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sexta-feira, 10 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24134: As nossas geografias emocionais (1): Bafatá - Parte I: Fotos de Humberto Reis (ex-fur mil op esp, CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, 1969/71): viagem de 1966


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > 1996 > Ponte sobre o rio Geba na estrada Bafatá-Geba.


Guiné-Bissau > Bafatá > 1996: Em primeiro plano, a piscina local, aberta a civis e militares, no tempo da guerra... Tinha o nome "Piscina Guerra Ribeiro", tendo mudado depois da independência (Não se consegue ler muito bem o  nome que lhe foi dada posteriormente, talvez em 19882, mas tudo indica, amplaindo a imagem,  que seja  "Corca Só", um comandante do PAIGC e antigo futebolista de Mansoa, que atuou, no setor de Bafatá / Zona leste durante a guerra colonial, e na região do Oio; terá morrido em combate em 8out1972.)


Guiné-Bissau > Bafatá > 1996: Em primeiro plano, a piscina de Bafatá (ex-piscina Guerra Ribeiro, que foi administrador da circunscrição /concelho de Bafatá, nos anos 60, e era natural de Bragança; no tempo de Spínola, era já intendente; a piscina, dizia-se, tinha sido construída pelos militares de uma unidade aqui estacionada).

Do lado esquerdo, em segundo plano, a Casa Gouveia, que pertencia ao grupo CUF e que, no nosso tempo, era o principal bazar da cidade, tendo florescido com o patacão (dinheiro) da tropa e da guerra e do negócio da "mancarra". Vê-se, ao fundo, a estrada que conduz à saída para Nova Lamego (Gabu) e Bambadinca. Do lado direito pode observar-se as traseiras do mercado.


Guiné-Bissau > Bafatá > 1996 > O antigo restaurante "A Transmontana".... Desta vez o Reis teve azar: a velha "Transmonanta" onde muitas vezes matámos a malvada, estava fechada, as janelas já entaipadas com tijolos...


Guiné-Bissau > Bafatá > 1996: "À porta do célebre café das Libanesas, filhas da D. Rosa. Sou amigo pessoal do filho, ex-ten cor  paraquedista, que mora cá, em Portugal, em Linda A Velha, e também amigo de infância de um dos genros dela que mora aqui em Lisboa, e com o qual, por acaso, já tenho tido relações profissionais".... [Sabemos que o nosso antigo camarada de armas, Danif, ex-alf mil, BCP 12, 1972/74, voltou à sua terra natal, onde se estabeleceu como empresário (LG)]


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Capé > 1996: "Clube de Caça do Capé, próximo de Bafatá, vendo-se em primeiro plano a piscina, que tinha um tratamento de águas impecável, como qualquer bom hotel. Em segundo plano a Palhota grande comportava a Recepção, Sala de Estar e Sala de Jantar. As pessoas que lá estavam hospedadas eram um grupo de 8 portugueses que tinham ido no mesmo avião que eu, para fazer lá uma semana de caça".

Fotos gentilmente cedidas pelo engenheiro técnico Humberto Reis, um dos históricos do nosso blogue, nosso colaborador permanente,  "cartógrafo-mor",  ex-fur mil op esp,  CAÇ 12, unidade de intervenção ao serviço do Sector L1 / Zona Leste, com sede em Bambadinca (1969/71). Voltou à Guiné-Bissau, em viagens de negócios e turismo de saudade em março de 1996.

Fotos (e legendas): © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.]

1. Esta série é dedicada à(s) "Memória(s) dos lugares"... Logo no princípio do nosso blogue, tínhamos, na badana (ou coluna estática) do lado esquerdo uma listagem (com links)  de lugares por onde passámos, documentados com fotografias e infografias... Ia já em 24 topónimos, mas faltavam muitos mais...

Bafatá (Região de Bafatá)
Bambadinca (Região de Bafatá)
Banjara / Cantacunda (Região de Bafatá)
Barro (Região do Cacheu)
Bigene (Região do Cacheu)
Binta (Região do Cacheu)
Bissau (Região Autónoma de Bissau)
Bissorã (Região do Oio)
Brá (Comandos) (Região Autónoma de Bissau)
Buba, Chamarra, Mampatá (Região de Quínara)
Cansissé (Região de Gabu)
Como (Ilha do) (Região de Quínara)
Empada (Região de Quínara)
Fá Mandinga (Região de Bafatá)
Geba (Região de Bafatá)
Guidaje (Região de Cacheu)
Guileje (Região de Tombali)
Mansambo (Região de Bafatá)
Missirá, Cuor (região de Bafatá)
Nova Lamego (Região de Gabu)
Quebo (Aldeia Formosa) (Região de Tomboli)
Saltinho (Região de Bafatá)
Xime (Região de Bafatá)
Xitole (Região de Bafatá)
 

2. As imagens estavam alojadas na minha página pessoal, Saúde e Trabalho - Luís Graça, no servidor da ENSP/NOVA. Foi descontinuada, em 2022, com o redesenho da página oficial da instituição.  Estou agora a recuperá-la através das capturas feitas pelo Arquivo.pt, bem como dos ficheiros originais. É uma tarefa morosa e ingrata...

