Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quarta-feira, 28 de outubro de 2009
Guiné 53/74 - P5172: Estórias cabralianas (56): Cum caneco, alfero apanhado à unha! (Jorge Cabral)
Foto: © Jorge Cabral (2009). Direitos reservados.
1. Mensagem de Jorge Cabral (que já não precisa de apresentações ao fim destes anos todos, é como o meu velhote, que é o sócio nº 1 do Sporting Clube Lourinhanense, por morte de todos os outros gajos que eram mais importantes do que ele):
Amigos!
Uma 'estória' que fala em apanhados à mão, mas que nada tem a ver com o Anónimo de Pirada! Talvez tenha sim, com os Pirados de Missirá...
Abraços Grandes
Jorge Cabral
PS - Quando voltar à Guiné, em vez dos 'corpinhos' (*), vou oferecer às Bajudas, estas belas canecas
2. Estórias cabralianas (**) > Alfero apanhado à mão
por Jorge Cabral
Alferes apanhado à mão? Helicópteros e Cavalaria Turra?
Há uns dias telefonou-me o nosso Amigo Durães [, da CCS/do BART 2917, Bambadinca, 1970/72]. Estava em Setúbal, com um ex-cabo do Pelotão de Intendência de Bambadinca, o qual lhe jurava que o Alferes Cabral de Missirá havia sido, em 1971, apanhado à mão, quando regressava ao seu Destacamento.
Desaparecido durante dias, fora muito bem tratado pelo pessoal de Madina, passando a não ser incomodado pelos Turras. Garantia o homem da Intendência, a absoluta veracidade do evento, conhecido por todos os seus Camaradas. Queria o Durães saber se eu confirmava o facto.
Aqui, muito entre nós, confesso que hesitei na resposta. Que bela 'estória'! Podia aproveitar e descrever umas bem regadas churrascadas com o Comandante Corca Só (***) e talvez mesmo uns serões de striptease balanta…
Mitos, lendas, ficções. Por mim, tudo bem. Também fazem parte da História…
Não observaram os meus soldados, aviões e até helicópteros turras? Contra os quais aliás, descarregavam as G-3, num esforço tão absurdo quanto inglório.
E como em Missirá se exagerava sempre, chegaram a ouvir durante a noite ruídos próprios de Tanques, para os lados de Salá. A Cavalaria Blindada Turra em manobras, garanti eu, tendo no entanto recusado ensaiar umas morteiradas como me pediram insistentemente.
Quase no fim da Comissão, cheguei a ir a Madina com os Páras, e entrei mesmo na Base, pois os Guerrilheiros retiraram, indo montar uma emboscada, que me apanhou no meio da CCaç 12, a caminho do Enxalé.
Tendo ido sem o Pelotão, quando voltei a Missirá fui objecto da curiosidade de todo o Pessoal.
- Como era? E os Tanques?
- Claro que os vi - assegurei - Dois soviéticos, um chinês e quatro cubanos…
Veículos na Base? Encontrei pois, duas bicicletas…
Jorge Cabral
2. Comentário de L.G.:
A cabraliana, a estória cabraliana, é já um género literário, reconhecido e estudado na Universidade. Daqui uns anos alguém fará douramentos sobre este material altamente revelador da dissonância cognitiva e falta de alinhamento dos bandos que, na Guiné, por detrás do arame farpado, defendiam a honra da Pátria (Bruno dixit)...
Como se pode deduzir da leitura de mais esta cabraliana, o boato (desmoralizante) tinha um efeito dissolvente no moral das nossos tropas, como um dia opinou um PIDE/DGS à minha frente, no Café do Teófilo, em Bafatá. Como é possível imaginar o nosso Cabral, o único, o verdadeiro (porque o outro era um renegado...) (***), apanhado à unha e depois em altos conciliábulos e quiçá orgias com o Corca Só e a sua corja de Madina/Belel ?!...
Ainda bem que o Cabral tem, por fim, a oportunidade histórica e soberana de , aqui, no blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, de lavar a sua honra e reafirmar o seu impoluto patriotismo. A guerra da Guiné foi demasiado real para a gente sequer poder ficcioná-la ou fazer humor negro, com ela, com os seus heróis e com as suas vítimas.
__________
Notas de L.G.:
(*) Sutiãs: vd. 16 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2354: Estórias cabralianas (29): A Festa do Corpinho ou... feliz o tuga entre as bajudas, mandingas e balantas (Jorge Cabral)
(**) Vd. último poste desta série > 17 de Outubro de 2009 >Guiné 63/74 - P5117: Estórias cabralianas (55): Marqueses e murquesas ou... Peludas e Peluda... (Jorge Cabral)
4 de Julho de 2006 >Guiné 63/74 - P935: Porque não me mataram ou apanharam à mão em Missirá ? (Jorge Cabral, Pel Caç Nat 63)
(***) Corca Só: Comandante das forças do PAIGC, na 'base' de Madina / Belel, a noroeste de Missirá, a norte do Rio Geba, já no limite do Sector 1, nos finais de 1960 e princípios de 1971...
Vd. poste de 22 de Novembro de 2007 >Guiné 63/74 - P2294: De Madina para Missirá... com amor: a mina da despedida (Luís Graça / Humberto Reis / Beja Santos)
(...) Na véspera de sair do destacamento de Missirá, com os seus homens do Pel Caç Nat 52 - para ser colocado em Bambadinca, sede do BCAÇ 2852 (1968/70) - o Alf Mil Mário Beja Santos é vítima de uma mina anticarro, no percurso de regresso a casa, na estrada Finete-Missirá, perto de Canturé... Ele e mais duas secções (...)
Diz a lenda que a mina era para o Beja Santos e trazia um bilhete do Corca Só, o comandante da base do PAIGC em Madina/Belel... Nunca ninguém leu o alegado bilhete, pregado numa árvore e que se terá volatizado... Mas se o Corca Só fosse um verdadeiro cavalheiro e conhecesse os romances e/ou os filmes da série James Bond - o que era de todo improvável - teria escrito, ao melhor estilo da luta de libertação, o seguinte bilhete: 'De Madina para Missirá... com amor' . (...)
Vd. também:
16 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2270: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (9): E de súbito uma explosão, uma emboscada, um caos...
24 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P905: A morte na estrada Finete-Missirá ou um homem com a cabeça a prémio (Luís Graça)
26 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P911: Uma mina para o 'tigre de Missirá' (Luís Graça)(...)
(...) Era voz corrente que o Beja Santos, conhecido entre os seus camaradas milicianos como o Tigre de Missirá, tinha a cabeça a prémio no regulado do Cuor... Exagero ou não, o próprio Beja Santos reconhece publicamente este facto (...) (Vd. post de 24 de Junho de 2006): A 15 de Outubro devíamos ter regressado mais cedo. O Comandante local do PAIGC, Corca Só, já me tinha ameaçado de morte, tendo mesmo deixado um bilhete na estrada. Saímos tardíssimo de Finete, o sol a cair a pique, como acontece nos trópicos (...).
