quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24049: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XIX: Mais uma operação helitransportada no corredor de Sitató, junto à fronteira com o Senegal, em março de 1966 (Op Vamp)


Tabanca de Cuntima, na região do Oio, c. 1969/71.  Foto do álbum de Carlos Silva (Publicada, a preto e branco, no livro do Amadu Djaló, na pág. 142)


Operação helitransportada, em março de 1966. Lançamento na área de Sitató, um dos corredores de entrada do PAIGC, progressão junto à linha de fronteira até Faquina Mandinga e retirada para Cuntima. Carta de Colina do Norte (1956) (Escala 1/50 mil)

1. Continuação da publicação das memórias do Amadu Djaló (1940-2015):

Recorde-se aqui o seu passado militar:

(i) começou a recruta, como voluntário, em 4 de janeiro de 1962, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(ii) esteve depois no CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de soldado condutor auto-rodas;

(iii) passou por Bedanda, 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), e depois Farim, 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), como sold cond auto;

(iv) regressou entretanto à CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;

(v) em junho de 1965, fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966;

(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo 'cmd' Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amesterdão);

(vii) descreve-se a seguir  mais uma operação helistransportada, a Op Vamp, no corredor de Sitató, junto à fronteira com o Senegal, em março de 1966 (Gr Cmds "Os Centuriões" e "Os Diabólicos") 


 Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XIX:   

Mais uma operação helitransportada no corredor de Sitató, 
junto à fronteira com o Senegal, em março de 1966 
(Op Vamp) (pp. 138-143)

Outra vez os dois grupos, 15 homens dos “Centuriões” e 15 dos “Diabólicos”, para uma missão de nomadização [1]  na região a norte de Farim. Saímos de Bissalanca, em 6 helis, de manhã muito cedo, para sermos lançados na fronteira, junto a Sitató. 

A partir de uma certa altura, os pilotos defrontaram-se com muito nevoeiro e quando chegámos perto da linha de fronteira, não conseguiram distinguir bem se estávamos já no Senegal. Retiraram até à zona de Jumbembem e, depois, a voarem por cima das árvores, atingiram uma zona de bolanha, onde nos largaram. 

Estávamos nos finais de março [de 1966] e a água estava muito fria. Quando aterrei, a água deu-me até ao peito. Pão, bolachas, cigarros, fósforos, ficou tudo alagado. Saímos da água e ficámos um pouco de tempo abrigados, a auscultar os sons da mata. Depois, começámos a andar até atingirmos uma bolanha larga, por volta das 10 horas. Ficámos ali algum tempo a olhar para a mata em frente. Os dois alferes estiverem a conferenciar e decidiram atravessá-la. 

Abrimos em linha, distanciámo-nos uns dos outros e começámos a travessia com muito cuidado. Estávamos mais ou menos a meio, ouvimos um tiro. Agachei-me como os outros e ficámos na expectativa. Já sabíamos que o PAIGC estava à nossa frente. Retomámos a progressão em direcção da mata de onde partira o disparo, mais separados ainda. Depois outro tiro, momentos depois uma rajada e nem uma chicotada. 

Nós não íamos com o objectivo de fazer um golpe de mão. A missão que nos tinha levado a Sitató era progredirmos em direcção a Faquina Mandinga, ver bem os trilhos e se houvesse sinais montar uma emboscada. Mas não era isto que estava a acontecer. 

Os tiros que ouvimos, quando estávamos a atravessar a bolanha, alteraram a nossa missão. Continuámos, muito lentamente, a dirigirmo-nos para a mata, e começámos também a ouvir vozes e risos. Ficámos mais sossegados porque os tiros não devia ter nada a ver com a nossa presença naquele local. Ou então era o PAIGC que estava com grande confiança. 

Já sabia que o confronto era inevitável. Conseguimos chegar àquela pequena mata de palmeiras sem sermos vistos. Era uma mata escura, onde eles tinham armado um acampamento embora naquele momento ainda não soubéssemos. 

Logo à entrada vi um pequeno carreiro que entrava na mata e desaparecia dos meus olhos. Os alferes combinaram formar um L, o meu grupo ia progredir no carreiro enquanto o outro ficava em linha na orla da mata. Começámos a andar, um passo aqui, outro ali, com muito cuidado, até que ficámos de frente para umas barracas. Vimo-los a conversar uns com os outros, a rirem-se, sem saberem que tinham visitas. 

Eu pensei: E agora? Se não os atacássemos já éramos descobertos e poderíamos sofrer uma derrota inesquecível. O terreno tinha aquela pequena mata de palmeiras e à volta a vegetação era pouca. De certeza que eles conheciam a zona melhor que nós. Atacar já e retirar para Cuntima, foi a decisão que se tomou.  

A primeira fila de barracas estava mais ou menos a dez metros. Quando ouvimos a voz de fogo, eu, o cabo Raul e outros companheiros que estavam à minha beira, fizemos rajadas lá para dentro, a curta distância dos guerrilheiros. 

Uma grande gritaria ouviu-se quando parámos de atirar e depois tiros e gritos pararam de repente, ficou um silêncio total. Lançámo-nos lá para dentro, os companheiros do outro grupo romperam também e começámos a busca nas barracas. 

Depois de apanharmos material, já não havia mais nada para fazer a não ser chegar fogo ao acampamento. Lançámos granadas incendiárias e saímos a correr, para norte, a corta-mato. 

Uns minutos depois, já a uma ou duas centenas de metros das casas de mato, ouvimos fogo de morteiro, bazuca e armas automáticas. Eles queriam ver se nós respondíamos para depois concentrar o fogo em cima de nós. Mas nós não respondemos e eles ficaram sem saber nada a nosso respeito e nunca vieram a saber como nós chegámos junto deles. As morteiradas para a zona do acampamento continuavam e nós também continuávamos a andar, agora mais devagar. 

Estava muito calor e nós estávamos com sede. Logo, a sorte veio ter connosco outra vez, quando encontrámos um pequeno riacho. Momentos antes, o Mamadu Bari tinha caído com dores musculares. Parece que os músculos se tinham prendido e ele não podia andar. Tirámos-lhe a carga que ele trazia e demos-lhe ali uma massagem. Ele pareceu ficar melhor e nós recomeçámos a marcha. 

Quando entrei no riacho, meti a cabeça debaixo de água, para diminuir o calor e aumentar a força que já me faltava. Demos com a estrada que vinha da fronteira e de certeza que já não estávamos longe de Cuntima. Com o guia local que tínhamos levado, o milícia Pate Djamanca [2],  uma equipa meteu-se na estrada até ao arame farpado do aquartelamento de Cuntima [3] e, tempos depois, apareceram duas viaturas que nos transportaram até à povoação.

Fomos muito bem recebidos, tomámos banho e depois do jantar fomos visitar a tabanca com o nosso gira-discos. Passados uns minutos, juntaram-se rapazes e raparigas e foi música e dança até à meia-noite. 

No dia seguinte[4], depois do café, chegou uma coluna de Farim para nos recolher. Por volta das 10h00 ocupámos os nossos lugares nas viaturas e metemo-nos à estrada, que eu conhecia muito bem, e chegámos a Farim, ainda não eram 14h00.  

Fui para o quartel dos africanos, da antiga 1ª CCaç, onde tinha estado quase um ano como condutor “rebenta-minas”. Afinal, tinha sido daqui que eu tinha ido para os Comandos. O alferes, sobrinho do Governador Arnaldo Schulz, que era de informações e tinha vindo de Porto Gole, é que tinha sido o responsável pela minha saída de Farim. 