E vou aproveitar para refrescar e atualizar os nossos álbuns fotográficos, por topónimos da Guiné (se não todos, pelo menos os principais). Afinal, trata-se de não perder as nossas "geografias emocionais". Muitas das fotos que vamos publicando estão dispersas. São de diferentes autores e anos... É agora a altura de as tentar reunir. 

Vamos começar por Bafatá, um topónimo que tem nada menos que 390 referências no nosso blogue. Ir à procura de fotos nestes 390 postes é obra...Vamos fazer uma seleção por amostragem, tendo também em conta a qualidade das imagens...  Ou vamos publicando fotos por autores e anos... 

Bafatá deve ter sido das localidades mais fotografadas da Guiné do "nosso tempo", a par de Bissau... Eram, aliás, as duas únicas cidades existentes. Humberto Reis foi um dos grandes fotógrafos de Bafatá. Tem as melhores fotos áreas da região... Outro foi o Fernando Gouveia, que lá viveu dois anos, entre 1968 e 1970, casado com a Regina Gouveia,  e lá voltou em viagem de saudade há uns largos anos atrás... É o nosso melhor cicerone da cidade, infelizmente há muito em decadência... Em 2009 também foi visitada (e fotografada)  por João Graça... O Patrício Ribeiro também poisa por lá, nas suas andanças pelo país, em trabalho... Temos outros amigos e camaradas cujos álbuns também  nos  merecem uma visita ou revisita: Jaime Machado, Manuel Mata, Arlindo T. Roda,  David Guimarães,  Virgílio Teixeira, etc. (cito de cor). Para já  ficamos com o  Humberto Reis... E esperemos que estas memórias, sob  a forma fotográfica, depertem outras memórias e nos tragam, ao blogue, novos amigos e camaradas da Guiné.

domingo, 23 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23732: (Ex)citações (417): A propósito de Amadu Bailo Djaló (1940-2015): mestiçagem, mercenariato, fanado, hospitalidade africana, viagem a Boké... (Cherno Baldé)

1. Comentários do Chermo Baldé, nosso colaborador permanente, assessor para as questões etnolinguísticas, e que vive em Bissau, ao poste P23723  (*):

(i) O Amadú Djaló se identifica e se assume como Fula (Futa-Fula), na realidade é um mestiço, fruto do casamento de um Fula de apelido Djaló com uma mulher Maninka de apelido Condé/Kondé (ramo mandinga da região da alta Guiné, "haute Guinée"), mas espalhados um pouco por outras regiões da Guinée, sobretudo pela baixa Guinée na região de Boké e também pelo Sul da Guiné-Bissau. 

Na verdade, quase todos os Fulas (Futa-Fulas),  originários da Guinée-Conakry, são mestiços e com grandes capacidades de integração noutras esferas culturais, o que faz deles, historicamente, excelentes servidores do que se pode classificar como mercenariato militar na região da Senegâmbia. 

Assim, formavam a grande maioria da temida elite guerreira e de cavalaria do Abdul Indjai com o Cão. Teixeira Pinto que devastou o Centro e o Norte do país entre 1912/1915, serviram como Polícias e Sipaios da administração colonial e em alguns casos conseguiram até a nomeação para cargos régios e, salvo raríssimas excepções, todos os Fulas que se distinguiram nas fileiras da luta da libertação com o PAIGC, saíram deste grupo com origens na Guiné-Conakry (Corca Só, Umaro Djaló, Abdulai Barry, Mamadu Alfa Djaló, entre outros).

A explicação para esse facto não é tão simples, mas dever-se-á, fundamentalmente, pela liberdade de acção que detinham, por não estarem muito ligados e dependentes das autoridades tradicionais por onde passam, pela desenvoltura de não serem nem tipicamente camponeses nem criadores de gado, pela facilidade de integração e liberdade de movimento e por um especial gosto das aventuras de alto risco como o serviço militar e/ou paramilitar que lhes restava como opção nos seus percursos de aventura humana, para além do comércio ambulante que era a sua profissão por excelência.

Como diz o Luís Graça, a quase (des)ventura do Amadú por terras de Boké é de natureza a desmentir o alardiado mito da hospitalidade e solidariedade africanas. Mas, em tudo há excepções, e o Amadu Djaló, por ignorância e falta de experiência deixou-se cair numa cilada de desconfiança pela sua presença repentina num meio hostil e de gente, certamente, traumatizada por situações passadas. No mato e em situações idênticas só escapam da natural desconfiança certas personalidades como os Mouros (Marabus), os Djidius (músicos tradicionais) ou Djilas (vendedores ambulantes). Não esquecer que, ingenuamente, ele foi transportado por um branco, provavelmente, não identificado, logo potencialmente suspeito.