(***) Vd. postes de:
10 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4403 - P4494: A Tabanca Grande no 10 de Unho de 2009 (2): Cabral só há um, o de Missirá e mais nenhum (Luís Graça)
4 de Julho de 2006 >Guiné 63/74 - P935: Porque não me mataram ou apanharam à mão em Missirá ? (Jorge Cabral, Pel Caç Nat 63)
terça-feira, 25 de janeiro de 2022
Guiné 61/74 - P22938: "Alfero Cabral ca mori": Lista, por ordem numérica e cronológica, das 94 "estórias cabralianas" publicadas (2006-2017) - Parte III: de 40 a 59
Uma caneca que ainda vai fazer furor entre as bajudas da Guiné-Bissau, na próxima incarnação do "alfero Cabral": "Kiss me, I'm an Alfero" [Beija-me, sou um Alfero]... Imagem que ilustrou a "estória" nº 56, acompanhada da seguinte legenda: "Quando eu voltar à Guiné, em vez dos 'corpinhos' [, sutiãs]... , vou oferecer às Bajudas, estas belas canecas"...
E a propósito, da "estória" nº 56 (Cum caneco, alfero apanhado à unha!), escreveu na altura o nosso editor LG o seguinte:
Como se pode deduzir da leitura de mais esta cabraliana, o boato (desmoralizante) tinha um efeito dissolvente no moral das nossos tropas, como um dia opinou um PIDE/DGS à minha frente, no Café do Teófilo, em Bafatá. Como é possível imaginar o nosso Cabral, o único, o verdadeiro (porque o outro era um renegado...), apanhado à unha e depois em altos conciliábulos e quiçá orgias com o Corca Só e a sua corja de Madina/Belel ?!...
Ainda bem que o Cabral tem, por fim, a oportunidade histórica e soberana de, aqui, no blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, lavar a sua honra e reafirmar o seu impoluto patriotismo. A guerra da Guiné foi demasiado real para a gente sequer poder ficcioná-la ou fazer humor negro, com ela, com os seus heróis e com as suas vítimas.(...)
4 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3399: Estórias cabralianas (40): O meu sonho de empresário (falhado): a construção de uma tabanca-bordel (Jorge Cabral)
(...) Claro que lembro do Tosco! Havia pretas, mulatas e até uma chinesa. Todas, mais os copos, trataram-me da saúde. Entrava sempre a coxear, por via dos descontos… Mas o meu preferido era o Bolero, onde jantava no primeiro andar, antes do Tango em baixo, tocado a rigor por uma orquestra de cegos. Ainda lá fui após o 25 de Abril. A mesma orquestra, as mesmas putas, mas a música mudara – Todos em coro cantávamos a Internacional (...).
13 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3446: Estórias cabralianas (41): O palácio do prazer, no Pilão (Jorge Cabral)
(...) De Bissau conheci muito pouco. Apenas o Pilão, e neste Os Dez Quartos, um palácio do Prazer. Era o local ideal para um sexólogo, pois tendo todos os quartos o mesmo tecto e paredes incompletas, ouviam-se os murmúrios, os gritos, os ais e os uis, deles e delas, em plena actividade. Sempre que lá fui, abstraí-me um pouco da minha função e dediquei-me à escuta, tentando até catalogar os clientes por posto, ramo, forma, jeito, velocidade e desempenho (...)
(...) Eram calmas as noites do Alfero? Deviam ser, pois assim que pôs os pés em Missirá, cessou imediatamente a actividade operacional dos seus vizinhos de Madina. Chegou-se a pensar que o Comandante Corca Só entrara em greve, mas no Batalhão acreditava-se num oculto mérito do Cabral. Aliás, estando ainda em Fá e esperando-se um ataque a Finete, o Magalhães Filipe para aí o mandou, sozinho, reforçar o Pelotão de Milícias. Lá passou oito dias, dormindo na varanda do Bacari Soncó, que o alimentou a ovos cozidos (...).
(...) Cumbá, a terceira mulher do Maunde, ainda uma menina, sentiu as dores de parto, ao princípio da noite. Às duas da manhã sou lá chamado. Está muito mal e as velhas não sabem o que fazer. Eu também não. Vamos para Bambadinca. Chegamos, mas Cumbá morre e com ela a criança não nascida. Amparo o Maunde, que chora e grita:-Duas vacas, Alfero, duas vacas! (...)
(...) O Amoroso Bando das Quatro deixou-nos muitas saudades. Mas que noite agradável ... até sonhámos com elas. Só que ainda nem três dias haviam passado, já recebíamos tratamento à fortíssima infecção que nos atingira o dito e adjacências. Graças à Penicilina, o caso seria em breve esquecido, pois afinal tinham sido apenas ossos do ofício, os quais segundo alguns até mereceram a pena... Porém, e estranhamente, os sintomas começaram a surgir nos africanos, soldados e milícias, os quais não tinham usufruído da benesse (...).
(...) Corria o ano de 1968, quando prestes a concluir o Curso, não resisti ao convite do Estado – Férias pagas em África, com grande animação e desportos radicais. Primeiro o estágio-praia para os lados da Ericeira, findo o qual, tive um grande desgosto. Tinham-me destinado ao turismo intelectual – secretariado. Felizmente as cunhas funcionaram e consegui ser reclassificado em atirador, tendo passado a frequentar no Alentejo, o estágio-campo. Terminado este, ainda vivi muitos meses de tristeza e inveja ao ver os meus camaradas integrarem satisfeitos numerosas excursões, as quais iam embarcando (...).
31 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4114: Estórias cabralianas (46): Inspecção Militar: E todos os tinham no sítio... (Jorge Cabral)
(...) Pois, também eu naquela manhã de Junho me dirigi à Avenida de Berna, ao Quartel do Trem Auto, onde hoje funciona a [Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da] Universidade Nova [de Lisboa].Éramos mais de cem, altos e baixos, loiros e morenos, alguns mancos, pitosgas muitos, um quase corcunda, três gagos e dois tontos. Mandaram-nos despir e pôr em fila, numa literal e verdadeira bicha de pirilau. (...)
(...) Calma, simpática, acolhedora, a Vila de Vendas Novas. Bom vinho, petiscos, raparigas bonitas. Que mais podia aspirar o Aspirante? No Quartel fazia tudo, isto é, nada. Acumulara cargos, Justiça, Acção Psicológica, Revista, Cinema e ainda os discursos da Peluda.Cumpria gostosamente um peculiar horário. Após o toque de alvorada, às vezes de ressaca, de cara por lavar e barba por fazer, corria para a Formatura Geral, onde... passava revista ao Pelotão. Meia hora depois, abancava no Bar e tomava um lauto pequeno almoço, antes de regressar à cama. (...)
(...) O Cidadão – Aluno XI7 frequenta a décima semana do Curso Unificado – Primário, Secundário, Universitário, o qual segundo as normas da Declaração de Cacilhas, lher irá conferir o Diploma da Sabedoria.Claro que, quando entrou na escola, já dominava muitas das matérias que antigamente demoravam anos a aprender, pois logo em criança lhe implantaram um chip com todos os conhecimentos básicos. Porém XI7, hoje chegou à aula cheio de dúvidas. É que encontrou uma fotografia do seu trisavô, vestido com uma farda e empunhando um instrumento, talvez uma arma.(...)
(...) Dois dias depois de chegado a Bambadinca em meados de Junho de 69, fui mandado montar segurança no Mato Cão. Periquitíssimo, cumpri todas as regras, vigiando a mata de costas para o rio, sem sequer reparar na beleza da paisagem.Mal sabia então, que ali havia de voltar dezenas de vezes, durante o ano que passei em Missirá. Pelo menos uma ida por semana para ver passar o Barco, no que se transformou numa quase agradável rotina.(...)
