estrangeiro], referido na crónica anterior (1). Paris: Librairie Générale Française (LGF). 1959. (Colecção "Livre de Poche", 406). Capa atribuído ao pintor Lucien Fontanarosa. La Peste (1955) e L'étranger (1959) são os únicos livros publicados, em vida do autor, que apareceram numa colecção popular como o Livre de Poche (Livro de Bolso). Este livro foi oferecido ao Beja Santos pelo seu amigo Carlos Sampaio (3), que irá morrer em combate em Moçambique (LG).


O meu antigo aluno, Jorge Martins, escreveu-me e mandou-me uma prenda. Já me tinha oferecido um livro do Mário Cesariny, Intervenção Surrealista, depois de ter feito exame de História. Agora manda-me um livro chamado Pena Capital também do Cesariny, e é com imenso prazer que o leio nos meus serões, assenhoreando-me do seu poder alquímico, em que palavras banais se tornam foguetões líricos. Por exemplo:

Sou um homem
Um poeta
uma máquina de passar livro colorido
um copo uma pedra
uma pedra configurada
um avião que sobe levando-te nos seus braços
que atravessam agora o último glaciar da terra.


Mas também aquele belo poema:

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheç tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu

num rio que desapareceu
onde um braço meu te procura


Ainda não sei que estou ler um dos poetas essenciais do século XX, um deslumbramento onde confluem a poesia medieval, a instantaneidade surrealista, Cesário Verde, Mário Sá Carneiro. Cesariny trouxe uma grande companhia e na volta do correio agradeci ao meu antigo aluno, disponibilizando para receber mais.



Capa do romance de Jorge Amado, Terras do Sem Fim. Lisboa: Livros do Brasil. (Colecção "Livros do Basil", 8).


Com o renascimento de Missirá, e por pura coincidência, retomo leituras de primeira água. Aí pelos 17 anos, comprei Terras do Sem Fim, de Jorge Amado. É uma saga à volta de S. Jorge dos Ilhéus, com o derrube das matas transformadas em cacaueiros. É um mundo de exploradores escravos, caciques tenebrosos, jagunços, aldrabões, prostitutas de todos os níveis, emboscadas, riquezas súbitas e a transformação de Sequeiro Grande em terra de cacau depois de muito sangue derramado. Não é possível esquecer Juca Badaró, o Dr Jessé, os amores de Ester e do Dr Virgílio, entre uma vastíssima galeria de figuras que circulam entre Baía, Ilhéus, Tabocas e Itabuna. Consegui este Jorge Amado em Bafatá, leio e releio e começo a aprender que não há livros bons definitivamente lidos para sempre.

As obras estão praticamente concluídas, para a semana iremos ameaçar nas redondezas de Madina. Já a seguir vou receber a visita de um Coronel que vem dos serviços jurídicos de Bissau ouvir-me por causa do recurso que interpus da minha punição. E lá para o fim do mês, estou a sair do banho vindo de uma emboscada nocturna quando vejo em cima de um abrigo um fogo capitoso, demolidor, arrasador, e escorriam-me as lágrimas convencido que estava que era gente de Madina a desfazer Finete. Não, era o primeiro grande ataque a Bambadinca, provando que a Operação Lança Afiada não desmotivara o Buruntoni nem o Fiofioli. Nós ainda não sabíamos mas o curso da guerra tinha irremediavelmente mudado.

___________

Notas de L.G.:

(1) Vd. último post desta série > 27 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1704: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (43): Em louvor de Bambadinca, a nossa tabanca grande

(2) Vd. post de 30 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1637: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (40): Cartas de além-mar em África para aquém-mar em Portugal (2)

(...) "Avelino Teixeira da Mota (1920-1982): Vd. o excelente artigo de Carlos Manuel Valentim, S/Tenente (Comissão Cultural da Marinha) , publicado na Revista da Armada, nº 352, Abril de 2002: Avelino Teixeira da Mota, uma vida dividida entre a África e o Mar" (...)
(3) Vd. post de 23 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1623: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (39): Cartas de além-mar em África para aquém-mar em Portugal (1)

quinta-feira, 3 de maio de 2007

Guiné 63/74 - P1729: Ainda a reportagem da TVI em Guidaje (Victor Tavares)

1. Mensagem do Victor Tavares:

Caro amigo Luís.