Ele costumava encarregar-se dos interrogatórios e usava a violência para obter informações dos prisioneiros. Naquela altura avisou-me, a respeito da carta do cabo-verdiano, para eu nunca mais receber fosse o que fosse de prisioneiros. Fiquei incomodado com a forma como ele reagiu à minha acção e lembro-me de ter regressado à caserna e de ter ficado uns tempos a matutar. O Adulai Djaló, meu colega, amigo e parente, andávamos sempre juntos, chegou-se a mim e perguntou se me doía a cabeça. Recordo muito bem esse episódio. 

Foi nessa altura que tiraram os bidões de água do meu carro e me puseram a “rebenta-minas”. Davam instruções para a segunda viatura, a que ia atrás da minha, manter a distância de, pelo menos, 100 metros. Nunca faltei a uma saída.

E foi por causa dele que eu e o Tomás Camará fomos para o grupo do Alferes Saraiva. 

Agora que estou a escrever este episódio da minha vida na Guerra da Guiné, recordo que na noite de 23 de Dezembro de 1971, o Adulai Djaló morreu nas minhas mãos, em Morés, numa noite em que tivemos cinco mortos e vários feridos, já não me lembro de quantos, só sei que um estava em estado muito grave. 

Agora, voltando ao regresso de Cuntima. Quando chegámos ao quartel de Nema, os colegas receberam-me com uma mesa cheia de bebidas. Ficámos ali até às 16h00, quando nos vieram buscar, e dali seguimos para a pista, entrámos num Dakota e pouco depois das 17 e tal estávamos em Brá.

(Continua)
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Notas do autor ou do editor literário ("copydesk") (VB):

[1] Nota do editor:  extraído do relatório: 28/03/66. Op Vamp: Faquina Fula, Colina do Norte, Cuntima, Farim. 

Informações relatavam a deslocação junto à fronteira com o Senegal de um numeroso grupo IN, prevendo-se a entrada por Sitató ou por Faquina Mandinga em direcção a Sulucó, Dando Mandinga-Cambajú. O plano previa a heliportagem para uma bolanha em Sitató, nomadização com a duração prevista de 48 horas, deslocação dos grupos até Cuntima pelos seus próprios meios e depois em coluna até Farim com regresso a Bissau em Dakota. 

30 elementos dos grupos “Centuriões” e “Diabólicos” saíram de Brá às 05h45. Partiram da BA 12 em seis Alouettes-III às 06h00. Às 7h00 foram largados na bolanha de Sitató. Cerca das 07h30 iniciaram a progressão rumo a Faquina Fula, que atingiram às 09h30. 

Por volta das 10h30, quando atravessavam uma bolanha entre Faquina Fula e Faquina Mandinga, ouviram um tiro. A seguir, risos e vozes. Uma rajada, gargalhadas, outra rajada de três ou quatro tiros, mais risos. Dirigiram-se para a orla da mata, depois progrediram na direcção das vozes. 

Cerca das 11h00 encontraram elementos INs a conversarem enquanto um limpava uma arma, numa pequena clareira com casas de mato em volta. Abriram fogo à queima-roupa e entraram nas casas de mato. Seguiram-se momentos de grande confusão que impediram o uso das armas. 

Na primeira fase, o IN limitou-se a fugir. Minutos depois, quando se procedia à recolha do material abandonado (2 metralhadoras-ligeiras Degtyarev, 2 Simonovs, 1 PM Thompson, 1 PM Shpagim, 1 PM Beretta, 1 esp. Mauser, 18 granadas de mão, 1 granada de RPG, 27 carregadores para vários tipos de armas, bornais, porta-carregadores, munições e documentação diversa), abriu fogo de morteiro para dentro do acampamento. 

Cerca de meia hora depois de lançado o ataque, os grupos abandonaram o acampamento a arder. Entraram em Cuntima às 13h30. A CArt 732, em coluna auto, transportou-os no dia seguinte para Farim. O regresso a Brá foi feito num Dakota um dia depois.

[2] Meio-irmão do Comando Abdulai Queta Jamanca. 

[3] Nota do editor: na altura ocupado pela CArt 732 / BArt 733. 

[4] Nota do editor: 29 Março 1966.
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Nota do editor LG:

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24048: Historiografia da presença portuguesa em África (354): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (8) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Abril de 2022:

Queridos amigos,
Caminhamos para o fim da vida deste Conselho de Governo, que teve a faculdade de ser marcadamente consultivo mas onde houve o exercício deliberativo, os serviços do governador acabavam por ter em linha conta certas apreciações na análise da legislação, reconhecendo a pertinência das observações dos conselheiros. Enfatiza-se que faltam muitas atas, mesmo de muitos anos, fica-nos, no entanto, a sensação de que é possível ir tomando o pulso à evolução das mentalidades, estas atas são reconhecidamente úteis por muitas das observações que aqui se tecem, já chegámos ao mandato de Arnaldo Schulz, não se fala declaradamente da guerrilha, usa-se uma linguagem apaziguadora, "no quadro atual das dificuldades que a Província atravessa". Vou tentar ver se é possível encontrar toda esta documentação na Biblioteca Nacional, é um acervo auxiliar, mas inescapável, para quem pretende estudar a vida da Colónia, até à sua independência.

Um abraço do
Mário



Atas de Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné:
Uma fonte documental que não se deve ignorar (8)


Mário Beja Santos

Pode julgar-se à partida que estas reuniões em que se discutiam requerimentos, taxas e emolumentos, em que funcionários da administração se pronunciavam sobre salários e infraestruturas, num órgão consultivo em que compareciam chefes de serviços, comerciantes, profissionais liberais, em reuniões presididas pelo Governador, ou pelo Governador Interino, ou pelo Encarregado do Governo, eram suficientemente enfadonhas para não acicatar quem anda à procura de outros ângulos do prisma que nos ajudam a formar uma visão mais abrangente da História da Guiné. Muitas vezes sem interesse para o historiador/investigador, atrevo-me a dizer, mas há ali casos de tomadas de posição ou declarações que nos ajudam a melhor entender a mentalidade, as iniciativas seguramente generosas que ali se formularam e que não tiveram seguimento, ou mesmo o aproveitamento daquele palco para que um Governador tecesse, em forma de sumário, o que se procurava fazer durante o seu mandato.

Insiste-se na advertência que os dois tomos existentes na biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa têm importantes lacunas, o que naturalmente dificulta a apreciação geral do percurso da instituição, sem prejuízo das tais tomadas de posição que nos ajudam a entender as preocupações do governador ou seu representante, os diretores e chefes de serviço da Administração e o conjunto de vogais representativos de interesses. Obviamente que é indispensável compulsar o que aqui se diz e se dá por deliberado com o constante no Boletim Oficial da Guiné e na imprensa. Depois de um longo período de ausência de Diogo de Mello e Alvim, segue-se a sua exoneração e a nomeação de Álvaro da Silva Tavares, que curiosamente, noutras funções, já pertencera a este Conselho de Governo. Em 14 de fevereiro de 1957, no período antes da ordem do dia, Mário Lima Wahnon, comerciante, dirige-se ao novo governador:
“Eu li no jornal da terra que esta visita de V. Ex.ª à região dos Fulas e Mandingas foi coroada de muito êxito. Entre as grandes manifestações da população há uma que eu soube com prazer: - é que pediram a V. Ex.ª a instituição de escolas primárias naquelas localidades. Neste Conselho há já alguns anos venho defendendo este ponto. A instrução pública não corresponde às necessidades da população. De facto, a grande população islamizada da Província não tem uma escola para aprender o português. É, pois, com muito gosto que peço a V. Ex.ª que seja considerada na medida do possível a instituição de escolas naquelas regiões”.