(...) - Meu Alferes! Meu Alferes! Já chegou o Senhor Abade! - O cozinheiro Teixeirinha, todo eufórico, gritava, à porta do meu abrigo.- Abade - pensei comigo - , o Puím?Magro, simples, humilde, o único Capelão que conheci na Guiné, viera de sintex e, antecipando-se, não esperara por ninguém, entrando no Quartel. Logo após o descanso, a missa foi celebrada, mesmo ao lado da Cantina, no local da Escola. Fiéis, sete, dois comungantes e o Padre, de paramentos verdes. (...)
(...) Tanto nas Tabancas Fulas como nas Mandingas, o Alfero actuava à vontade com as Bajudas, perante a complacência dos Homens e Mulheres Grandes… Aliás não ia além de um acariciar voluptuoso, acompanhado com promessas de encontros no Quartel. Na altura teria merecido o cognome de Apalpador. (...) Em Novembro de 1969, visitou uma Tabanca Balanta, Bissaque [, a norte de Fá, ], e ficou deslumbrado com a beleza das Bajudas, designadamente peitoral…
(...) Na Guiné, há mês e meio, mas já em Fá, havia nessa tarde muito calor. O pessoal dormia e toda a gente procurara a aragem possível. Em silêncio, o Quartel repousava… Eu porém, em tronco nu, saíra, a caminho da fonte mais pequena. Resolvera isolar-me, para escrever, calculem, um poema… Lá chegado, ainda nem escolhera um poiso confortável, quando vejo surgir, não sei de onde, um vulto de mulher, apenas com uns panos, caindo da cintura. (...)
28 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4750: Estórias cabralianas (53): A estranha doença do soldado Duá (Jorge Cabral)
(...) Quando uma noite, em Missirá [, o último destacamento de Bambadinca, a norte do Rio Geba, no Cuor,] o Alfero passava ronda, ficou estupefacto, ao constatar que todos os Soldados de Sentinela se encontravam acompanhados das respectivas Mulheres.- Mas que se passa? – indagou…- É por causa da doença! O Duá apanhou a doença do Victor!- Doença do Victor? (...)
11 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4938: Estórias cabralianas (54): O Alfero e as mezinhas (Jorge Cabral)
(...) Nem um mês tinha de Guiné e já andava a experimentar todas as mezinhas recomendadas pelo Nanque . Bem, todas não. Nunca bebeu a primeira urina da manhã, remédio infalível para o estômago mas ainda no outro dia o receitou a uma distinta senhora, que calculem, se zangou com ele, por se pensar gozada. Tomou porém todas as demais, desde afrodisíacos a um chá para a tristeza, que o deixou eufórico durante quase toda a comissão… Apesar de tantos tratamentos, a verdade é que o Alfero gozava de excelente saúde. (...)
(...) Há mais de 30 anos, que montei Escritório [de advogado] na Passos Manuel, entre o Jardim Constantino e o Intendente. Um bom local, com velhos da sueca, sem-abrigo alcoolizados e fanadas matronas em pré-reforma. Eu gosto. Aqui na Rua, já quase todas as lojas mudaram de ramo. Ultimamente, surgiram os Gabinetes de Fotodepilação. A propósito e não sei bem porquê, pois os pensamentos tal como as palavras são como as cerejas, lembrei-me primeiro de Pero Vaz de Caminha e do desembarque em Terras de Vera Cruz, quando os marinheiros depararam com as índias nuas, mostrando “suas vergonhas tão altas e cerradinhas”. E depois da Guiné. De uma espantosa conversa ao serão. O Alferes, os Furriéis, os Cabos, como de costume, falavam de tudo e de coisa nenhuma… Nessa noite, discutia-se um tema interessante – pêlos púbicos. Delas, claro está (...)
28 de Outubro de 2009 > Guiné 53/74 - P5172: Estórias cabralianas (56): Cum caneco, alfero apanhado à unha! (Jorge Cabral)
(..) Há uns dias telefonou-me o nosso Amigo Durães [, da CCS/do BART 2917, Bambadinca, 1970/72]. Estava em Setúbal, com um ex-cabo do Pelotão de Intendência de Bambadinca, o qual lhe jurava que o Alferes Cabral de Missirá havia sido, em 1971, apanhado à mão, quando regressava ao seu Destacamento.
Desaparecido durante dias, fora muito bem tratado pelo pessoal de Madina, passando a não ser incomodado pelos Turras. Garantia o homem da Intendência, a absoluta veracidade do evento, conhecido por todos os seus Camaradas. Queria o Durães saber se eu confirmava o facto. (...)
(...) A foto do Alfero, fardado de Alferes, no cais do Xime, comprova o que Avó Maria sempre disse. O seu neto Jorge deu-se muito bem na Guiné. Até porque, para ela, nunca saiu de Bissau, que devia ser igual à Lourenço Marques dos anos trinta, quando por lá passou. Essa a razão porque o Alfero, cumpriu simultaneamente duas comissões, uma em Fá e Missirá, outra na capital frequentando os bailes do Governador, os quais descrevia com pormenor em longas cartas, nas quais também falava das eloquentes homilias que ouvira na Sé Catedral. (...)
No final de cada mês, deslocava-se a Bambadinca a fim de levantar o dinheiro para pagar os ordenados aos Militares do Pelotão e aos Milícias. Era o dia do Patacão, ansiado por todos e ainda mais pela multidão de credores, que desde manhã acorria ao Quartel. Usurários, Pré-Sogros e Sogros, Batoteiros Profissionais, Dgilas, Alcoviteiros, Fanatecas, Músicos… havia sempre alguém à espera que o Alfero liquidasse as dívidas dos seus homens. Todos devedores, incluindo o Alfero, que prometera pagar, em prestações suaves, a conta do Fontória, onde em férias, numa noite, oferecera de beber a todos e terminara na Esquadra da Praça da Alegria. (...)
10 de maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6364: Estórias cabralianas (59): Notícias do Ano 2050, quando formos todos UPV e morarmos num Velhil (Jorge Cabral)
(...) Tenho como sabem, uma máquina do tempo, na qual viajo ao passado. Porém hoje a máquina avariou e em vez de recuar os quarenta anos programados, avançou e eis-me aqui no ano de 2050. Estou vivo e ainda trabalho pois agora já ninguém tem direito à Reforma. Exerço as minhas funções no Instituto da Promoção da Pobreza. Preparo um Estudo sobre o Empobrecimento Lícito e o certo é que já sei as conclusões – empobrecer é legítimo, justo, lícito e patriótico. (...)
___________
8 de janeiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22890: "Alfero Cabral ca mori": Lista, por ordem numérica e cronológica, das 94 "estórias cabralianas" publicadas (2006-2017) - Parte II: de 20 a 39
4 de janeiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22874: "Alfero Cabral ca mori": Lista, por ordem numérica e cronológica, das 94 "estórias cabralianas" publicadas (2006-2017) - Parte I: de 1 a 19
segunda-feira, 26 de junho de 2006
Guiné 63/74 - P911: Uma mina para o 'tigre de Missirá' (Luís Graça)
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Estrada Finete-Missirá > 1969 > O Fur Mil Reis (à esquerda) e o Alf Mil Carlão (à direita), do 2º Gr Comb da CCAÇ 12 vistoriando os restos da viatura (Unimog 404) em que seguia o Alf Mil Beja Santos, comandante do Pel Caç Nat 52, quando accionou uma mina anticarro, no dia 16 de Outubro de 1969, por volta das 18h00, na zona de Canturé (entre Finete e Missirá: vd. carta de Bambadinca, de 1/50.000).