Depois de transmitida a reportagem Última Missão: Guidaje, na TVI, recebi muitas mensagens de apoio e felicitação tanto através do blogue que tu tão bem diriges, como telefonicamente e pessoalmente.

Agradeço a todos, por teu intermédio, esse gesto de simpatia, não mereço tanta atenção. Porque ao fazê-lo foi com a convicção de que representaria a vontade da grande maioria dos ex-combatentes e tertulianos, para estes vai um sincero abraço fraterno.

Se esta missão der frutos, como penso e espero, estes serão de todos nós; se os resultados que pretendemos não forem os que aspiramos, assumirei por inteiro essa responsabilidade, mas estou confiante porque ainda há pouco tempo recebi notícias de alguém que anonimamente está muito empenhado no resgate dos restos mortais dos nossos camaradas, não só os paraquedistas mas também os do exército que se encontram em Guidaje.

Para aqueles que de alguma forma não concordam com a posição que tomei, respeitarei a sua opinião.

Ao fazê-lo [, ao ir a Guidaje, a convite da TVI], não foi para criar protagunismo ou para me expôr publicamente. Quem me conhece sabe o tipo de pessoa que sou, não alinho nessas coisas. É verdade, agarrei esta oportunidade, porque entendi ser a altura certa para despertar consciências.

Fui companhado por dois profissionais de enorme categoria e de grandes qualidades humanas e de honestidade, e que ficaram bem patente na qualidade e objectividade e no tratamento da reportagem.O Jorge Araújo e o Ricardo Ferreira são na realidade dois jornalistas de corpo inteiro. Para eles vai tambem um abraço.

Despeço-me com um abraço para todos os tertulianos.

Victor Tavares

__________

Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 22 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1622: A Última Missão do paraquedista Victor Tavares (Luís Graça / Torcato Mendonça / J. Casimiro Carvalho)

Guine 63/74 - P1728: II Encontro em Pombal (11): A parábola do porco e da tesoura de barbeiro (David Guimarães / Vitor Junqueira)



28 de Abril de 2007 > 2º encontro da tertúlia Luís Graça & Camaradas da Guiné > Restaurante O Manjar do Marquês > Uma grande parte do grupo (faltam sempre alguns/algumas), fotografado depois do almoço.



Pombal > 28 de Abril de 2007 > 2º encontro da tertúlia Luís Graça & Camaradas da Guiné > Restaurante O Manjar do Marquês. Antes do almoço, o Vitor Junqueiro, na sua qualidade de nosso anfitrião e organizador do encontro, fez o discurso de boas vindas.

Num gesto de grande simbolismo e beleza, que nos tocou a todos, fez-se rodear e acompanhar pela sua família: três lindas filhas, duas encantadoras netas, um genro e o namorado de uma das filhas, qualquer deles simpatiquíssimos e amáveis...

Verdadeira caixinha de surpresas (2), o Vitor fez questão de ser condecorado por dois dos seus camaradas de Guiné: o A. Marques Lopes, o mais graduado de todos nós, coronel DFA na reforma, e que foi gravemente ferido em combate na Guiné; e o Luís Graça, na qualidade de editor do blogue...

A condecoração, sobre a qual ele foi lacónica, tem a ver com a sua brilhante folha de serviços como militar. Foi-lhe atribuído, segundo o que retive, pelo Chefe do Estado Maior do Exército e era para lhe ser entregue no dez de Junho de 1974... A cerimónia acabou por ser adiada trinta e três anos... Simbolicamente, a medalha por bons serviços foi-lhe entregue no dia 28 de Abril de 2007, por dois camaradas seus, na sua terra, na terra que ele muito ama... Um gesto carregado de grande significado e de alguma emoção.


Fotos: © David Guimarães (2007). Direitos reservados.

1. Mensagem do nosso tertuliano nº 3, David Guimarães:

Caros Luís, Vítor Junqueira e ex-camaradas.

É evidente que o dia de Sábado [ 28 de Abril de 2007,] foi diferente, bastante diferente de outros e ficamos sempre com vontade de outro Sábado melhor... Melhor, digo eu, em quantidade de pessoas, que quanto à qualidade chega (somos amigos, mais uma vez isso ficou comprovado)....

