1. Mensagem do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enf da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74), com data de 7 de Fevereiro de 2021:
Meus caros amigos, combatentes.
O que vos mando é mais um capítulo do meu livro, para, caso entendam, o publicarem no nosso blog. Como é bastante volumoso poderá ser publicado de modo fatiado, admitindo até que algumas partes possam ser desinteressantes, logo não publicáveis.
Um abraço vos mando por esta via, com votos de saúde.
Carvalho de Mampatá.
2 - DESPEJADO NA GUINÉ
Aos dezoito meses de tropa fui convocado para me apresentar no Quartel da Serra do Pilar, em Vila Nova de Gaia, onde me havia de juntar à Companhia de Artilharia n.º 6250 e seguir por avião para o território da Província da Guiné, no dia 27 de junho de 1972.
Era o pior local aquele que me coube, poderia ser Moçambique, melhor ainda Angola, e muito melhor qualquer um dos outros territórios do Portugal Ultramarino onde a guerrilha não se tinha imposto. Mas era aquele e não outro. Pensei ainda, num ou noutro momento, dar o salto para França, manobra muito mais arriscada agora do que se o tivesse feito antes dois ou três anos. Pode ser que tudo corra bem, cogitava eu, lembrando-me do meu irmão mais velho, o Neca, que já por lá tinha passado quase incólume. É certo que ele me tinha feito alguns “desenhos” sobre a realidade guineense e que não eram muito agradáveis, mas pode, caros leitores, uma reportagem sobre uma realidade ser compreendida inteiramente, sem a presença do corpo e da alma?
Falava-me de patrulhamentos sob temperaturas escaldantes, de milhões de mosquitos e outros insetos incomodativos, de noites inteiras debaixo de chuvas torrenciais, de sede, de péssima alimentação e também de gritos de feridos e outras cenas tétricas. E era ele, segundo me disse mais tarde, e eu próprio vim a perceber, muito contido nas descrições.
Passadas quatro horas, desde a partida do aeroporto de Lisboa, lá estávamos nós a divisar, por entre as nuvens, as coberturas de zinco da maioria das casas da cidade Bissau, o que nos dava por antecipação uma ideia de pobreza da cidade capital. As portas abertas do avião, logo que se imobilizou na pista, deixavam entrar uma aragem muito quente e húmida que nos fazia ensopar o corpo e a farda de abundante suor. Estávamos já em plena época das chuvas que se inicia em maio e acaba em novembro, com temperaturas muito altas de dia e de noite.
Depois de uma apressada formatura ainda na pista para a apresentação da praxe às autoridades militares, seguiu-se uma deslocação, em camiões, daqueles cento e cinquenta soldados para o Quartel dos Adidos, onde esperaríamos por nova etapa. O Quartel dos Adidos destinava-se precisamente a acomodar tropas em trânsito quer inseridas em unidades inteiras, como era o caso, quer no acolhimento individual de soldados. A estadia era normalmente muito curta e em péssimas condições. No nosso caso ficámos ali deitados no chão de cimento, sobre malas ou roupas, até que, pelo meio da madrugada, fomos acordados aos gritos, porque estavam já no exterior alguns camiões que nos conduziriam ao cais de Bissau, onde embarcaríamos com destino à Ilha de Bolama.
O Zé Manel da Régua não foi só um dos soldados da minha companhia, ouvia-lhe opiniões e leituras das realidades exóticas daquela terra e das suas gentes e gostava da sua autenticidade e honestidade, sobretudo da sua humanidade e do seu espírito generoso e disso tudo resultou uma amizade para toda a vida.
Hoje julgo que as vivências em situações extremamente difíceis como é a guerra constituem o cadinho ideal para a consolidação da amizade. Tinha ele aquele ar de despreocupado (que ainda mantém) muito marcante, algumas vezes desligado da realidade, quiçá a congeminar um dos seus poemas. Estivesse ele, naquela madrugada de 28 de junho a dormir profundamente, ou às voltas com o conteúdo e a forma de mais uma poesia, a verdade é que ele ficou ali no chão da caserna sem dar conta da nossa partida e só quando estávamos já no meio da boca gigante do rio Geba, a caminho da ilha de Bolama é que ele acordou. Apareceu no dia seguinte, com umas botas emprestadas, por ter perdido as suas, numa boleia de uma avioneta que algum amigo lhe arranjou, com o ar mais despreocupado que se pode imaginar.