Foto do arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).
Foto: © Humberto Reis (2006)
Eis como esta acção da guerrilha foi ficou relatada nos documentos classificados que temos em nossa posse:
(i) História da Unidade: BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70). Bambadinca: Batalhão de Caçadores 2852. 1970. Cap. II. 112. Documento reservado
Em 16 [de Outubro de 1969] , IN não estimado emboscou no lado direito da estrada Finete-Missirá, próximo de Canturé, uma coluna de reabastecimerntos do pel Caç Nat 52, compotso por 15 elementos, simultaneramente ao accionamento de mina A/C, causando 1 morto e 3 feridos graves às NT. O IN sofreu 1 morto quando provocava assalto.
(ii) História da CCAÇ 12: Guiné 69/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores nº 12. 1971. Cap. II. 16.
Registe-se ainda a intervenção do 2º Gr Comb [do Alf Mil Carlão e dos Furriéis Mil Reis e Levezinho] que, com o Pel Rec Inf da CCS [do BCAÇ 2852], foi em socorro duma coluna do Pel Caç Nat 52 que em 16 [de Outubro de 1969], já ao anoitecer, caíu numa emboscada com mina A/C comandada, no itinerário Finete-Missirá, próximo de Canturé, sofrendo um morto e três feridos graves.
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Finete, regulado do Cuor > 1969 ou 1970: Destacamento de milícias e aldeia em autodefesa de Finete, junto ao Rio Geba. Na foto, o furriel miliciano Henriques e dois dos soldados africanos da CCAÇ 12, do 4º Grupo de Combate, o Soldado Arvorado (mais tarde promovido a 1º cabo) José Carlos Suleimane Baldé e o Soldado Umarú Baldé, apontador de morteiro 60, mais conhecido por o puto (na foto, de pé, de cachimbo; era de facto um puto, com 16 ou 17 anos...).
Foto: © Luís Graça (2005)
Comentário de L.G.:
Lembro-me ainda muito bem deste fatídico acontecimento, que causou emoção em Bambadinca, até porque integrei a coluna de socorro que partiu daqui, atravessando o Rio Geba e a bolanha de Finete. Tudo se passou quase à nossa frente. O local da emboscada estava inclusive ao alcance dos nossos morteiros. Na altura ainda não havia obuses em Bambadinca, mas apenas um esquadrão do Pel Mort 2106 (espalhado, de resto, pelos ouytros aquartelamentos do Sector L1: Xime, Mansambo, Xitole, Saltinho).
O Beja Santos já me facultou cópia do relatório desta acção que ele próprio elaborou, na sua qualidade de comandante do Pel Caç Nat 52. Na carta ao Alcino Barbosa (1), há um pequeno conflito de datas: o Beja Santos diz, primeiro, que foi a 16 de Outubro de 1969, e depois, certamente por lapso, refere-se sempre a 15 (1); as nossas fontes dizem que foi a 16...
De qualquer modo, era voz corrente que o Beja Santos, conhecido entre os seus camaradas milicianos como o "tigre de Missirá", tinha a cabeça a prémio no regulado do Cuor... Exagero ou não, o próprio Beja Santos reconhece publicamente este facto no último post que inserimos (1):
"A 15 de Outubro devíamos ter regressado mais cedo. O Comandante local do PAIGC, Corca Só, já me tinha ameaçado de morte, tendo mesmo deixado um bilhete na estrada. Saímos tardíssimo de Finete, o sol a cair a pique, como acontece nos trópicos" (...).
_________
(1) Vd. post de 24 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P904: SPM 3778 ou estórias de Missirá (3): carta a Alcino Barbosa, com muita intranquilidade (Beja Santos)
segunda-feira, 5 de janeiro de 2015
Guiné 63/74 - P14120: Manuscrito(s) (Luís Graça) (43): Notas à margem do documentário de Silas Tiny, "Bafatá Filme Clube", com direção de fotografia da Marta Pessoa (Portugal e Guiné-Bissau, 2012, 78')
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bafatá > 15 de dezembro de 2009 > 18h02 > O Joaão Graça faz um selfie (quando o selfie ainda não era uma moda viral), tendo o velho cinema local (, edifício do início dos anos 70) por detrás de si. Comopranado o edifício em 2009 e com as imagens do filme (estreado em 2012), concluo que estará hoje mais bem conservado.
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bafatá > 15 de dezembro de 2009 > 15h22 > O edifício da antiga Casa Gouveia, hoje Tribunal Regional de Bafatá; o centro do parque onde estava a estátua do antigo governador Oliveira Muzanty, 1º ten da marinha (1906-1909) está agora o busto de Amílcar Cabral; à dierita da foto, fica o mercado e a piscina (agora em ruínas).
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bafatá > 15 de dezembro de 2009 > 16h16 > Bomba de combustíveis (já desativada) junto ao tribunal regional de Bafatá
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bafatá > 15 de dezembro de 2009 > 16h19 > O João Graça fotografado junto a uma velha bomba de combustível desventrada...
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bafatá > 15 de dezembro de 2009 > 15h22 > O edifício da Repartição de Finanças da Região de Bafatá (Direção Geral das Contribuições e Impostos, Ministério das Finanças).
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bafatá > 15 de dezembro de 2009 > 18h02 > 16h27 > A rua principal de Bafatá; do lado direito, o edifício do antigo restaurante A Transmontana onde muitos de nós íamos nos anos 69/71, matar a malvada... O supremo luxo para um tuga que vinha do mato, para "respirar aqui os ares da civilização", era um bife com ovo a cavalo e batatas fritas, regada com uma "basuca", tudo por 25 pesos...
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bafatá > 15 de dezembro de 2009 > 18h02 > 16h26 > O antigo edifício do Restaurante A Transmontana... Será que estas casas "ainda têm dono" ?
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bafatá > 15 de dezembro de 2009 > 15h13 > O João, fotogarado com a Célia Dinis e o filho, Bruno, no seu estabelecimento (Restaurante Ponto de Encontro). Diz-me agora o Patrício Ribeiro, em comentário a este poste, que o filho do casal morreu há dois anos: "O filho do Diniz e da Célia, o Bruno, infelizmente faleceu há aproximadamente 2 anos, por acidente de moto, o que deixou os pais muito abalados. Continuam a morar em Bafatá, depois de alguns meses passados em Portugal."
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bafatá > 15 de dezembro de 2009 > 18h11> O João Graça a telefonar ao pai... A eletricidade e o telefone terão sido levadas para a cidade pelo administrador colonial Guerra Ribeiro, em 1968... Há postos de iluminação pública na cidade mas á noite é a escuridão total... Ou era, na altura em que "Bafatá Filme Clube" foi rodado...
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bafatá > 15 de dezembro de 2009 > 17h34 > Fim de tarde, rua de Bafatá, com o rio ao fundo (1): há muito que o alcatrão desapareceu...
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bafatá > 15 de dezembro de 2009 > 17h33 > Fim de tarde, rua de Bafatá, com o rio ao fundo (2): quem vive em cima ("Barro do Rocha") não vai à baixa ("Bairro da Praça") só para ver a água do Rio Gebam, diz o João Diniz no filme...