É novamente debatida a questão dos abonos a funcionários civis e militares, o padre Cruz do Amaral, em 20 de fevereiro, põe à votação uma mensagem sobre o significado profundo da visita de Isabel II a Portugal, dizendo que a Guiné comunga no mesmo entusiasmo por uma política que tem a sua consagração na velha aliança anglo-lusa; abrem-se mais créditos, desta vez para sustentas os preços das especialidades farmacêuticas, concedem-se bolsas de estudo, subsídio à autarquia de Bissau para o asfaltamento das ruas e abastecimento de água e energia elétrica à cidade e também crédito para equipamento hospitalar. O padre Cruz do Amaral aproveita o ensejo da visita de Álvaro Tavares à Costa do Ouro, agora Estado do Gana, onde se deslocara como Embaixador de Governo às festas da independência do país, para proferir o seguinte voto:
“À natural alegria de o vermos regressado a esta Província e ao seio deste Conselho, juntamos a satisfação de o sabermos investido daquelas altas e excecionais funções com que o Governo na Metrópole quis distinguir a pessoa de V. Ex.ª. Desde o dia 6 de março corrente que um país estruturalmente africano nasceu para a independência e liberdade. À volta do berço deste nascimento se reuniu a maior parte das nações do mundo. Mas nenhuma como Portugal tinha o direito de ali estar presente, pois fomos nós, os portugueses, os primeiros a levar àquelas paragens o lume vivo da civilização e os primeiros a erguer nas trevas do continente negro um fasto luz que ainda se não apagou.”

Todo o novo contexto de independências começa a ser objeto de ponderações e avisos, e no Conselho há sempre uma voz que empresta convicção ideológica ou tece advertências, oiça-se um comentário no momento exato em que a Guiné Conacri passou a ser um Estado independente, quem assim fala diz-se representante dos interesses da população indígena da Guiné:
“Felizmente para nós, portugueses, não temos problemas políticos a resolver nas nossas províncias ultramarinas, ao passo que os povos oriundos de grande parte dos territórios estrangeiros deste continente se encontram hoje sublevados contra os respetivos países dominadores, as populações do nosso Ultramar continuam vivendo em paz e sossego, com absoluta calma e na melhor harmonia. Isto só demonstra a justeza dos elevados princípios de ordem política, económica e social, que informam a nossa administração ultramarina e o caráter fundamentalmente humano e cristão da nossa ação civilizadora em África.
O atual clima político no continente africano impõe-nos o dever de estarmos atentos e enfrentar os acontecimentos sem hesitações e com a maior objetividade. Qualquer afrouxamento no ritmo da nossa ação administrativa no Ultramar poderia ser interpretado como um recuo. Nós não queremos que os demais povos africanos, sobretudo os dos territórios estrangeiros vizinhos dos nossos, que hoje são independentes ou gozam de plena autonomia administrativa, procurem diminuir-nos ou amesquinhar-nos com a acusação de sermos os próprios responsáveis pelo estado de atraso em que durante longo tempo vivemos em relação aos demais países africanos mais adiantados, e por isso mesmo devemos intensificar a nossa ação administrativa ultramarina promovendo medidas tendentes ao desenvolvimento económico e social dos nossos territórios africanos, assegurando aos indígenas um nível de vida mais elevado e criando-lhes um ambiente suscetível de concorrer para a satisfação das suas mais prementes necessidades morais e materiais.”


É pouquíssima a documentação existente referente ao mandato do Capitão-Tenente Peixoto Correia como Governador. Em 18 de junho de 1964, o Brigadeiro Arnaldo Schulz preside pela primeira vez ao Conselho, Mário Lima Wahnon é eleito vice-presidente, Teixeira da Mota torna-se o representante da Guiné no Conselho ultramarino. Prossegue naturalmente a rotina, caso do Regulamento da Assistência Médica e Medicamentosa do Sindicato Nacional dos Empregados do Comércio e da Indústria da Província da Guiné, abole-se a designação de Sindicato Nacional que passa para Caixa Sindical. O novo governador anuncia o início dos trabalhos na nova estrada asfaltada Mansoa-Mansabá, prevendo-se o seu prolongamento até o Gabu. O vogal Artur Augusto Silva tece considerações sobre o papel das Missões que tinham passado pela Guiné e destaca duas como bastante relevantes: a Missão de estudo e combate às tripanossomíases e a Missão geoidrográfica da Guiné.

Quando se trata de analisar o Orçamento para 1965, Schulz usa da maior prudência falando das verbas do Plano Intercalar de Fomento:
“Não podemos esquecer que as verbas do Plano de Fomento são obtidas através de empréstimos que é necessário pagar, bem como os respetivos juros, daí a necessidade de que o dinheiro empregue no fomento produza, pelo menos, o capital e os juros indispensáveis ao pagamento das prestações que nos são impostas. E como o desenvolvimento dos sucessivos planos de fomento implica novos empréstimos, aumenta progressivamente a nossa dívida e consequentemente o aumento do quantitativo das prestações a pagar; ou os investimentos dão o rendimento necessário à satisfação de tais encargos ou são as escassas receitas da Província a fazer-lhes face e caminharemos para uma asfixia financeira que não nos irá permitir fazer nada mais durante muitos anos”. E adverte mesmo que não se pode consentir que as verbas do Plano de Fomento tapem as lacunas existentes no Orçamento da Província, e deixa a recomendação que todos os serviços se devem esforçar por cobrar receitas por forma a dispor-se de maior verba. Ponto curioso é que esta apreciação virá a conhecer uma inversão radical com o seu sucessor, a quem aliás o Governo Central irá conceder meios que Arnaldo Schulz jamais obteve.

(continua)

Álvaro da Silva Tavares, Governador da Guiné (1956-1958)
António Augusto Peixoto Correia, Governador da Guiné (1959-1962)
Arnaldo Schulz, Governador da Guiné (1964-1968)
Bissau, Avenida Marginal
Balantas em festa, imagem da atualidade
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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24028: Historiografia da presença portuguesa em África (353): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (7) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P24047: (In)citações (230): Nunca digas adeus, até sempre! (José Belo, Key West, Flórida)


Em Key West, lá na Florida do furacões, no Sloppy Joe's Bar, haverá sempre alguém, com uma alma lusitana, a qualquer hora do dia ou  da noite, a beber uma ginginha (ou um daiquiri bem geladinho), o mesmo é dizer a dar de beber à dor... e à saudade. Quem sabe, se o nosso leitor passar  um dia por lá,  se não dá de caras com o nosso Zé Belo... Que  os bons irãs do poilão da Tabanca Grande, mesmo à distância, lhe deem longa vida e saúde agora lá nos States e mantenham fluídas as nossas comunicações.

José Belo, jurista, gestor de conflitos, mediador cultural... o nosso luso-sueco-lapão, cidadão do mundo, efectivou-se como membro (registado) da Tabanca Grande em 8 de março de 2009 mas ele já estava desde 6/6/2007, entrada pela mão do Zé Teixeira, também ele "Maioral" (*)

(i) tem repartido a sua vida até agora entre a Lapónia (sueca), Estocolmo e os EUA (Key West, Florida, conforme as estações do ano e os quatro humores;

(ii) foi nomeado por nós régulo (jubilado e vitalício) da Tabanca da Lapónia: recusamo-nos a aceitar que ele se despeça do cargo: afinal todos os anos pela primavera, corria o boato de que a Tabanca da Lapónia ia morrer para logo a seguir ressuscitar, como a Fénix Renascida (*); 

(iii) na outra vida (todos temos mais do que uma), foi alf mil inf, CCAÇ 2381, "Os Maiorais", Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70): também ele participou numa guerra, como todas as guerras, "absurda e inútil";

(iv) é, legalmente, cap inf ref (mas poderia e deveria ser coronel) do exército português;

 (v) durante anos alimentou, no nosso blogue, a série "Da Suécia com Saudade"; 

(vi) tem 240  referências no nosso blogue.