O resto que eu poderia dizer por aqui, seria jogo de palavras mais ou menos finas que eu aprendi na vida civil e começaria a dizer mais isto e mais aquilo até que chegaria à conclusão que... no Sábado tínhamos conquistado Pombal... Mas isso é outra coisa...

A Nossa História verdadeira foi o encontro que valeu a pena ... Um bem haja ao Vítor que tudo programou (e bem) no que respeita ao encontro . Pena foi o dia não ter mais horitas e ele acabava por me convencer o que eu não supunha... que Pombal era a melhor terra de Portugal.... Neste dia foi para nós e ainda bem... Ele soube muito bem comandar a operação, sem algum reparo e sem nenhum ferido...

Um bem haja novamente ao Luís que fez com o blogue esta maravilha de encontro... E a todos os ex-camaradas, obrigado, e que amanhã mais outros venham... Tenho a sensação que temos que alugar um quartel qualquer para uma próxima confraternização, mas se for preciso que assim seja, pois que eles sirvam para isso agora... Pelo menos teremos bons espaços... E pronto...

Na minha máquina saíram essas fotografias, que junto... Bom, estamos parecidos com o que somos, disso não me vou queixar a quem me vendeu a máquina... Estamos aí...Um grande abraço a todos com amizade,

David Guimarães

2. A pretexo, o Vitor não só comentou como acrescentou um conto, como só ele sabe contar. Neste caso, uma estória... com mu(o)ral ao fundo...


David,

No rescaldo do nosso Encontro, recebi vários e-mail com apreciacões sobre o Convívio, a maioria delas bastante positivas.

Há certas coisas que eu sei fazer. E acho que as faço bem. Porém, em matéria de organização de eventos, esta foi a minha primeira vez! Senti-me tão periquito como num certo episódio em que me ofereci para abater um leitão, que já não me lembro, nem isso é importante, se me foi oferecido ou à messe. Ninguém tinha ideia nenhuma de como é que se matava o bicho, a não ser a tiro. O que não convinha, pois a carne ficaria muito escura por o animal não ser devidamente sangrado. Eu já tinha visto fazer o seviço. Mandei chamar o fígaro da companhia e, quando chegou à minha presença, ordenei-lhe que fosse buscar a tesoura de cortar cabelo e a desinfectasse muito bem.

Num instante, eu tinha na mão a arma letal. Sem a menor hesitação, cravei um dos seus ramos na barbela do javardito, até aos copos. Não houve sequer um estremecimento, o animal caíu para o lado e assim se quedou, morto, como se tivesse sido fulminado. Saboreei a admiração que li nos olhos da minha pequena assistência, meia dúzia de praças que assitiam ao acto, para além do Russo, cozinheiro, e do básico seu ajudante.

Era a glória na arena, num fim de tarde perfeito. Impante de orgulho, qual matador de touros após lide afortunada, virei as costas à cena nem me dando ao trabalho de retirar o instrumento corto perfurante do pequeno cadáver que jazia a meus pés. Peito inchado, queixo erguido, porte marcial, encaminhei-me para a messe antecipando um jantar majestoso a interromper uma sequência interminável de ranchos à base de batata cozida com cavala de conserva, ou dobrada liofilizada com arroz. Iria derramar a minha incontestada superioridade sobre as cabeças baixas em sinal de respeito e admiração dos camaradas que comigo compartilhavam a mesa. Iria fazê-los sentir que naquela noite, se lhes era permitido deleitarem-se com a pele estaladiça e saborosa de um belo leitão à bairrada, a mim o deviam. Seria uma espécie de promoção honoris causa!

Não tinha avançado mais do que um dezena de passos quando ouço à minha rectaguarda um escarcéu do camano. Eu já tinha reparado que o filho da puta do porco jazente parecia observar-me com um olho aberto e outro fechado. O que eu não podia imaginar é que o cabrão estava a fazer-se de morto! Assim que achou que a distância entre nós era segura para lhe permitir a fuga, pôs-se de pé e aí vai ele direito à orla da mata.