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bafatá > 15 de dezembro de 2009 > 18h24> Pôr do sol sobre o rio Geba e a antiga piscina em ruínas.
Fotos: © João Graça (2009) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: L.G]
Estive a vê-lo hoje, com alguma emoção. Devo acrescentar, às tuas notas, que se trata de uma co-produção lusoguineense, da Real Ficção e da Telecine Bisssau...
Ver o filme (que é uma longa metragem, de cerca de 80 minutos) é rever Bafatá, embora se correndo o risco de se cair na tentação de comparar a cidade de hoje com aquela conhecemos, bonitinha, se não mesmo esplendorosa, entre meados de 1969 e o primeiro trimestre de 1971. Chamava-se então a "princesa do Geba"...
Claro que Bafatá (, o centro histórico,) é hoje uma cidadezinha "decadente", do interior da Guiné-Bissau, e aonde já não se vai, onde ninguém vai... Como muitas partes do mundo, a começar pelo interior de Portugal onde há vilas e aldeias históricas completamente despovoadas...
No interior da Guiné, no antigo "chão fula", Bafatá terá sido destronada por Gabu, mais próxima da fronteira leste e dos mercados dos países francófonos (Senegal e Guiné-Conacri), Nem o rio Geba Estreito é mais navegável, como no nosso tempo. As principais casas comerciais (Gouveia, Ultramarina, Barbosa, Esteves, Marques Silva, Faraha Heneni, Marques da XSilva, …) estavam ligadas à economia colonial, e já estavam em decadência com a guerra, tanto quanto me apercebi na altura…
A Bafatá que eu conheci, que tu conheceste, que muitos de nós conhecemos, vivia do “patacão da guerra”… Não escamoteemos esse facto... Por outro lado, muitos jovens partiram, depois da independência, uns por razões políticas (temendo represálias dos novos senhores no poder, como foi o caso de muitos dos nossos antigos camaradas guineenses) outros procurando oportunidades de trabalho no estrangeiro (Senegal, Guiné-Conacri, Cabo Verde"...) ou na capital, Bissau.
2. O meu filho tinha estado em Bafatá em 15 de dezembro de 2009, como as fotos acima publicadas documentam (e outras já publicadas anteriormente)... Ficou lá uma noite, e outra noite em Tabató, não sei se conheceu o Canjajá, conheceu, a Dona Vitória, a família Dinis, os novos e os velhos habitantes da cidade baixa, os poucos que lá viviam e por lá deambuklavam... Percorreu as ruas e tirou fotos nalguns sítios emblemáticos, a pensar no pai: o cinema, a antiga Transmontana, a piscina, o cais, o rio, o mercado... E as fotos, mais as notas que escreveu no seu caderno, deram-me uma ideia precisa da extrema decadência que atingira a cidade, em particular a parte baixa (e histórica) de Bafatá, decadência essa que se acelerou com o fim da guerra e com a independência…
Notas do caderno de viagem do João Graça, médico e músico à Guiné-Bissau em dezembro de 2009:
15/12/2009, 3ª feira, 11º dia, Bafatá, Tabatô
(...) Partida [, de Bissau, ] às 10h00 com Antero (motorista) e Ali (funcionário da AD). Ida ao quartel de Bambadinca, mas os militares recusaram [a entrada] , pela 2ª vez. Campos (bolanhas) de arroz. Ali disse: “África é um cego em cima de um diamante”. Paragem em Bafatá. Encontro com Demba, músico dos Super-Camarimba [, grupo de música tradicional afro-mandinga, com origem em Tabatô, tabanca a 12km de Bafatá; vd. também a sua página na Net].
Acho que o filme do jovem realizador, sãotomense, Silas Tiny (que conversou comigo e com o Fernando Gouveia, entre outras pessoas que conheceram a Bafatá colonial, na fase de conceção do filme) não mostra só o lado decadente de Bafatá (e, por extensão, da Guiné). Descortino no filme sinais de esperança, porque acredito que a Guiné-Bissau tem futuro... (E a talhe foice, acrescente-se, como nota positiva, que a Guiné-Bissau fez uma doação, de 75 mil dólares, para as vítimas do vulcão da Ilha do Fogo e, pela primeira vez, Bissau teve fogo de artifício na passagem de ano, em vez de tiros de Kalasnikov para o ar!)...
3. Algumas notas sobre as pessoas que são entrevistadas no filme, e que retirei do seu visionamento (**):
(i) Canjajá [ou Canjanjá, como vem, parece que erradamente, no genérico do filme ?] Mané, o antigo projecionista do cinema local (, pertença do Sporting Clube de Bafatá) e atual guardião das instalações, é o protagonista do filme… Há cinquenta anos que este homem guarda religiosamente o cinema de Bafatá (, um edifício ainda relatuivamente conservado, construído no início dos anos 70).… Terá hoje 75 anos. Nasceu em Mansoa, por volta de 1940, onde era pescador de “rede grande”… Em 1960, veio para Bafatá e começou a trabalhar no Sporting Clube de Bafatá, primeiro como contínuo e depois como projecionista, até chegar a fazer parte dos corpos gerentes, depois da indpendência… Ainda hoje é recordado pelos espetadores mais novos… Costumava adormecer durante as sessões, sendo preciso acordá-lo, ruidosamente, quando a fita se partia… Mandavam-lhe sacos de água e ovos, recorda o filho da Dona Vitória, o Toninho.
(iv) Canjajá também foi, já depois da independência, o encarregado da piscina de Bafatá: recorde-se que tinha o nome do administrador Guerra Ribeiro, e foi inaugurada em 1962. Depois da independência, ter-se-á chamado “Corca Só” (antigo futebolista do Clube Futebol Os Balantas de Mansoa, e comandante do PAIGC) e não “Orca do Sol” (como aparece, por crasso erro, nas legendas, por falta de memórias da guerra colonial da jovem que faz a tradução do crioulo para português (Joacine Katar Moreira)..
(v ) Outro dos entrevistados é o atual presidente do Sporting Clube de Bafatá, já acima referido, que fala, com ternura e candura, das glórias e misérias da vida da associação, incluindo a conquista do campeonato de futebol da Guiné-Bissau, em 1984 . Era então treinador o falecido Demba... E a histórica partida de futebol, disputada em Bissau, teve na assistência o general 'Nino' Vieira...
(vii) As irmãs Danif, libanesas, que vieram de Sonaco, quando pequenas... Um delas para casar. Penso que são as filhas da Dona Rosa… Um dos irmãos foi paraquedista do BCP 12, hoje ten cor ref e amigo de alguns camaradas nossos, como o Humberto Reis. Um destas manas Danif tem filhas em Portugal, que casaram com ex-militares portugueses… (Eran meninas casadoiras no nosso tempo; e casaram no clube, diz a mãe!)... Os pais das irmãs Danif, Said Danif, estiveram esatabelecidos em Sonaco, Bambadinca, Geba...
(viii) Não sei qual é a relação das manas Danif com a Dona Vitória, também libanesa, que tinha uma filha que morreu, já depois da independência, e depois de regressar de Portugal onde foi em tratamento. Havia, pelo menos, dois comerciantes libaneses, ligados ao Sporting Clube de Bafatá. Um eles era o irmão da Dona Vitória, Faraha Heneni, citado no filme por ela e pelo seu filho Toninho. Outro libanês era o Arif Elawar, que fazia parte da direcção do Sporting Clube de Bafatá (criado em 1937), quando o presidente era então o administrador Carlos Caetano Costa (que anteceu o Guerra Ribeiro).