1. Mensagem do Joseph Belo:

Data - domingo, 5/02/2023, 22:58

Assunto - Na boa companhia da fadista clássica (!) Hermínia Silva

Caro Luís

Os anos passam, as idades aumentam, as adaptações cómodas tornam-se… saudáveis!

Depois de ter ressuscitado pelo menos quatro vezes (o que, mesmo usando os parâmetros da Bíblia Sagrada,  é inaceitável!) é tempo da quase mítica Tabanca da Lapónia encerrar definitivamente o portão voltado à imensidão Árctica. (**)

As tentações e decadências da floridiana Key West acabam por sobrepor-se na vida deste hermita lusitano. O tal luso-lapão factualmente único, dentro do espírito épico (!) do que… se mais terra houvera lá chegáramos!

Quanto às fronteiras extremas da Tabanca Grande, 
substitui-se simplesmente o extremo do extremo
norte europeu pelo extremo do extremo sul norte-americano. (Certamente que isto dos “extremos” saltitantes terá algo a ver com um capitão extremista de um impossível de esquecer… PREC!)

Foi numa procura de comunicação com Amigos e Camaradas da Guiné que procurei levar até aí alguns dos exotismos do dia a dia dentro do Círculo Polar Árctico. Sentindo orgulho em amizades que hoje não existiriam sem o meio de ligações que tem sido a Tabanca Grande.

Se julgam que neste momento de despedida se ouve na Lapónia sueca um clássico e triste hino fúnebre,  enganam-se. Ecoa nesta escura imensidão gelada o... Fado da Mariquinhas, cantado na versão clássica da tão nossa Hermínia Silva!

Um grande abraço do JBelo



2. Nova mensagem do Joseph Belo:

Data - terça, 7/02/2023, 05:43  
Assunto - Pare! Escute! Olhe!

Caro Luís

Por vezes a saudade e as distâncias acabam por nos colocar o… ”carro à frente dos bois “! O texto que te enviei está demasiado pessoal ao referir uma mudança, importante para mim e para alguns amigos próximos, mas que acaba por se tornar o tal “conversar com o meu umbigo”.

Texto escrito sobre o joelho, surgido ao constatar uma mudança radical de um “marco geodésico” nos “limes” da Tabanca. Mas, mais não se trata do que… subjectivismos!

Os sentimentos e avaliações de fora para dentro são por vezes bem díspares dos efectuados de dentro para fora. É uma das lições de “tarimba” para os que estão mais de quatro décadas totalmente afastados do… ”dentro”!

Ficará portanto o texto ao critério editorial.

Um grande abraço, JBelo


3. Resposta do Luís Graça  

Data - terça, 7/02/2023, 11:48  

Querido amigo e camarada:

Fico, às vezes, na dúvida sobre o que é pessoal, reservado e intransmissível, de circulação e partilha mais restrita (entre familiares, amigos...). Ía-te pôr essa questão... Mas, se me dás luz verde ou amarela intermitente, terei todo o gosto em publicar no nosso blogue as tuas mensagens sempre originiais e com o seu quê de sabedoria e mistério (como, aliás, acabo de o fazer, às tuas duas últimas).

Sei que estás, há uns tempos a esta parte, a fazer o luto desse lugar, mágico, onde foste feliz, a tua (e também já um bocadinho nossa) Tabanca da Lapónia... Confesso que, por minha parte, vou ter saudades... Só conheço a Suécia até Kalmar (aliás, da Suécia só conheço Kalmar)... 

Mas deixa-me dizer-te que todos passamos um dia por isso: há que dizer adeus à casa onde nascemos,  à terra onde vivemos parte da nossa vida, ao nosso local de trabalho, aos velhos amores que não voltam mais, aos amigos que morreram, etc. Mas, não, nunca digas adeus, até sempre!... ("Até sempre": é uma expressão portuguesa que se usa para uma despedida quando se prevê uma separação definitiva, como a causada pela morte, ou muito longa e dolorosa.)

Eu, por exemplo, eu e a Alice, sabemos que um dia destes vamos ter que dizer adeus a Candoz... onde investimos tempo, dinheiro, sobretudo afetos... Até fizemos um blogue!... A nossa sociedade (e família), pela lei natural da vida, vai perdendo vigor e liberdade de ação: surgem as doenças, as incapacidades, a morte, etc. Os nossos filhos têm outros sonhos, interesses, preocupações, limitações, lugares... Candoz está a 400 km de Lisboa e a 80 do Porto... Acontece o mesmo noutras famílias, como a tua, a minha, as dos nossos camaradas...

Pessoalmente, não tenho o sentido de propriedade, mas valorizo o pouco que tenho, dividido por Alfragide, Lourinhã e Candoz... Há decisões dolorosas, a da alienação, sobretudo das coisas que são "animadas", as nossas geografias emocionais, as nossas relações... Mas será que essas se perdem? Podemos cultivá-las no jardim da memória (a única coisa que não nos podem tirar...). 

Enfim, talvez o teu texto nos ajude também a saber lidar com a(s) "perda(s)"... 

De qualquer modo, para onde quer que vás (e vais, felizmente,  para mais perto dos teus filhos e netos), sabes que tens sempre aqui alguém que te sabe ouvir e até compreender. Ou pelo menos que faz por isso. Afinal, a Guiné e Portugal, a nossa terra natal, aproximaram-nos. E, além de camaradas, ficámos amigos. Um abração. Luis






"A minha alegre casinha"... A Tabanca da Lapónia (ou pelo menos o casarão)  continua a lá estar, em Abisko, Kiruna, bem perto da terra do Pai Natal... Um poeta deixou lá este escrito à porta: 

É uma casa... portuguesa ? 
Sim, dizem uns, outros, não, 
Não se tem bem a certeza, 
O dono é luso-lapão...

É Belo, não Ruy, José,
E de renas, criador, 
E agora blogador, 
Mas fala pouco... da Guiné...

Diz que o mar o despejou. 
E não é nenhuma facécia, 
Neste reino da Suécia, 
Ele só por amor ficou.

Teve pelo menos 3 blogues. Foram, infelizmente, removidos... E, com muita pena nossa, não foram capturados em tempo útil pelo nosso Arquivo.pt...
Fotos (e legendas): © José Belo (2034). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


4. Nova mensagem do José Belo:
 
Data - terça, 7/02/2023, 16:11  

Assunto - Trovas ao vento que passa

Caro Amigo

Grato pelo teu E-mail. Nele apercebe-se teres compreendido o difícil que é, nas nossas idades, o fecharem-se definitivamente certas portas.

O termo “definitivamente” tem hoje um significado que não é o mesmo de quando tínhamos vinte anos. Alguém terá escrito: “Para se sentir a falta de algo, há que perdê-lo primeiro“.

E lá se cai nas tais subjetividades valorativas quanto ao viver-se (sem um único vizinho!) num círculo de trezentos quilómetros em volta da casa. Para uns assustador pelo total isolamento. Para outros indiscritível na sensação de independência.

Mas quanto aos “fechar de portas”,  o mesmo clássico acima referido terá escrito mais ou menos isto: “Ao atravessar esta porta não estou só saindo de um local mas simplesmente entrando noutros”

Como já te escrevi, a publicação destes subjectivismos (!) fica ao inteiro critério editorial (***).
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Notas do editor:


(**) Vd. postes de:

 

28 de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22146: Tabancas da Tabanca Grande (3): Morreu a Tabanca da Lapónia, viva a Tabanca da Lapónia!... A notícia da sua morte foi manifestamente exagerada.