Permanecemos nesta ilha durante cerca de trinta dias, em exercícios de aperfeiçoamento operacional. Bolama era de certo modo o espaço ideal para o efeito, porque tinha características de vegetação idênticas às que iríamos encontrar e era território insular e, por isso, sem guerra. Como é sabido, numa ilha é quase impossível a sobrevivência de guerrilha por ausência de apoios externos e caminhos de fuga.
Mas havia de ser nessa ilha, durante um exercício com arma de lançamento de granadas, que havia de assistir, a poucos metros de distância, à morte de dois soldados, no fatídico dia 10 de julho de 1972 quando contávamos apenas treze dias de presença na Guiné: o Soldado José Mata e o Alferes José Carlos Figueiredo, o primeiro jaz sepultado no cemitério de Valbom – Pinhel, o segundo tem o seu corpo depositado no cemitério de S. Pedro do Sul.
Bolama tinha sido capital da Guiné, entre 1879 e 1941, por isso deslumbrava-me com alguns exemplares do seu património arquitetónico, apesar do seu estado de abandono e ruína, como o antigo Palácio do Governador, o edifício dos Paços do Concelho e as desativadas instalações do Banco Nacional Ultramarino. Nada que me mitigasse a saudade dos que tinha deixado por cá, como da minha namorada com quem, se não fosse o execrável estorvo da guerra, teria já casado, dos meus pais, dos irmãos, da minha tia materna, dos avós, dos amigos, das coisas boas da vida normal sem sobressaltos nem medos.
E naquela noite, mais triste que qualquer outra que tivesse já vivido, em pleno cemitério de Bolama, à luz de velas, amortalhava os corpos dilacerados daqueles dois soldados, cujas vidas se tinham esvaído nesse dia, num mar de sangue, vertendo irreprimíveis lágrimas por entre soluços de revolta. Como era bem pior a guerra do que dela me contara o meu irmão Neca! E imaginava eu, enquanto, ajudado por outros, depunha nas urnas, com o maior respeito, quase veneração, aqueles camaradas martirizados por uma causa inútil: como seria o sofrimento dos pais destes jovens com promissores projetos de vida, quando lhes baterem à porta os arautos da indizível desgraça dos seus filhos!?
No dia seguinte uma avioneta fez o transporte dos dois combatentes, para Bissau e, passados alguns dias ou poucas semanas, estariam os sinos das suas terras a chamar os amigos e vizinhos para o enterro destes jovens que tinham perdido a vida pela Pátria. Nós sairíamos daquela ilha, integrada no chamado arquipélago dos Bijagós, no dia 28 desse mesmo mês de julho, com destino ao sector onde devíamos substituir outra companhia e aí permanecer durante cerca de vinte e quatro meses.
A viagem teve duas etapas, porquanto saímos de Bolama numa embarcação idêntica à que nos trouxera de Bissau, uma LDG (Lancha de Desembarque Grande) que nos levou por um braço de mar até à povoação de Buba e só ao segundo dia partimos de Buba para Mampatá, o nosso destino, no dia seguinte. Uma LDG servia para transportar tudo: camiões, materiais de qualquer tipo e tropas, e tinha a particularidade de pode acostar em qualquer ponto da costa ou da margem dos rios, mesmo que desprovidos de cais.
Pois seguimos então do canal de Bolama para a embocadura do rio Grande Buba, na verdade um dos muitos braços de mar muito comuns no território guineense, avistando ambas as margens de floresta cerrada para onde, de vez em quando, os tripulantes da embarcação disparavam alguns tiros aleatoriamente, com o intuito de dissuadirem eventual tentativa de ataque por parte dos guerrilheiros do PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde).