(ix) O João Dinis… Um camarada do nosso tempo que ficou em Bafatá, veio casar a Portugal e levou a esposa, Célia, para a Guiné em 1972… É um homem, desencantado, precomente envelhecido, mas ainda a reconhecer que ama África e a terra que escolheu para viver e trabalhar. Quando jovem, vivia melhor em Bafatá do que em Portugal, costumava dizer ele para os seus antigos camaradas de armas... Mas hoje confessa que ainda sonha em acabar os seus dias na sua terra, Portugal…
(x) No filme, o João Dinis fala para a câmara, num verdadeiro monólogo, tentando explicar as razões por que se foi deixando ficar até hoje...O realizador e o diretor de fotografia não fazem perguntas nem fornecem informação de contextualização: Bafatá é atravessada por uma "câmara muda"; há momentos de antologia como a sequência da partida de futebol, disputada ao longe (no estádio da Rocha) sob um uma nuvem de pó que se poderia confundir com o cacimbo...); ou a cena em que Canjajá, vestido de preto e com ar de asceta, faz as suas orações virado para Meca, enquanto um grupo de mulheres, a um canto da casa, tagarelam e dão continuidade à vida; ou ainda a cena, bem conseguida, em que um voluntarioso entrevistado se transforma em proativo entrevistador, inquirindo em crioulo, de microfone em punho, a opinião dos seus conterrâneos sobre o futuro de Batafá... E tem um comentário final otimista: "Bafatá há-de mudar para melhor, se Deus quiser"
(xi) Outro dos entrevistados é o empregado da atual escola de condução, cujo nome não consegui fixar … Era filho de um comerciante (, português ?), foi para a escola de condução por volta de 1995... Deve ser a escola de condução mais "surrealista" do mundo, a avaliar pelo número de carros que circulam por aquelas bandas... A escola pertence também ao portuguiês João Dinis...
(xii) O filme podia ter mostrado a casa onde nasceu Amílcar Cabral (e os filhos da Dona Vitória!), mas não o fez… Vê-se o seu busto, em bronze, e um cartaz onde se lê “Cabral Ka Muri”… São as únicas referências ao “pai da Pátria”…
(xiii) Bafatá está hoje dividida em duas partes: a parte de cima (“Bairro do Rocha"), populosa, e a parte de baixo, vazia, o "bairro da Praça". onde alguns dos antigos edifícios coloniais que ainda se mantêm de pé foram ocupados pelo tribunal, as finanças, a conservatória, e uma delegação (?) do ministério do comércio… A baixa está vazia, o mercado está vazio, as lojas estão vazias, há muito que deixou de haver cinema, e os entrevistados vivem pateticamente das suas memórias do passado… À Dona Vitória vale-lhe a televisão que a liga ao mundo... Não há electricidade, algumas casas têm gerador...A população de cima só vem à baixa para tratar de algum assunto nas finanças ou no tribunal.. Até a paragem dos transportes públicos mudou-se, democraticamente, para a parte de cima, no "Bairro do Rocha" [ou "da" Rocha, pergunto eu ao Fernando Gouveia, que é o nosso especialista em Bafatá...].
(xiv) Referência ainda para o ourives de Bafatá, o Tcham [ouTchame], filho do célebre ourives de Bafatá do nosso tempo que fez a famosa espada para o gen Spínola, guarnecida a ouro e prata… Em paga ganhou uma viagem a Portugal, para ele e a esposa...
Guiné > Bafatá > 1979 > Foto nº 7:> "A família Marques da Silva em Bafatá, em 1979. O rapaz ao centro da foto era o Xico, filho de uma Balanta e do Marques da Silva, ambos já faleceram. Talvez alguns dos nossos camaradas desse tempo ainda se recordem deles."
Guiné > Bafatá > 1958/59 > Foto nº 242: > "Equipa de futebol do Sporting Clube de Bafatá"
Fotos enviadas pelo nosso camarada Leopoldo Correia (ex-fur mil da CART 564, Nhacra, Quinhamel, Binar, Teixeira Pinto, Encheia e Mansoa, 1963/65). Já tinham sido publicadas anteriormente (***). São agora reeditadas.
[Observação do LC:"Fotos de Bafatá, de 1959, tiradas por um familiar ligado ao comércio local (Casa Marques Silva), casado com uma senhora libanesa, filha do senhor Faraha Heneni",
4. Dito isto, acho que que vale a pena comprar o DVD (7 €): título "Bafatá Filme Clube"; realizador Silas Tiny; fotografia: Marta Pessoa; produção: Real Ficção (e Telecine Bissau); ano: 2012; duração: 78'.
Não sei se Canjajá e o seu cinema são uma "metáfora de Bafatá" e da própria Guiné.-Bissau (****).... Talvez sim, da Guiné-Bissau e da própria África pós-colonial... É seguramente uma metáfora das nossas ruínas, materiais e imateriais, as que ficaram do nosso império (*****)...
Mas o mérito do realizador e da equipa é terem ido para Bafatá, despidos de preconceitos etnocêntricos... E trata-se de cinema lusófono!... Por outro lado, o filme faz-me lembrar o "Nuovo Cinema Paradiso", do italiano Giuseppe Tornatore (1988)... Mas isso daria aso a outras reflexões sobre o cinema enquanto objeto de cinema que não cabem aqui neste blogue e nestes "manuscritos"... (LG)
(**) Último poste da série > 1 de janeiro de 2015 Guiné 63/74 - P14105: Manuscrito(s) (Luís Graça) (42): Requiem para um paisano... (à memória do meu infortunado camarada Luciano Severo de Almeida)
(***) Vd. poste de 16 de abril de 2013 > Guiné 63/74 - P11402: Memória dos lugares (229): Bafatá dos anos cinquenta (Leopoldo Correia)
(****) Vd. crítica de António Rodrigues > "O movimento é que faz falta" > Rede Angola > 12/12/2014
(...) Mas Canjanjá é apenas a metáfora de Bafatá, segunda cidade da Guiné-Bissau, berço de Amílcar Cabral, entreposto adormecido no centro do país, onde só o tempo e natureza se dão ao luxo de ter futuro. O demais – casas, gentes, ideias – entrega-se resignado à decadência urbana ou à evocação do outrora, quando o cinema era cinema, o Sporting de Bafatá luzia viçoso, o comércio tinha com quem comerciar, os pescadores pescavam e os barcos faziam fila para descarregar no porto fluvial.
Se o projeccionista se limita todos os dias a abrir as portas, vassourar o chão, alimentar fingido o projector, também quase todos os outros personagens fingem gestos habituados a outras décadas, quando havia gente na baixa da cidade que ao perder o mercado, perdeu quase todo o movimento que tinha e o desfiar das casas de comércio – herança do passado colonial – não é roteiro mas rememorar.
Nem sequer é nostalgia, somente o evocar do movimento. “O movimento é que faz falta”, diz a certa altura João Dinis, dono do restaurante e hotel onde nunca se vê ninguém mais do que os seus proprietários. “Se eu chegasse aqui e visse isto, não ficava nem uma hora”, garante, para explicar a razão por que todos partem. Antes já afirmara porque vão ficando aqueles que ficam: “Fomos nos habituando à decadência.” (...)