16 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20655: Da Suécia com saudade (63): reabrindo a Tabanca da Lapónia, agora ao povo... (José Belo)

(***) Último poste da série > 2 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24030: (In)citações (229): A matança do porco... do nosso contentamento (Francisco Baptista / Alberto Branquinho / Joaquim Costa / José Belo / Luís Graça / Valdemar Queiroz)

Guiné 61/74 - P24046: Efemérides (381): Os 60 anos da formação dos primeiros Comandos, em Zemba, Angola... Convite para a sessão solene comemorativa do encerramento das Comemorações, no auditório do Instituto de Defesa Nacional, Lisboa, 15/2/2023, 17h00 (Associação de Comandos)



1. Convite que nos chegou ontem por intermédio do cor inf ref Manuel Bernardo, com uma mensagem da Associação de Comandos (Delegação de Lisboa), que é do seguinte teor:

De: Associação de Comandos Delegação de Lisboa <associacao.comandos.lisboa@gmail.com>
Date: segunda, 6/02/2023 à(s) 11:40
Subject: Convite

Caros Sócios, Companheiros e Amigos,

Anexo convite para a sessão solene do 60º aniversário da formação dos primeiros Comandos em Zemba.

Mama Sume
Jaime Silveira

2. Chama-se a atenção para os nossos camaradas que queiram comparecer a esta sessão solene, que deve ser dada, até ao dia 10 do corrente, a  confirmação de presença,  para estes contactos;

Telf: 21 353 83 73 

Tlm: 926 991 129

email: associacao.comandos.dn@gmail.com
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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P24045: Parabéns a você (2143): Constantino Neves, ex-1.º Cabo Escriturário da CCS/BCAÇ 2893 (Nova Lamego, 1969/71)

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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24035: Parabéns a você (2142): José Belo, Cap Inf Ref, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2381 (Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70) e Mário Silva Bravo, Médico Ortopedista, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 6 (Bedanda, 1971/72)

terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24044: Notas de leitura (1551): Quem mandou matar Amílcar Cabral? (José Pedro Castanheira, jornalista, "Expresso", 22 de janeiro de 2023) - Parte I - Talvez "o maior mistério da absurda e inútil guerra colonial"... (Luís Graça)

Amílcar Cabral (1924-1973) > c. 1970 >  Foto  do líder histórico do PAIGC, incluída em O Nosso Livro de Leitura da 2ª Classe, editado pelos Serviços de Instrução do PAIGC - Regiões Libertadas da Guiné (sic). Tem o seguinte copyright: © 1970 PAIGC - Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde. Sede: Bissau (sic)... A primeira edição teve uma tiragem de 25 mil exemplares, tendo sido impresso em Upsala, Suécia, em 1970, por Tofters/Wretmans Boktryckeri AB. (Pormenor curioso: Amilcar Cabral fazia questão de se deixar  fotografar pelos fotógrafos estrangeiros com o barrete ou gorro "sumbia", usado por fulas e oincas... Foi-lhe oferecedo numa Tabanca do Oio ainda antes do início da luta armada,  escreveu o irmão no seu livro de memórias ... Dava-lhe um toque mais africano ou mais guineense. E na verdade tornou-se uma peça emblemática do seu vestuário ou "farda", e que ele usava sempre que visitava, de vez em quando, as "barracas" no mato...)

1. Na Revista do Expresso, edição de 22 de janeiro passado, José Pedro Castanheira (JPC)  (n. Lisboa, 1952), jornalista e escritor, volta a fazer a pergunta sacramental, que todo o mundo já fez e que se vem repetindo ao longo dos anos, "ad nauseam": "Quem mandou mandar Amílcar Cabral?"... São seis páginas de texto e fotografia (Revista, pp. E|32 - E|37), que merecem que façamos aqui uma condensação e uma breve análise.

Já em 1993, o jornalista havia publicado no semanário "Expresso" uma extensa reportagem, com o mesmo título interrogativo, e que depois iria desenvolver em livro, de 326 pp., com igual título, publicado em finais de 1995 sob a chancela da Relógio de Água. (Traduzido em italiano e em francês, teve na sua apresentação o gen Spínola e o Luís Cabral, ambos sentados lado a lado: os inimigos do passado não se conheciam até então pessoalmente.)

Essa reportagem de 1993, um verdadeiro trabalho de jornalismo de investigação, cada vez mais raro na nossa imprensa escrita, e justamente premiado,  levou-o, além da visita ao local, em Conacri, onde Amílcar Cabral foi morto a tiro por Inocêncio Cani, a outros sítios e a entrevistar cerca de meia centena de pessoas, oriundas de Portugal, Guiné-Bissau e Cabo Verde. 

Para a elaboração do livro fez uma nova ronda de entrevistas e teve acesso, em primeiríssima mão, a dois importantíssimos arquivos portugueses: (i) o Arquivo da PIDE/DGS, à guarda da Torre do Tombo; e (ii) o Arquivo Histórico-Diplomático, do Ministério dos Negócios Estrangeiros, para além das Actas do Conselho Superior de Defesa Nacional

"O livro provocou uma enorme polémica. Principalmente porque questionava a versão oficial do crime, em que coincidiam, quer o Presidente Sékou Touré, quer o PAIGC, e que a generalidade das organizações anticolonialistas aceitou pacífica e acríticamente" (pág. E|34):  o autor moral do crime eram os colonialistas portugueses, dividindo-se as culpas pelo  gen Spínola e a PIDE/DGS.  

Ainda hoje há muita gente, a começar naturalmente por antigos altos dirigentes do PAIGC (como o 'comandante' Pedro Pires, cabo-verdiano, ex-presidente da República de Cabo Verde, entre 2001 e 2011) que continua a defender essa tese, a que não é alheio o trabalho de dois jornalistas que não podem ser considerados, segundo JPC, "independentes". Cita os casos do moçambicano, de origem goesa, Aquino Bragança e do russo Oleg Ignatiev.

Ainda hoje Pedro Pires, sem qualquer suporte documental, nem evidência factual, continua a incriminar Spínola e a PIDE/DGS, como de resto o fez no discurso de abertura do Fórum Amílcar Cabral, 18 de janeiro de 2013 (e que foi transcrito na íntegra por "A Semana 'On line'", Praia, Ilha de Santiago, Cabo Verde, 20 de janeiro de 2013, uma publicação mutimédia próxima, política e ideologicamente, do PAICV, o Partido Africano para a Independência de Cabo Verde). Vale a pensa transcrever um excerto:

(...) "Do lado das autoridades coloniais, estava em curso uma campanha militar desesperada, lançada pelo seu Comando político-militar, na tentativa de reverter a seu favor o estado de equilíbrio militar, portador de muitos riscos, que vinha prevalecendo, apostando na recuperação das regiões libertadas, o que estava a ser muito difícil, conjugada com uma intensa e diversificada campanha sociopolítica demagógica, em torno da chamada Guiné Melhor. 

"O recurso ao assassinato do Líder do PAIGC insere-se na busca de saída para o grave dilema em que vivia o poder colonial, precisamente, quando sentia que estava em vias de perder a guerra, com consequências desastrosas para o futuro do império colonial. Nada melhor do que decapitar o PAIGC, solução experimentada em outras guerras coloniais. Reside aí a razão principal da decisão última de avançar com a operação do assassinato de Amílcar Cabral pelos serviços secretos portugueses e por seus homens-de-mão."(...)

Mas voltando  ao Aquino de Bragança (1924-1986): era então um importante quadro e intelectual da FRELIMO, sendo  "o único jornalista estrangeiro autorizado a fazer uma investigação in loco", ou seja, em Conacri (estamos a citar o JPC.).