Passado um dia e uma noite lá nos aparecia, ao longe, a povoação e aquartelamento de Buba e à medida que nos aproximávamos, mais nítidos se tornavam os contornos dos edifícios e depois as silhuetas dos soldados da companhia aí instalada. Logo depois a vozearia festiva da nossa chegada quando a LDG abriu a sua bocarra para deixar sair camiões, tropas e materiais como chapas de zinco, madeiras serradas, cimento, cerveja, arroz e outros géneros alimentícios. Ainda nem todos tínhamos abandonado a barcaça mas a festa da receção aos periquitos prosseguia com a passagem, na nossa frente, de camiões transportando supostos soldados feridos, numa encenação em que a companhia instalada em Buba pretendia assustar-nos. Não teria transcorrido mais que uma hora, quando nos preparávamos já para o início da segunda etapa, por estrada, num percurso de cerca de vinte e cinco quilómetros, rebentou uma emboscada no itinerário por onde deveríamos passar, e logo depois começaram a chegar soldados dessa companhia de Buba, feridos reais, numa reedição autêntica daquilo que tínhamos visto, anteriormente, a brincar.
Logo ali, ainda antes de chegarmos ao nosso sector, fui solicitado para colaborar na assistência ao soldado Bento que estava entre a vida e a morte. A enfermaria estava instalada dentro de um abrigo subterrâneo e eu auxiliava o furriel enfermeiro da companhia de Buba na tarefa penosa de mantermos vivo aquele jovem que tinha um estilhaço alojado no tórax. Por entre gemidos do ferido e os estrondos das saídas das granadas das nossa peças de artilharia instalava-se, entre nós os recém chegados, a sensação de que tínhamos vindo parar a um dos piores sítios da Guiné. O contacto com os guerrilheiros tinha ocorrido quase no fim da tarde e, em pouco tempo, a escuridão sobreveio e por isso não mais foi possível a evacuação aérea do ferido para o Hospital Militar de Bissau.
No outro dia, pela manhã, lá apareceu a avioneta que transportou o Bento para o hospital. Debalde porém. O Bento fenecia gradativamente e nem os melhores cirurgiões de Bissau o puderam salvar. Está sepultado em Ferreira das Aves - Concelho de Satão.
No dia seguinte iniciaríamos a nossa jornada de vinte e cinco quilómetros até Mampatá, alquebrados de corpo e de espírito pelos acontecimentos do dia anterior. Nos camiões que nos transportavam seguiam também materiais de construção, munições e víveres. Ao meu lado, sentado sobre um saco de arroz, olhos perscrutantes sobre a mata cerrada, um soldado do recrutamento local, o More. Magro e baixo não parecia nada o guerreiro destemido que vim a conhecer na convivência quotidiana, em Mampatá. Dizia-me o More :
- Não preocupa, aqui perigo não há, se PAIGC atacou ontem, hoje não vem mais.
Trinta e sete anos mais tarde havia de procurar este soldado da milícia do exército de Portugal, em Mampatá, quando aí voltei para rever o sítio onde penei e as pessoas que me suavizaram o sofrimento. Alguns ainda ali viviam e com eles recordei, com indizível emoção, os vinte e quatro meses mais longos da minha vida.
Mas o More, aquele soldado condecorado com a Cruz de Guerra, cujas cavaqueiras me adoçavam os dias compridos, já não fazia parte do mundo dos vivos. Pouco tempo depois do fim da guerra, aquela Cruz de Guerra que recebera do governo de Portugal, enaltecedora dos seus feitos, tornou-se, por traição da história e vingança dos fracos, a prova da sua culpa. Pouco depois da independência acordada entre Portugal e o PAIGC, os novos governantes ajustaram contas com todos os que serviram o exército de Portugal, escapando apenas os que fugiram. Tribunais improvisados presididos por desumanos guerrilheiros sedentos de vingança, prendiam e matavam a esmo. O More foi, assim, barbaramente assassinado.
Os meus olhos focavam-se na mata densa procurando entrever qualquer sinal de perigo no espaço marginal à picada, preocupado com a iminência de uma emboscada e pouco interessado na beleza da floresta de onde se ouviam apenas os guinchos dos macacos. Estariam eles a avisar-nos de algum perigo ou, pelo contrário, tendo celebrado um acordo com o inimigo, anunciavam antecipadamente o nosso massacre. Estes e outros pensamentos fluíam da minha imaginação como se houvesse alguma relação lógica entre aquela guincharia e a nossa sorte.