(*****) Vd, também poste de 17 de janeiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12595: Roteiro de Bafatá, a doce, tranquila e bela princesa do Geba (Fernando Gouveia) (15): O cinema local e a figura lendária do seu guardião, o Canjajá Mané... E, a propósito, relembre-se o documentário, já em DVD, "Bafatá Filme Clube", do realizador Silas Tiny, com fotografia de Marta Pessoa (Lisboa, Real Ficção, 2012, 78')
sexta-feira, 31 de dezembro de 2021
Guiné 61/74 - P22858: Homenagem da Tabanca Grande ao Jorge Cabral (1944-2021), ex-alf mil at art, cmd, Pel Caç Nat 63 (Bambadinca, Fá e Missira, mai 1969 / ago 1971) - Parte I: "Alfero Cabral", uma genial criação literária, um "alter ego" do autor, usado como arma de irrisão contra o absurdo da guerra (Luís Graça)
Lisboa > Belém > 10 de junho de 2009, Dia de Portugal > Encontro Nacional de Combatentes, em Belém, junto ao Forte de Bom Sucesso > Vacas de Carvalho à direita da foto, Jorge Cabral deliciosamente "cercado" pelas camaradas da Polícia do Exército (PE).
Lisboa > XXVI Encontro Nacional de Homenagem aos Combatentes do Ultramar > Belém > 10 de junho de 2019 > Jorge Cabral e Juvenal Amado
Montemor-O-Novo > Ameira > Hotel da Ameira > I Encontro Nacional da Tabanca Grande > 14 de Outubro de 2006 > Um momento de fraternidade, pensa (e sente) o Jorge Cabral, em primeiro plano, tendo à sua direita o nosso baladeiro de Bambadinca (1969/71), e hoje fadista amador, o Zé Luís Vacas de Carvalho, comandante do Pel Rec Daimler 2206.
De pé, afinando as gargantas ou cantando ao desafio, outras duas grandes aves canoras: o Fernando Calado e o Manuel Lema Santos, o exército e a marinha de braço dado... O fotógrafo que estava de serviço apanhou o flagrante, era o David Guimarães, radiante, felicíssimo...
Agora que o Jorge Cabral partiu na "barca de Caronte" (**), este livro vamos guardá-lo com enorme saudade e relê-lo, talvez com outros olhos.
O prefácio que lhe escrevi ( "o charne discreto da humanidade ou a arma da irrisão contra o absurdo da guerra") (*) , continua atualíssimo e estou só a revê-lo aqui e ali.
“Cabral só há um, o de Missirá, e mais nenhum” continuará a ser o subtítulo, não explíicito deste livro, algo de saudavelmente provocador, mesmo que que não seja imediatamente percetível, para o leitor de hoje, a referência ao antropónimo Cabral e ao topónimo Missirá…
Missirá ficava na “portuguesíssima província” da Guiné, “muito longe do Vietname”, hoje República da Guiné-Bissau, país independente, de língua oficial portuguesa. E Cabral não era o Amílcar, o senhor engenheiro, de origemcabo-verdiano, mas nascido na Guiné, e líder de um movimento nacionalista que combatia os “tugas”, e considerado hoje o fundador do novo país lusófono que se chama Guiné-Bissau, mas o “alfero Cabral”, um personagem literário criado como um “alter ego” por Jorge Cabral…
Tal como muitos jovens da sua geração, o autor foi chamado para a tropa, ainda antes de acabar o seu curso de direito, e fez o caminho do calvário de muitos outros portugueses, milicianos ou do recrutamento geral (, sem esquecer os militares do quadro), acabando mobilizado para a então “guerra do ultramar”. (Estamos a falar do tempo em que o serviço militar era obrigatório e havia, desde 1961, uma guerra em três frentes, a milhares de quilómetros de casa.)
Alferes miliciano, “atirador de artilharia”, com passagem por Mafra e Vendas Novas, tinha nascido numa família de militares (, segundo creio), sob uma frondosa árvore genealógica que já dera à Pátria “muitos Cabrais e que tais” (, ironizava ele).
Não desertou como outros “meninos das Avenidas Novas”: foi comandar o Pelotão de Caçadores Nativos, nº 63, dividindo a sua comissão, entre 1969 e 1971, em dois destacamentos, Fá Mandinga e Missirá, no Leste da Guiné, região de Bafatá, Sector L1, Bambadinca. Foi, pois, meu vizinho e contemporâneo, e inclusive fizemos operações juntos.
No regresso à Pátria, foi advogado e docente universitário E, nomeadamente, dedicou uma vida à formação de técnicos superiores de serviço social, uma profissão largamente feminina (, ainda hoje).
E continuou a ser do “contra” mas… “sempre discreto”. Um dia, em dezembro de 2005, apresentou-se à Tabanca Grande, à “tertúlia” criada à volta do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, nestes termos singelos, muito reveladores da sua maneira de ser, estar e escrever:
“Através do blogue, recordo. E sinto. Vejo os rostos dos camaradas, oiço os sorrisos das crianças, e até, calcula, consigo admirar de novo os belos seios das bajudas. Peço permissão para pertencer à Tertúlia, oferecendo o ‘pícaro’ de alguns episódios que vivi.”Foi o início da série “Estórias cabralianas”, seguramente uma das mais populares que tivemos o privilégio de publicar no blogue, e que foi muito bem acolhida pela crítica literária de então… Cite-se, por exemplo, o nosso saudoso Torcato Mendonça (1944-2021):
“Só tu, meu caro Jorge, me embacias os óculos com o cloreto de sódio que me saíram dos olhos e molharam os ditos”…
E, de facto, ninguém melhor do que o “alfero Cabral” para nos fazer (sor)rir, ao descrever, em traço grosso, numa frase, numa linha, num parágrafo, numa legenda, uma situação-limite, uma fantasmagórica personagem de carne e osso, um hilariante ambiente de caserna, um garboso chefe militar da “tropa-macaca”, um episódio grotesco mas sempre humaníssimo da nossa (co) vivência na guerra, enfim, uma cena rocambolesca, pícara, brejeira, relativamente à nossa passagem pela Guiné “em defesa da soberania portuguesa”.
Eu, que fui seu contemporâneo e camarada de armas, passei depois a ser fã das suas “short stories”, os seus micro-contos, as “estórias cabralianas”, para mais sabendo que ninguém podia invejar o lugar de comandante deste tipo de destacamentos, isolados, na “linha de fronteira da guerra”, na terra de ninguém, guarnecido por pelotões de caçadores nativos, mais uns tantos “milícias” locais, com a família às costas, os cães e os tarecos, e mais meia dúzia de graduados e especialistas de origem metropolitano, à beira do abismo, esquecidos e abandonados...
Intrinsecamente do “contra” e “antimilitarista” (ou não tivesse sido ele também um “menino da Luz”, uma "rata" do Colégio Militar do ano de 1955), o criador das “estórias cabralianas” não tem qualquer propósito panfletário de denunciar a “guerra colonial”, pôr em causa a gloriosa tradição da “honra & glória” dos nossos africanistas, ou sequer de “ofender a instituição militar”, tão apenas o de manifestar a saudável loucura, própria dos seres humanos que são “condenados” ou “postos à prova” em situações-limite, face à morte, o sofrimento, as privações, o absurdo, o “non-sense”, a irrisão de uma guerra de fim de império... E aquela guerra, naquele espaço e tempo, tinha tudo isso.