As suas fontes maioritárias terão sido as "confissões dos conspiradores arrancadas através de tortura", o que é ética  e deontologicamente inadmissível para jornalista profissional. Um mês depois, escreveu um artigo na "Jeune Afrique" e a sua versão "passou a ser uma espécie de verdade oficial"... E incontestada, durante anos.

Oleg Ignatieev foi outro jornalista a escrever sobre a trágica morte de Amílcar Cabral ("Três tiros da PIDE - Quem, porquê e como mataram Amílcar Cabral" (Lisboa, Prelo, 1975, 185 pp.). Para JPC, o Ignatiev não tinha a "indispensável credibilidade", tudo indicando que ele, na época, devesse  pertencer ao KGB, os serviços secretos da antiga União Soviética. 

É desta fonte a hipótese do envolvimento, na conspiração, de altos  quadros dirigentes do PAIGC, guineenses, como o Osvaldo Vieira, primo-irmão do 'Nino' Vieira...

A reportagem do JPC sobre "o maior mistério da Guerra Colonial" (que ele adjetiva como "absurda e inútil") partia de "quatro hipóteses plausíveis, muito provavelmente interligadas":

(i) uma ação do gen Spínola e dos seus homens, na iminência de "perder a guerra":

(ii) uma operação especial da PIDE/DGS, além fronteiras;

(iii) uma jogada maquiavélica e antecipada de Sékou Touré, um ditador que sonhava com a "Grande Guiné", e via no Amílcar Cabral um rival de estatura pan-africana;

(iv) o desfecho inevitável da crescente conflitualidade existente no interior do PAIGC, entre os combatentes (guineenses) e a "nomenclatura", dirigente (cabo-verdiana). 

A reportagem de 1993 não era conclusiva nem o livro de 1995 (tal como não o é nenhuma outra investigação, independente, feita até agora, em qualquer outra parte do mundo).     


O livro do  JPC foi mal recebido, nomeadamente em Cabo Verde, sendo o autor acusado de "branquear" o papel dos militares portugueses e da PIDE/DGS. 

Da Guiné-Bissau, o JPC não teve reações. O livro nem sequer lá foi apresentado. E o próprio Amílcar Cabral é, diz ele no fim deste artigo que estamos agora a recensear,  uma figura histórica, cada vez mais esquecida e ignorada, como se ele nem sequer fosse guineense de nascimento... (Em contrapartida, o aeroporto internacional de Bissau continua a ostentar, "suprema ironia", o nome do suspeito ou controverso Osvaldo Vieira.)

Mas,  nos anos seguintes, o JPC continuou a aprofundar a sua investigação, explorando nomeadamente o inesgotável poço de informação que é o arquivo da polícia política do Estado Novo e as entrevistas dadas por alguns dos seus antigos operacionais, com destaque para o ex-inspetor Fragoso Allas, homem da confiança de Spínola, e que chefiava a delegação de Bissau (foi entrevistado em 2017 pela historiadora Maria José Tíscar, vivia ele então na África do Sul).

O que o JPC constatou, "com surpresa" (sic), foi que a PIDE/DGS estava infiltrada ao mais alto nível, na direção do PAIGC, "com acesso direto a Cabral"!...

E quanto ao Spínola e o seu estado-maior? Contra ele, Spínola tem a Op Mar Verde, a invasão de Conacri em 22 de novembro de 1970, em que deliberadamente que se quis mudar o regime em Conacri e decapitar o PAIGC: a liquidação de Sékou Touré e de Amílcar Cabral. (Aqui o JPC parece ter esquecido que as instruções que o comandante Alpoim Calvão tinha era para apanhar o Amilcar Cabral, "vivo ou morto": mas ele valia muito mais vivo e trazido para Bissau).

 Fracassada a operaçáo ou gorados os objetivos político-militares mais importantes, Spínola passou a empenhar-se cada vez mais noutras soluções para o conflito.

"Todos (ou quase todos) os oficiais com responsabilidades em Bissau já abriram os seus baús de memórias. Memórias muito variadas, por vezes contraditórias, onde se denotam velhos ódios e ajustes de contas, mas que não incluem a eliminação do comandante inimigo, pelo menos em 1973. Com efeito, desde 1971 que Spínola se virara afanosamente para a busca de uma solução política, mulltiplicando-se em iniciativas para chegar à fala com Amílcar Cabral " (pág. E|36).

Por outro lado, das atas do Conselho Superior de Defesa Nacional, órgão que acompanhava toda a evolução dos acontecimentos nos três teatros de operações, não há sequer  qualquer alusão à morte do líder histórico do PAIGC. 

Em conclusão, pode dizer-se, segundo JPC, "que dos arquivos portugueses e das memórias dos seus principais intervenientes, já tudo ou quase tudo se conhece". O mesmo não se passa "do outro lado"...

Veremos, noutro poste,  a segunda parte do bem pensado e estruturado artigo do JPC.

(Continua)
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segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24043: Fauna & flora (22): Algumas boas notícias para os mais de 700 chimpanzés (ou "daris") do Boé, graças ao fantástico trabalho de conservação da Chimbo Fundation&Daridibo, com sede em Béli


Um pequeno documentário baseado em vários vídeos, obtidos por câmaras de vigilância,  de chimpanzés no Boé, Guiné-Bissau.  Narração, em fula, por Bacari Camará, que vive em Béli, e é gestor de projeto. Legendas em inglês.

Vídeo (12' 30''), da Foundation Chimbo, alojado no You Tube.  Aqui reproduzido com a devida vénia.


1. Temos dado aqui  alguma atenção à fauna & flora" da Guiné-Bissau, e em particular aos chimpanzés do Boé e do Cantanhez (temos 11 referências ao nosso "dari"),  

No tempo da guerra, entre 1961 e 1974, provavelmente nenhum de nós, antigos combatentes portugueses, deve ter visto um chimpanzé, a não ser infelizmente em cativeiro. São animais, primatas como nós, territoriais e sociais (e os mais próximos de nós, em termos genéticos e evolutivos) mas de difícil observação na natureza...

Oxalá o visionamento deste vídeo (falado em fula, com legendas em inglês) contribua também para sensibilizar os nossos leitores para a problemática da proteção do chimpanzé e da preservação do seu habitat. O chimpanzé da África Ocide
ntal (Pan troglodytes)  é considerada uma espécie ameaçada, "criticamente em perigo".

Como diz um provérbio fula, uma única árvore não poder fazer uma floresta... Daí ser fundamental trabalhar em rede, envolver outras organizações, regiões, a sociedade civil e  o Estado da Guiné-Bissau, bem como empresas mineiras, parcerias (caso da ASI - Aluminium Stewardship Initiative) e países vizinhos, mas sobretudo a população local, que, no caso do Boé, é maioritariamente fula. A caça ilegal, a pressão demográfica humana, a construção de estradas e os projetos de mineração são alguns dos factores de risco para a preservação desta espécie.

Felizmente, ao que parece, têm  sido bem sucedidos os projetos da Chimbo Foundation and Daridibo no domínio da conservação desta e doutras espécies animais, emblemáticas da Guiné-Bissau, como por exemplo o leopardo (predador do chimpanzé).

Na primavera de 2022, 178 locais sagrados do Boé, que já estavam registados como ICCA (Áreas Indígenas e Comunitárias Conservadas), foram aceites como áreas protegidas de categoria III da IUCN (International Union for Conservation of Nature / União Internacional para a Conservação da Natureza) na WDPA (World Database on Protected Areas / Base de Dados Mundial sobre as Áreas Protegidas) (Ler mais sobre isto, no boletim informativo da Fundação, de maio de 2022.)