E passadas algumas horas, talvez quatro, por entre buracos cheios de água, viaturas atascadas na lama e paragens por desconfiança de alguma emboscada ou porque os soldados apeados tivessem assinalado alguma mina, lá chegámos a Mampatá, onde uma ruidosa companhia constituída maioritariamente por açorianos nos recebeu em ébrio delírio. Não era motivo para menos, porque, com a nossa chegada, iniciar-se-ia a sua partida de regresso à paz de suas casas.
Mampatá era uma tabanca habitada por cerca de trezentas pessoas e nós ficaríamos ali instalados por entre moranças cobertas de capim, numa perfeita amálgama entre civis e militares, sem qualquer barreira entre as instalações militares e as casa dos civis. De certo modo esta familiaridade amenizava o ambiente e permitia-nos uma convivência quase sempre fraterna. Na verdade será errado chamar civis aos moradores daquela povoação, porquanto, excetuando as crianças e as mulheres, quase todos estavam mobilizados para a guerra: uns incorporados numa unidade militar local – o Pelotão de Caçadores Nativos n.º 68, outros integrados no Pelotão de Milícias e, finalmente, todos os homens tinham uma espingarda do género das que até ainda há pouco tempo equipavam a GNR de Portugal.
Já havia uma escola básica naquela aldeia, construída por uma companhia anterior mas, como se tornasse insuficiente, fomos incumbidos de erigir uma segunda escola. Os professores eram dois militares que faziam o melhor por aquelas crianças e até pelos adultos que queriam aprender a ler e escrever. Ademais, naquele tempo, muitos soldados do recrutamento metropolitano não tinham a quarta classe e era obrigatório que voltassem à vida civil com esse diploma.
De certo modo, aquelas duas escolas e os sorrisos das crianças que as frequentavam, pintavam aquele cenário distópico, de cores esperançosas, apesar da fogueira da guerra sempre presente e reavivada de tempos a tempos. Um dia, à noite, quando estava a substituir um camarada professor, corri para o exterior, seguido pelos alunos, procurando abrigo deitados junto ao muro do recreio. Tinha sido o tiroteio provocado por uma emboscada a um pelotão nosso, a um quilómetro ou dois do arame farpado que nos tinha feito sair apressados.
A atividade operacional, para além da defesa daquela povoação, era constituída por patrulhamentos, montagem de emboscadas e segurança do itinerário entre Mampatá e Buba.
Esta era a rotina dos dias mas, ainda em 1972, com o início dos trabalhos da abertura e pavimentação de uma estrada, tudo se alterou. A Engenharia Militar precisava de constante proteção enquanto as máquinas de terraplanagem revolviam o solo. Esse trabalho de proteção era absolutamente desgastante porque obrigava a uma presença constante durante o dia e da noite para se impedir os ataques aos trabalhadores e a montagem de minas.
Se alguém fazia anos havia sempre cerveja e algum vinho a regar uma refeição melhorada, com a presença dos amigos mais chegados. Normalmente os furriéis comemoravam em conjunto com os alferes e vice-versa. Os cabos e soldados festejavam normalmente por secção. Nalguns casos, os militares de especialidades com poucos componentes, como os mecânicos, os enfermeiros e os transmissões juntavam-se nos festejos de aniversário em função da respetiva especialidade.
No dia 17 de fevereiro de 1973 coube-me comemorar o meu próprio vigésimo terceiro aniversário, na companhia do capitão, dos alferes e dos furriéis, e não faltou um cabrito assado no forno com batatas, nem faltou cerveja e vinho naquela noite, cuja despesa era assumida na totalidade pelo aniversariante, porque era assim que estava estabelecido. Os mais poupados, aqueles a quem nós apelidávamos de forretas, naquele dia bebiam muito mais do que o habitual.
Nessa noite demorei muito tempo até chegar ao meu quarto. Peguei no sabonete e reguei-me durante algum tempo debaixo do chuveiro, e lembro-me de o ter segurado nos dentes enquanto me refrescava. Cheguei ao quarto e deixei-me cair sobre a cama. Só me lembro de acordar aflito, já dia, com o barulho de um mango a cair sobre a cobertura de chapa.