Pimentel, o barbeiro, vendo a sua única tesoura encaminhar-se a tal velocidade para a floresta, entrou em pânico e desatou a correr atrás do bichinho. Mas este, com a ligeireza e manha próprias da espécie, não tardou a esfumar-se completamente no meio do mato. A vergonha era tanta que, se o chão pudesse oferecer-me um buraco para eu me esconder, eu ter-me-ia enfiado lá dentro.

Mas para grandes males, o remédio possível. O que não era adimissível era passarmos a andar todos guedelhudos por falta de tesoura. Mandei equipar uma secção e lá fui em busca do jantar andante. Fez-se noite, a hora do tacho já lá ia e do fugitivo nem rasto. O pessoal resmungava, com razão, e o mal-estar palpva-se. Mandei retirar. De volta e já perto do arame farpado, o fugaz reflexo de um raio de luar despertou a atenção de um dos homens. Baixou-se por uns instantes e, ao erguer-se, levantou o braço ostentando como se fosse um troféu, um dos mais belos que já vi, a nossa bendita tesoura!

Aliviado, fui em busca da janta que o Manuel dos Santos, corneteiro e barman, me tinha resguardado com todo o desvelo. Levantei a tampa da marmita e ... és capaz de adivinhar o que era o menu?

Pois meu querido amigo David Guimarães, eu acho que no passado sábado voltei a tentar matar o porco com a tesoura!

Obrigado pelas palavras de ânimo e pelas fotografias.

Até ao próximo (encontro), se não for antes. Um abraço do,

Vitor Junqueira
____________

Notas de L.G.:

(1) Vd. último post desta série > 3 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1725: Tertúlia: Encontro em Pombal (10): O nosso bom gigante J. Mexia Alves (Vitor Junqueira)

(2) (...) "Do meu curriculum consta que fui trabalhador rural, vendedor ambulante, empregado de balcão, operário da construção civil, contrabandista, marinheiro e médico. Mas nunca fui Bufo, nem agente infiltrado ou pide à paisana. Considero-me um homem de palavra, a quem a Pátria sempre tratou como filho e nunca como enteado. Deu-me mais do que eu merecia.Quanto aos dois anos que passei na Guiné, foram de facto os melhores da minha vida só comparáveis àqueles em que andei lá por fora" (...).

Vd. post de 27 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74: P1215: Vitor Junqueira: Irmãos de sangue, suor e lágrimas (Vitor Junqueira)

Vd. também post de 31 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1224: Blogue: não ao politicamente correcto (Vitor Junqueira)

Guiné 63/74 - P1727: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (2): Abril de 1973: Sinais de isolamento

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAV 8350 (1972/73) > O espaldão do morteiro à guarda do Fur Mil Op Esp José Casimiro Carvalho.



Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAV 8350 (1972/73) > O Furriel Mil Op Esp J. Casimiro Carvalho, posando para a fotografia com uma das mais temíveis armas do PAIGC: um RPG, lança-granadas-foguete.

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAV 8350 (1972/73) > 1973 > O heliporto... Após a queda das primeiras aeronaves, abtidas pelos Strella, de finais de Março a meados de Junho de 1973 deixa de ser possível, à FAP;: dar apoio aéreo ou voar no sul da Guiné. O correio e os víveres chegam com dificuldade, em colunas que vêm de Gadamael, sendo esta por sua vez abastecida de barco a partir de Cacine.

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAV 8350 (1972/73) > 1973 > Março/abril de 1973 > Um dos passatempos favoritos do Casimiro Carvalho era a caça... aos pardais.

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAV 8350 (1972/73) > O José Casimiro Carvalho, armado até aos dentes, numa saída para o mato, empunhando a um dos nossos lança-granadas-foguete, de calibre 3,7.

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAV 8350 (1972/73) > Março de 1973 > A inauguração do bar!... O acontecimento do mês, depois do ataque ao aquartelamento e à queda do primeiro Fiat G.91 em 25 de Março... Escreveu o nosso camarada a uma bajuda [creio que irmã ou cunhada], em carta de 21/3/73: "Mando-te mais uma foto da inauguração do nosso bar. O careca é o major, o furriel que está à minha direita é o enfermeiro, e vai aí a casa, este mês, recebam-no bem".


Fotos: © José Casimiro Carvalho (2007). Direitos reservados.