Mais de 50 estudantes e cientistas da Holanda, Alemanha, França, Bélgica, Índia, Brasil, Itália, Suíça, Portugal, Espanha, Senegal, Guiné-Bissau e Canadá, já realizaram pesquisas que contribuíram para a conservação do Boé.  


Doações são bem vindas:

Conta bancária

Stichting Chimbo

IBAN: NL05INGB0002734651

BIC: INGBNL2A

Contactos:

Telef +31-6-17280797 (The Netherlands)
E-mail: info@chimbo.org


2. Reprodução de uma notícia da Lusa / Porto Canal, 2/1/2015 (com a devida vénia...)

Câmaras revelam um dos últimos recantos de chimpanzés 
em terras lusófonas

Béli, Guiné-Bissau, 02 dez (Lusa) - Chimpanzés a tomar banho num lago, a encestar pedras como num "afundanço" de basquete entre ramos de uma árvore ou simplesmente em passeio.

São animais em vias de extinção a nível global, mas há horas e horas de vídeo a mostrar a intimidade destes primatas que habitam nas florestas do Boé, sudeste da Guiné-Bissau.

Nestes filmes há também leopardos a desfilar como numa passarela, imagens de búfalos, gazelas, javalis e o que parece ser a cauda de um leão - do qual já foram encontradas pegadas.

Os membros da fundação Chimbo ficam ansiosos de cada vez que penetram na densa vegetação para ler os cartões de memória das câmaras de vigilância: sabe-se lá que animais vão ver.

Alguns, como o leão, eram dados como extintos na Guiné-Bissau desde a guerra pela independência, na década de 60 e até 1974.

Há que aguçar os sentidos: "os chimpanzés gritam quando se deitam e quanto se levantam", explica Piet Wit, ecologista, especialista em Agronomia e Gestão de Recursos Naturais, um dos responsáveis pela Chimbo.

Assim, quando a noite cai é possível saber aproximadamente em que árvores fazem os ninhos para dormir, para de manhã a busca avançar até perto desses locais e esperar que acordem.

A sede da Chimbo está montada na aldeia de Béli e dali parte a maioria das saídas de campo, mas é difícil deitar olho aos chimpanzés.

"Aqui no Boé, por cada cinco saídas, há talvez duas em que os consigo observar. E por vezes só ao longe", descreve Piet.

Daí a extrema utilidade da rede de câmaras de vigilância. A rede foi montada há cinco anos, primeiro em dez locais, hoje abrange 25 e com outras tantas câmaras prontas a entrar em ação, se necessário.

"Não as usamos todas em simultâneo porque não teríamos capacidade para as gerir", explica. Só com o conjunto que está ativo "já há muitas centenas de horas de vídeos acumuladas para ver".

Esta história de observação e preservação da natureza começa com um momento trágico na vida de Piet e da esposa, Annemarie Goedmakers.

David, filho do casal holandês, faleceu inesperadamente em 2006, aos 18 anos, devido a um problema vascular na aorta. Juntos já tinham passado férias na Guiné-Bissau. Annemarie, presidente da Chimbo, bioquímica e ecologista, ainda hoje mostra a foto de David a dormir num ninho de chimpanzé quando tinha 10 anos.

"Já tínhamos a ideia de fazer algo pelo Boé, mas depois de ele morrer, isso ganhou outra força".

Um dos primeiros trabalhos da Chimbo, com financiamento da MAVA -- Fundação para a Natureza, e outros doadores, consistiu num levantamento que permitiu chegar à estimativa de que haja cerca de 700 chimpanzés no Boé.

Nos últimos dois anos, o trabalho tem sido financiado por um dos institutos Max Planck, no caso, o Instituto Para a Matemática nas Ciências, com sede em Leipzig, Alemanha.

A Chimbo está incluída no grupo de pesquisa dedicado exclusivamente aos chimpanzés. "O nosso foco é o chimpanzé. Vemo-lo como uma espécie que é o símbolo de todo um meio-ambiente importante e com benefícios para as pessoas que aqui vivem", conclui Piet.

LFO // EL
Lusa/fim

[ Seleção / revisão e fixação de texto / negritos, para efeitos de publicação neste blogue: LG]
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Guiné 61/74 - P24042: (Ex)citações (420): As caçadas por meios aéreos só ao alcance de alguns (Gil Moutinho, ex-Fur Mil Pil)

1. Comentário do nosso camarada Gil Moutinho (ex-Fur Mil Pil, BA 12, Bissalanca, 1972/73) deixado no Poste 24030(*), que aqui publicamos, acompanhado de fotos enviadas posteriormente ao blogue:

Francisco Batista,
Fizeste-me recordar a minha infância em que tudo que descreves é tal e qual o que se fazia aqui na casa. Ainda tenho a dita faca "porqueira", 30 a 40 centímetros com duplo gume, também um funil zincado com um entalhe no bordo para a minha mãe empurrar a carne com o polegar dentro da tripa.

Na Guiné havia fama que em Binta (ou será Barro?) havia um local que preparava um leitão assado de truz. Numa missão (chamada de sector) de transporte geral de DO que me calhou, de periodicidade semanal, calhou ir a esse sítio e tendo encomendado o petisco, na volta perto do almoço, trouxe para a base e convidei dois outros comanditas e papamos o dito.
Apanhei uma gastroenterite que me pôs off durante uma semana. Aqui, só ao fim de bastantes anos recomecei a comer esse petisco.

Também, quando queríamos fazer alguma tainada, íamos à caça com um helicanhão e alvejávamos com muito cuidado para só estragar meia carcaça. O atirador tinha que tentar acertar a cerca de 2 metros de distância, pois eram balas explosivas, e daquele lado era para deitar fora cheio de estilhaços.

Durante a instrução em Tancos, também tínhamos um método eficaz para caçar perdizes. Íamos para os lados da Chamusca, Arripiado, onde as perseguíamos com o helicóptero e, quando já estavam exaustas de tantos voos rasantes fazerem, descíamos do aparelho e apanhávamo-las à mão. Era um método infalível e sem gasto de munições.

Recém chegado à Guiné, numa das famosas tainadas
Nova Lamego > Chegados de uma operação de caça à gazela
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Notas do editor:

(*) - Vd. poste de 2 de Fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24030: (In)citações (229): A matança do porco... do nosso contentamento (Francisco Baptista / Alberto Branquinho / Joaquim Costa / José Belo / Luís Graça / Valdemar Queiroz)

Último poste da série de 30 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23749: (Ex)citações (419): O termo "Brassa" como os Balantas se auto-denominam, na verdade, trata-se da denominação histórica de uma grande área geográfica que correspondia à província mandinga de Braço, B'raço ou Brassu (Cherno Baldé)

Guiné 61/74 - P24041: Notas de leitura (1550): Uma safra de leituras, sábado na Feira da Ladra, em tempos de pandemia (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Maio de 2020:

Queridos amigos,
Tony Tcheka é nome proeminente da poesia guineense e aqui se deixa referência à sua comunicação num encontro de escritores de língua portuguesa, realizado em Luanda em 2015 sobre o tema da relação de escritores com as cidades, Tony Tcheka privilegiou discretear sobre a evolução das temáticas poéticas pós-independência, onde a criança e a mulher sobressaem, a primeira por constituir a dor constante da infância humilhada, a fase patente do subdesenvolvimento e da humilhação; a segunda, decorre do facto de a mulher se ocupar de todos os misteres, deita mão a tudo, produz, curva-se na bolanha, prepara o arroz para a família, na cidade deita mão a tudo, e a literatura guineense espelha muito bem a sua dor física e psicológica. Bem gostei de voltar à Feira da Ladra depois do intenso jejum pandémico, trouxe outras leituras de que vos vou dar conta, um antigo combatente de Olhão que veio matar saudades à Guiné, e o relatório produzido por um think tank, o Bow Group, muito próximo do Partido Conservador britânico, elaborado em 1961, em que se diz claramente que não há qualquer solução militar para o império colonial português.