Passados três dias coube-me sair para o mato com um pelotão. Não era frequente sair, o meu trabalho estava diariamente ligado à enfermaria que dava assistência a militares e à população civil. Talvez estivesse algum cabo enfermeiro de férias e cumulativamente um outro doente. Certo é que, pelas seis da manhã, como era comum nas operações de segurança aos trabalhos da construção da estrada, lá estou eu com um grupo de combate a caminho da frente da estrada, logo a seguir à tabanca de Colibuia.
A missão era percorrer cerca de um quilómetro até nos internarmos na orla da mata onde nos deveríamos manter em alerta até às catorze horas, quando os trabalhos eram interrompidos para prosseguimento no dia seguinte. Quando já estávamos a chegar à orla da floresta rebentou um grande “fogachal” proveniente da nossa frente, de onde não divisávamos o inimigo.
Quem já esteve debaixo de fogo há de perceber o que sentíamos, naquele ambiente de berros, de pó que se levanta, de ramos traçados por projeteis a cair sobre nós, da sensação de que aquilo nunca mais acaba, de que é impossível não haver mortos ou feridos graves, de que a todo o momento alguma bala ou estilhaço nos vai furar. Do desespero evoluímos para a certeza de que, se não fizermos fogo, se não reagirmos, podemos até ser apanhados à mão, como se diz em linguagem de guerra. Havia mais tropa ali por perto, pelo que chegariam reforços certamente. À minha esquerda, o António Carola do Nascimento, apontador do morteiro, grita-me por ajuda porque estava ferido. Olhei-o e perguntei-lhe onde era o buraco. Que era nos tomates, respondeu-me. Disse-lhe eu, num rasgo que hoje me causa admiração:
- Nascimento, se falas é porque não estás muito mal, faz fogo com o morteiro senão morremos aqui todos.
Respondeu-me ele como se esquecesse milagrosamente do seu ferimento:
- Mande-me para cá granadas que eu mando-as para aqueles gajos.
Assim é que era falar, pensei eu. Rolava sobre mim mesmo, bem colado ao chão, e trazia mais duas granadas dos camaradas do meu lado direito que o Nascimento se encarregava de remeter por via aérea. Já o fogo do inimigo parecia estar a diminuir, quando um dos soldados do grupo que acorreu em nosso auxílio se acerca de mim e, numa atitude que nunca esquecerei, carrega-me com as mãos sobre os ombros e preocupado intima-me:
- Deita-te tu estás ferido.
Dava ele importância ao sangue que me escorria do dedo mínimo da mão esquerda e me tingia todo o antebraço, mas que ele julgava provir do tórax. E de seguida, de pé, atrás de mim, com um destemor singular, aquele soldado do Pelotão de Nativos n.º 68, Ussumane Buaró, islâmico, disparou alguns dilagramas com a sua arma, contribuindo de forma que julgo decisiva para a fuga do inimigo.
Em 2009, quando fui à Guiné, numa caravana solidária, transportando alguns bens preciosos para o povo de Mampatá, procurei o Ussumane Buaró, dele só já pude ver a campa onde seus restos mortais foram sepultados no redor da tabanca. Ao seu filho mais velho deixei uma recordação num modesto gesto de homenagem e gratidão a alguém que se preocupou com a minha sobrevivência.
No dia 16 de março de 1973, saiu, pelas seis horas da manhã, um grupo de combate da minha companhia, com destino à frente de trabalhos das obras de abertura e pavimentação da estrada entre Mampatá e Nhacobá. A cerca de um quilómetro o soldado Albuquerque pisou uma mina antipessoal e com o estampido uma nuvem de pó visível de longe, fazia crer o pior – a perda de uma perna, na melhor hipótese. Transportado de helicóptero para o Hospital de Bissau e operado, morreu passados cinco dias. Está sepultado no cemitério de Barcelos.
Um poema de homenagem ao Albuquerque – Autor: Josema, pseudónimo do meu amigo e camarada da companhia José Manuel Lopes:
Puseste o pé em sítio errado
um som violento o pó levantado
escondeu por algum tempo
o teu corpo violentado
sem pensar em outras minas
correram em teu socorro
o sangue fugia do teu corpo
e o “hélio” não chegava
tua cara ainda de criança
ficava cada vez mais pálida
tudo num silêncio angustiado
apesar dos teus vinte anos
a vida fugiu-te em golfadas
porquê tanto sangue derramado?