Mas as “estórias cabralianas” são, também, um hino à idiossincrasia (lusitana e africana), à plasticidade comportamental dos nossos soldados, à enorme capacidade de resistência, de resiliência, de imaginação e de adaptação da nossa gente...
O Jorge Cabral que, quanto estudante universitário, leu o Ionesco e conhecia o teatro do absurdo, não coloca o seu “alter ego” na situação, confortável, do marionetista... Ele faz parte, de alma e coração, da peça, dos adereços, do cenário, do texto e do contexto… Ele expõe-se, como ninguém
Devo dizer que Jorge Cabral foi o mais “paisano” dos militares que eu conheci na Guiné. Em Fá Mandinga e depois em Missirá, e sempre que ia a Bambadinca, não se limitava a ser um heterodoxo “tuga”, representante da tropa, oficial miliciano, ator e crítico ao mesmo tempo. Era também homem grande, pai, patrão, régulo, chefe de tabanca, conselheiro, psicólogo, ‘amigo do turra’, poeta, socioantropólogo, feiticeiro, ‘cherno’ (catequista), ‘mauro’ (padre), ‘médico (com a difícil especialidade de ‘obstetra e ginecologista’, “consertador de catotas”), sexólogo, advogado e não sei que mais.
À força de ser propalada e levada pelo vento, de bolanha em bolanha, a histórica e temível frase “Cabral só há um, o de Missirá e mais nenhum” terá tido um efeito “contrassubversivo” e até “perturbador” nas “hostes do PAIGC”… Ao reivindicar ser ele "o único e legítimo Cabral", punha em xeque, o outro, o de Conacri, o "usurpador", que defendia os seus pergaminhos de Kalashnikov na mão…
Chegou por certo aos ouvidos do temível Corca Só, o chefe da 'barraca' de Madina / Belel, a sul do Morés, a tal ponto que no tempo do "alfero Cabral” não mais voltou a meter-se com a malta de Missirá…
Em Missirá, um destacamento mais exposto às morteiradas, canhoadas e roquetadas do IN (abreviatura de inimigo) do que Fá Mandinga, contava-se que o "alfero Cabral”, mais do que temido, passara a ser "respeitado" (e quiçá "venerado") pelos “camaradas do PAIGC”, desde o famoso dia em que foi atrás deles, na bolanha, a apaziguá-los e a tranquilizá-los: “Vocês não fujam, não tenham medo!!!... Sou o Cabral!!!”...
Eis, pois, um verdadeiro Lawrence, não das Arábias, mas do Cuor, das terras do Cuor, na Guiné!... Alguns dos seus amigos e companheiros de Bambadinca (aonde ele ia com frequência matar a sede) chegaram a recear que ele ficasse completamente ‘cafrealizado’ ou ‘apanhado do clima’.
O “alfero Cabral”, sua genial criação literária, nunca acentua o lado do “bestiário da guerra” que há no Homo Sapiens Sapiens, mas sim o da sua humaníssima, frágil, quase tocante, condição de primata, de primus inter pares na ordem zoológica do mundo... O único animal que, afinal, consegue esta dupla proeza: (i) ser capaz de rir-se de si próprio; e (ii) e mostrar, pelo outro, compaixão (no seu sentido etimológico cum + passio: sofrimento comum, comunidade de sentimentos, partilha da dor… e prazer).
O seu sentido de humor é muito próprio: nu, de tanga (uma toalha à volta cintura), e de G3 às costas, é uma figura impagável, que nos acompanha, de princípio ao fim, fazendo destas “short stories” pérolas literárias, que só podiam ser fruto de um espírito aberto, fraterno, pacifista, sadio, maroto, provocador, lúcido, irreverente, desconcertante, descomplexado.
A par da imensa tragédia que provocou (com perdas e danos, materiais e simbólicos, irreparáveis), a guerra da Guiné foi também palco (hilariante) de muitas peças do Teatro do Absurdo (envolvendo as NT, o IN, os nossos oficiais superiores, o “Caco Baldé”, os nossos camaradas, de diferentes cores e feitios, a população local e, claro, as "bajudas")...
Por outro lado, Jorge Cabral é um dos poucos que tem o engenho e a arte de nos conseguir falar (e, sobretudo, enternecer e comover), com um subtil toque de humor, de maneira descomplexada, das nossas relações com as mulheres locais, sem nunca cair na “ordinarice de caserna”…
Veja-se, por exemplo, essa fabulosa estória, da primeira vez que veio passar férias à Metrópole, em janeiro de 1970, a compra, num grande armazém de Lisboa (, takvez o Grandela), de trinta e oito sutiães de todos os tamanhos e cores, e que ele levou consigo, na bagagem, de regresso a Fá Mandinga, para oferecer às suas queridas bajudas. Mas não se pense, malevolamente, que ele tinha um harém: simplesmente organizou “a festa do corpinho, para a alegria das bajudas, que envergaram o seu primeiro sutiã”…
À laia de conclusão e incentivo para a leitura, acrescentarei este excerto de uma mensagem que em tempos lhe dirigi e que não perdeu nem acuidade nem atualidade, depois agora que ele partiu na barca de Caronte:
“Só tu, meu querido Jorge, consegues pôr a malta e o resto a tropa a fazer... o pino!...Tu és a subversão total, o iconoclasta, o bombista-suicida, o terrorista intelectual, o humorista-mor e outras figuras que tais, que em muito contribuíram para o fim do nosso longo, vasto e glorioso Império...
O teu humor é(era) subversivo, corrosivo, demolidor... Depois de te ler, um homem, um ‘tuga’, já não é mais o mesmo... Tu devias ir a tribunal militar, porque tu tiras a ‘tusa’... a qualquer combatente... Depois de te ler, quem é o combatente (até mesmo o de Alá!) que se sentirá com ‘tomates’ para ir combater na guerra, nas próximas ‘guerras santas’ que se avizinham?!”...
Luís Graça, editor do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (*)
[Na altura, em outubro de 2020, o Jorge Cabral manifestou-me o seu agrado e apreço pelo prefácio que lhe escrevi, mas, modesto como era, disse-me que não merecia tantos... adjetivos!]
Escreveu o seu filho, Pedro Almeida Cabral, em 28 do corrente, na sua página do Facebook:
Jorge Almeida Cabral, 1944-2021. Jorge Almeida Cabral
O meu querido e adorado pai faleceu hoje de manhã, em paz e ao meu lado, vítima de um cancro de pulmão raro e agressivo. Como sei que muitos o admiravam, deixarei, quando souber, os detalhes das cerimónias fúnebres.
Esta fotografia, de que gosto particularmente, é dele em Moscovo, no verão de 2019, a jantar comigo num restaurante da moda. Está com a típica expressão a dizer que eu sou maluco (uma das suas frases preferidas), acompanhado do seu inseparável cachimbo.
Notas do editor:
(*) Adapt. do prefácio de Luís Graça ao livro de Jorge Cabral, "Estórias Cabralianas", vol I. Lisboa: Ed José Almendra, 2020, 144 pp(**) Vd. postes de
28 de dezembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22852: In Memoriam (421): Jorge Pedro de Almeida Cabral (Lisboa, 1944- Cascais, 2021), ex-al mil at art, cmd Pel Caç Nat 63 (Fá e Missirá, 1969/71), advogado, professor de direito penal no Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa, nosso colaborador permanente e autor da impagável série "Estórias cabralianas" (de que se publicaram cerca de uma centena de postes)