Um abraço do
Mário



Uma safra de leituras, sábado na Feira da Ladra, em tempos de pandemia (1)

Mário Beja Santos

Foi sábado de sol, o polícia a vigiar o cumprimento das normas, quem queria folhear e comprar alfarrábios usava obrigatoriamente máscara e luvas. Confesso que tinha saudades, eram meses sem visitas, compreensivelmente, ali me senti bem e entusiasmado, na fase de desconfinamento. A primeira surpresa foi o livrinho Literatura e Lusofonia 2015, desse encontro de escritores de Língua Portuguesa havia nomes sonantes como Pepetela, Manuel Rui e Tony Tcheka, poeta guineense que muito admiro. A UCCLA – União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa tem privilegiado estes encontros, o de 2015 foi em Luanda, a temática era a relação dos escritores com as cidades, a forma como as encaram e em que medida elas os inspiram. Como o nosso blogue, por definição está orientado para tudo quanto é Guiné, vamos dar a palavra a Tony Tcheka que discreteou sobre a criança, a mulher e a cidade na literatura guineense – Meninos da Terra Vermelha, alusão à cor da laterite.

Começou a sua intervenção com o poema Chamo-me Menino!, assim:
“Sou a criança pobre/ de uma rua sem nome/ num bairro escuro/ de covas fundas/ em gargantas/ fatalmente magras, carentes de pão/ e sem muita ambição/ Sou filho da miséria/ escancarada/ enteado da vida/ entreaberta/ Vivo na periferia/ passo no tempo/ com trejeitos d’homem/ Chamo-me Menino!/ Dou passas desde os cinco/ tenho doze chuvas/ uma cara operária/ sobre um corpo fininho/ cinco anos/ Sofro de raquitismo/ por comer com os olhos/ enquanto na garganta/ destilam bolas de saliva/ Meu peito nicotizado/ é mortalha e tantam/ arde e inflama/ como a chama! – Chamo-me Menino!”.

Tony Tcheka alude a jovens da geração que nos anos 1960, vivendo na cidade de Bissau, ia registando episódios diversos, apontamentos que inevitavelmente se prendiam com o sistema social e político. Iniciado o chamado processo de reconstrução nacional, Mário Pinto de Andrade deu acalento à publicação de muitos desses textos com o nome de Mantenhas para Quem Luta, antologia poética com 48 textos escritos em português, 1977. No ano seguinte seria editada uma segunda coletânea, a diversidade temática extravasava o colonialismo, a escravatura, a exaltação da liberdade e a esperança num futuro melhor. A investigador Filomena Embaló escreveu a propósito: “A questão de identidade não é apresentada como um fator de oposição entre o indivíduo e a sociedade na qual este evolui. Ela é analisada como um conflito pessoal do indivíduo, que consciente do seu desfasamento cultural em relação à sociedade de origem procura identificar-se com as suas raízes, da qual foi afastado pela assimilação colonial”.

É neste contexto que aparecem a criança e a mulher, a par da terra libertada. Como Tony Tcheka escreve: “Criança trabalhadora, menino de rua, portador de deficiência, enfim, a realidade vigente que mais não é que o reflexo do seu próprio atraso de desenvolvimento, o que também coloca a infância à margem da saúde e da própria escola”. E cita vários poemas onde realçam os “meninus de kriason”, crianças entregues a supostos cuidados de famílias urbanas remediadas, com o fito de aprenderem a ser gente e a ter uma vida melhor. "São levadas para a cidade com o fito de aprenderem a vida. Entre o enunciado e a verdade ressalta a dimensão verdadeira da criança maltratada, a criança escravizada. Chegados à cidade ou noutros centros urbanos, na casa dos senhores, são confinados a um trabalho árduo e sem limites. São os primeiros a erguer-se, ainda antes dos raios de sol vencerem a madrugada, seguindo os caminhos das fontes para encher baldes e baldes de água e apanhar lenha para fazer crepitar o fogareiro e preparar o ‘matabicho’ dos senhores da casa e familiares. Nunca vão à escola e se falham nalguma labuta são severamente punidos. Há muitos deles, quando tudo se torna insuportável, só lhes resta a fuga para a rua, onde alimentam o batalhão dos Meninos da Rua".

Refere o autor que trinta anos depois, em 2010, foi lançada em Lisboa uma nova antologia juvenil da Guiné-Bissau, assinada por 23 jovens com poemas em português e kiriol. E o que se verifica? Que persistem os meninos de ontem e de hoje na poesia guineense, povoam espaços criativos, de igual modo também se regista a presença feminina. E Tony Tcheka questiona o que é a cidade dos meninos. “Sacudida ciclicamente por crises políticas e militares violentas, ela resiste e disponibiliza-se como palco das lides literárias que acontecem nos centros culturais nas embaixadas de países amigos”.
E o poeta continua:
“Quando os tempos são duros, trazendo lascas e bagos de dor, outras penas perscrutam a cidade dos meninos, atingido pelo macaréu da maldade, e os canhões orquestram valsas fúnebres que sentenciam a desertificação compulsiva da cidade (…) Durante mais de uma década, esta cidade de meninos não parou de ser fustigada e castigada por lâminas desembainhadas, amputando mentes, lascando corpos, suprimindo vidas”.

Falando de 2014, ano de eleição de José Maria Vaz, com todas as expetativas de reconciliação nacional, o poeta Tony Tcheka destaca o alívio que as promessas de paz trouxeram ao país, relembra que as garças e pelicanos fizeram a viagem de regresso ao seu habitat, que muitos pássaros voltaram a cantar o fim da madrugada, como se estivessem a anunciar um novo tempo de uma esperança resgatada. O mesmo poeta que exalta o sofrimento da criança também não esquece que a mulher surge como a fiel depositária dos valores e referências da idiossincrasia guineense. É camponesa, é pescadora, é mestre, professora. E deste modo termina a comunicação de Tony Tcheka:
“Nem sempre ser mulher é sinónimo de satisfação, ante adversidades de vária ordem instala-se a revolta que desagua na escrita de uma poeta: obrigado por esta dor/ por este desespero/ essa voz gigante/ ecoando em mim/ … / obrigada por este momento de angústia/ por esta raiva de ser mulher/ esta luz/ obrigado por este silêncio/ meu refúgio…/. Mas é também pelo verso de Odete Semedo que se percebe uma abordagem inovadora sintonizada com o género: … sou o rio que corre/ tropeçando em pedras e velas/ para chegar ao seu destino/ não sou mulher nem homem/ … apenas um pedaço deste chão.
Tanto tratadas, no entanto, são poucas as vozes femininas no universo literário guineense. Destacam-se: Odete Semedo; Saliatu Costa; Domingas Samy; Filomena Embaló; Teresa Montenegro; Eunice Borges; Mariana Ribeiro; Auzenda Nogueira; Filomena Correia; Gina Có; Irina Ramos e Rira Ié. Contudo, no segundo volume da antologia poética guineense, Traços no Tempo, participam já nove poetisas”
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É este o registo que Tony Tcheka faz de crianças e mulheres na lírica guineense pós-independência. O outro documento que encontrei na Feira da Ladra intitula-se Retrato(s), o seu autor João Peres, edição do Núcleo de Olhão da Liga dos Combatentes, é uma lindíssima romagem de saudade que iremos ver a seguir.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24034: Notas de leitura (1549): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (15) (Mário Beja Santos)