Concluída a primeira estrada foi preciso construir uma outra, ligando o nosso destacamento ao importante quartel de Buba, ficando quase toda a atividade operacional condicionada pelo lema spinolista: "Por Uma Guiné Melhor". O General Spínola tomou posse como Governador e Comandante Chefe da Província da Guiné em 1968, e na tentativa de subtrair a população do controlo dos guerrilheiros organizou os chamados congressos do povo que eram assembleias consultivas constituídas por régulos, chefes religiosos e pessoas com ascendência social relevante que funcionavam como câmaras de eco das aspirações da população. Ao mesmo tempo desenvolveu um grande esforço no domínio da construção de estradas e de escolas.
No plano estritamente militar ele implantou um programa de africanização da guerra, recrutando cada vez mais tropas naturais do território. Este plano pareceu inicialmente dar alguns bons resultados, mas o PAIGC tinha cada vez mais apoio internacional e o seu apetrechamento, em 1973, com lançadores de misseis térmicos, capazes de derrubar os nossos aviões mais modernos, tornou a guerra insolúvel. E a declaração unilateral de independência por parte do PAIGC, em 24 de setembro de 1973, foi o corolário dessa mudança de curso da guerra, quando os nossos aviões começaram a ser derrubados.
Naquele primeiro semestre de 1973 a situação militar piorava cada vez mais, e o abandono do quartel de Guileje bem como o massacre a que foram sujeitas as nossas tropas em Gadamael, no Sul e em Guidage, no Norte, resultavam sobretudo da grande dificuldade que os pilotos da Força Aérea Portuguesa sentiam agora, face ao uso dos novos misseis, pelo PAIG. Esse constrangimento repercutia-se não só num desempenho menos eficiente, por parte da Força Aérea, na proteção das nossa tropas, como também, na evacuação de feridos e no transporte aéreo de víveres, tabaco e correio. Este era absolutamente fundamental para o estado psicológico da maioria dos soldados e a falta de correspondência escrita, durante muitos dias, provocava desânimo.
A carta ou o chamado aerograma, que dispensava selo, eram os únicos meios de comunicação disponíveis, naquelas circunstâncias. Havia ainda o telegrama para o envio ou receção de mensagens curtas, como a que recebi em meados do mês de outubro informando-me do falecimento do meu avô, mas que eu considerei ser a minha avó porque, erradamente, alguém trocou o acento circunflexo por um acento agudo e, por isso, andei cerca de um mês a pensar que tinha perdido a avó e não o avô.
Em novembro Spínola, descrente quanto à possibilidade de se ganhar a guerra e impedido pelo governo de Lisboa de negociar um plano de autonomia para a província, abandonou o seu posto, sendo substituído pelo General Bettencourt Rodrigues.
Com o início da estação das chuvas a situação estabilizou um pouco, mas a atividade militar iria recrudescer em 1974, fazendo aumentar o número de feridos e mortos e acrescer inúteis sacrifícios a todos, o que me angustiava cada vez mais.
Houve dois grandes momentos de eufórica alegria, durante a comissão: a notícia da revolução do 25 de Abril e o dia do regresso a Portugal em 24 de agosto de 1974. Naquela manhã, aparentemente igual a tantas outras, depois de ter já cumprido a minha rotina na assistência aos doentes da população civil, passando pelo bar para tomar alguma bebida fresca, vi junto ao posto de transmissões alguns camaradas que dialogavam entre si, com gestos e expressões de espanto e notável felicidade.
Que caso seria aquele? Não era nada de trivial. Ao aproximar-me logo me envolvi naquela atmosfera de esperança, de quase certeza quanto ao fim daquele calvário. Não haveria retrocesso, Spínola estava por trás daquilo, agora era mesmo a sério, não era um arremedo, como tinha sido o golpe do dia 16 do mês anterior, desta vez era mesmo o derrube do regime, uma mudança radical de política, negociações imediatas com o PAIGC, e fim imediato da guerra com regresso antecipado a Lisboa.