Não há correio nem evacuações no sul da Guiné, o que começa a afectar profundamente o moral das NT, acontonadas no perímetro dos aquartelamentos. J. Casimiro Carvalho - nas poucas cartas que escreve, no mês de Abril de 1973, ao pai, à mãe, ao irmão - começa a dar sinais do isolamento e do stresse em que se vive, em Guileje... É incapaz, no entanto, de prever a tragédia que se avizinha, a batalha de Guileje (17 a 22 de Maio de 1973) e que levará à decisão de abandonar, em 22 de Maio de 1973, o aquartelamento e a tabanca de Guileje.

Nessa altura, o Casimiro estava em Cacine e irá escrever aos seus pais a carta que começa assim (e que reproduziremos na íntregra em próximo post): "Cacine, 22/5/73. Queridos pais: Vou contar-lhes uma coisa difícil de acreditar, como vão ter oportunidade de ler: Guileje foi abandonada" (...).

A selecção, a revisão e a fixação do texto são da responsabilidade do editor do blogue (LG) .


Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (2): Abril de 1973: Sinais de isolamento


Guileje, 6/4/73
(…) Nos últimos dias o meu grupo tem saído quase interruptamente para a mata e, quando devia descansar, está de serviço. Andamios extenuados. Chiça!

Guileje, 12/74/73
(…) A vontade de escrever não é muita, mas sinto necessidade disso. Hoje, ou melhor, ontem o meu grupo foi dar fogo de treino e ouviu-se dois rebentamentos. Pensou-se logo: rebentaram armadilhas (das muitas que rodeiam o quartel).

Hoje saiu a milícia nver o que tinha sido e estva lá um turra com o pé cortado pela armadilha. Tinha uma arma mauser semi-automática. Outro dia, não sei se disse, apresentou-se aqui um outro turra, com a pila cortada e um testículo… Foi para Bissau.

Como os aviões e avionetas andam a cair devido a uma arma nova, um míssil terra-ar, desconhecido para nós, quase não há transportes para o mato, e portanto o correio atrasa muito (…).

Guileje, 17/4/73

(…) Devem estar admirados com a falta de correio mas a culpa não é minha mas sim é devida à falta de transporte aéreo para as zonas perigosas. Tal é o nosso caso. Os turras têm uma arma que deita a aviação abaixo e agora não há correio, só há em caso de evacuções ou colunas. Portanto, não se admirem.

Houve aqui batuque, é emocionante.

Matei uma espécie de onça, a pele é maravilhosa. Hoje matei uma águia a 350 metros.

Estou óptimo, mas fartíssimo de estar aqui isolado do resto do mundo sem ver coisas novas (…).

Guileje, 22/4/73

(…) Hoje foi um dia de fartura cá em Guileje, recebi nada mais do que 10 cartas. (…) Recebi as cacholas, até dá para gozar. Recebi o salpicão, estava uma delícia (….).

Desde o princípio do mês que não recebia notícias vossas. Não há aviões, nem para feridos que haja. Não há, portanto, evacuações para estas zonas. Isto está mau. Mas não se preocupe (…)..

Guileje, 27/4/73

(…) No último dia 25, quando fizemos 6 meses de Guiné, e um mês que fomos atacados, voltámos a ser flagelados com canhões sem recuo, mas sem consequências, é claro. As granadas caem à volta do quartel, eles não acertam, e foi de noite (…).

Aqui tudo decorre normalmente, com alguns problemas de isolamento e é só.

Guileje, 30/4/73

(…) Esta é mais uma das cartas que eu escrevi e que vai ficar junto com as outras, que vão seguir em coluna auto até Gadamael, donde seguem de batelão até Bissau. Todas juntas, claro. Não se admire, pois a culpa é de não haver aviação.

Estamos num total isolamento, mas vai-se aguentando, e saímos muito pouco do quartel, pois não havendo evacuações não pode haver feridos.

Hoje choveu em abundância (o pessoal saiu cá fora), pela primeira vez, no Guileje. Foi uma festa, mas é só uma pequena amostra do que há-de chover. Junto envio algumas fotos para o paizinho. A da bajuda com o jubi às costas é para si, OK?

Amanhã vou finalmente ter notícias da Metrópole, pois haverá uma coluna (…).

__________

Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 25 de Abril de 2007

Guiné 63/74 - P1699: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (1): Abatido o primeiro Fiat G 91