Não foi bem assim, porque as hostilidades ainda prosseguiram por mais algumas semanas embora em decréscimo e a nossa partida não foi antecipada. Mas a convicção de que tudo estava a acabar era geral e, por isso, quando a noite chegou, nesse mesmo dia, com a confirmação de notícias mais consistentes sobre o sucesso definitivo da revolução, em Mampatá, perante o espanto e algum entusiasmo da população, os soldados extrovertiam toda a sua alegria com algum álcool à mistura. E assim estaria a acontecer por todos os aquartelamentos da Guiné.
Estariam os guerrilheiros do PAIGC tão felizes quanto nós? Não sei.
Os eventos inimagináveis, um mês antes, surpreendiam-nos a cada semana: 14 de maio teve lugar uma reunião entre representantes do MFA e oficiais e sargentos das unidades do sector da qual resultou a certeza inequívoca de que a guerra era para terminar; nos primeiros dias de junho recebemos em Mampatá um Comissário Político do PAIGC que reuniu com a população e com os militares guineenses integrados no Exército Português; no dia 26 de junho cerca de uma centena de guerrilheiros do PAIGC, inimigos de ontem amigos agora, entraram na povoação e trocaram connosco crachás e outros adereços. Estava assim garantido o estabelecimento definitivo da paz.
Depois foi só a paciência de esperarmos mais dois meses, já sem a pressão da guerra, mas com o peso dos dias vagarosos que pareciam não mais acabar. No dia 24 de agosto, com aqueles 150 camaradas dentro do Boeing 707, parecia que nunca mais levantávamos voo ao encontro de quem tínhamos por cá deixado, mas quando, finalmente, a força dos reatores nos despregaram do chão, a alegria sem peias brotou exaltada do coração de todos nós. Perdiam-se gradativamente do alcance dos nossos olhos as ruas de Bissau e a floresta frondosa envolvente, eram já os grandes rios parecidos com regatos e depois só nuvens que tudo encobriam menos os dias amargos que deixávamos e até, porque não dizê-lo, também uma imperecível marca de convivência com culturas diferentes que nos proporcionaram o conhecimento de outras religiões, outras culturas e uma visão plural da humanidade.
Tinha assistido ao fim de um conflito evitável e sem qualquer proveito para ambas as partes, no qual perderam a vida, nos três territórios de Angola, Guiné e Moçambique 8831 jovens portugueses, num total de 800.000 militares mobilizados durante 13 anos. E aos que propagam a teoria de que a guerra de África não era uma causa perdida e que até já estava quase ganha responde o silêncio de 98 jovens mortos, só na Guiné, no período decorrente entre 1 de Janeiro e 25 de Abril de 1974.
E são estes números apenas os das nossas hostes, mas não são, nem nunca a minha sensibilidade o aceitaria, desprezíveis os milhares de mortos, do lado dos que combateram pela independência, entre militares e civis. Caberá aqui evocar uma reflexão de Pirro, rei de Epiro, depois de sair vitorioso de vários confrontos com exércitos da península itálica, no decurso de século terceiro a.C. nos quais perdeu, ainda assim, algumas dezenas de milhar de soldados:
Se formos mais uma vez vitoriosos, numa batalha contra os romanos, perdendo idêntico número de soldados, ficaremos arruinados. Julgo que terá sido esse pensamento do rei de Epiro, reportado pelo historiador grego Plutarco, que norteou a decisão histórica do General Spínola, quando fez saber ao governo de Lisboa da sua indisponibilidade para prosseguir numa guerra de vitórias pírricas.
As guerras deverão ser sempre o último recurso das nações civilizadas, nunca uma opção estratégica. Dirão outros que aquele era um território português e como tal tinha que ser defendido. A esses asseverarei que os estados têm como dever prioritário não propriamente a defesa do território, mas a defesa de todas as pessoas que nele habitam, assegurando que todos tenham direito à satisfação das suas necessidade básicas, à liberdade, à democracia e à justiça.
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Nota do editor
Primeiro poste da série de 12 de janeiro de 2021 >
Guiné 61/74 - P21762: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Manpatá, 1972/74) (1): Contra os canhões marchar, marchar...