Quanto ao nome de "Mari Velo", se a minha compreensão estiver certa deve significar "O homem da bicicleta",  traduzido da língua fula. "Mari" é a conjugação na terceira pessoa do verbo ter e "Velo" é bicleta ou velocípede cooptado da língua francesa, pois que, mesmo vivendo na Guiné dita portuguesa, os originários da Guinée, continuam sob a influência da língua francesa que, aos olhos dos nativos, determina um certo estatuto social de classe, de conhecimento e, logo, de prestígio. Mas, a palavra "Mari" também pode significar "Marido" que é fula, mas também, pode ser uma cooptação da língua francesa.

O longo percurso de 9 dias de Bafatá a Boké, deveu-se certamente, ao facto de que era uma viagem de negócio e o percurso não foi o mais curto possível, pois devem ter seguido a via de Gabu-Fulamori para entrar no território vizinho e seguir até perto de Conakry, descendo depois a Bofa e por fim ao Boké. Se tivessem seguido pela via do Sul através do Forèa (Contabane) o trajecto seria em menos de 3 dias de marcha.

Com um abraço amigo,
Cherno Baldé
22 de outubro de 2022 às 13:46 



Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015)

(ii) A mestiçagem entre grupos etnico-culturais é um fenómeno antigo e de longa duração na África Ocidental. Os grandes grupos (mandinga e fula) cresceram numericamente graças a sua capacidade de integração social, de dominação e de transformação pela assimilação cultural de outras áreas geográficas, povos e culturas, processo iniciado desde o século XII/XIII.

Com o início do processo da colonização por forças externas, também apareceu a necessidade do aprofundamento das divisões étnicas, através de contradições, às vezes, artificiais,  de forma a enfraquecer os africanos e perpetuar a dominação.

Sobre o fanado, descrito por Amadú Djaló, posso dizer que é uma experiência única e indescritível. Foi o meu primeiro trauma psicológico e sócio-cultural de que nunca me recuperei completamente. Após o corte cirúrgico, ficamos entregues a bicharada, sem assistência nem qualquer tratamento, a melhor solução que encontramos, a partir da primeira semana, foi enterrar o sexo dorido e inflamado nas areias quentes das estradas a fim de desenfectar, tratamento que era repetido todos os dias quando o sol se encontrava no zénite.

Num dia que nos trouxeram mais perto da aldeia, e ao ouvir a voz da minha irmã mais nova no exterior da barraca, as lágrimas escaparam-se dos meus olhos por causa das saudades e por um triz não desatei aos berros, pois fora a primeira vez que fizera mais de um mês longe da família e nas mãos de desconhecidos que tudo faziam para nos frustar em nome da educação. 

Fazia parte da preparação dos mais novos para a vida futura. Na altura tivemos a visita do enfermeiro auxiliar da companhia estacionada em Fajonquito (em 1970, penso que seria a CCAÇ 2435 comandada pelo Cap Carvalho, pouco antes de ser substituída). Mas a utilização do mercúrio preto numa ferida fresca e numa parte tão sensível do corpo ainda piorou a nossa precária e débil situação. Não se esquece. (**)

Abraços,
Cherno AB 
22 de outubro de 2022 às 20:56

terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22938: "Alfero Cabral ca mori": Lista, por ordem numérica e cronológica, das 94 "estórias cabralianas" publicadas (2006-2017) - Parte III: de 40 a 59

 


Uma caneca que ainda vai fazer furor entre as bajudas da Guiné-Bissau, na próxima incarnação do "alfero Cabral": "Kiss me, I'm an Alfero" [Beija-me, sou um Alfero]... Imagem que ilustrou a "estória" nº 56, acompanhada da seguinte legenda: "Quando eu voltar à Guiné, em vez dos 'corpinhos' 
[, sutiãs]... , vou oferecer às Bajudas, estas belas canecas"...


Foto (e legenda): © Jorge Cabral (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Lista das estórias cabralianas, por ordem numérica e cronológica - Parte III: De 40 a 59 (*):

São "estórias"publicadas no nosso blogue, entre novembro de 2008 e maio de 2010. 

Jorge Cabral (1944-2021), ex-alf mil at art, cmdt do Pel Caç Nat 63 (Fá Mndinga e Missirá, 1969/71), era muito querido e popular entre a malta da Tabanca Grande: basta referir, por  exemplo, que o seu poste de parabéns,  do dia 6/11/2009 (P5221) teve 1531 visualizações e 30 comentários.

E a propósito, da "estória" nº 56 (Cum caneco, alfero apanhado à unha!), escreveu na altura o nosso editor LG o seguinte:

(...) "A cabraliana, a estória cabraliana, é já um género literário, reconhecido e estudado na Universidade. Daqui uns anos alguém fará douramentos sobre este material altamente revelador da dissonância cognitiva e falta de alinhamento dos bandos que, na Guiné, por detrás do arame farpado, defendiam a honra da Pátria (Bruno dixit)...

Como se pode deduzir da leitura de mais esta cabraliana, o boato (desmoralizante) tinha um efeito dissolvente no moral das nossos tropas, como um dia opinou um PIDE/DGS à minha frente, no Café do Teófilo, em Bafatá. Como é possível imaginar o nosso Cabral, o único, o verdadeiro (porque o outro era um renegado...), apanhado à unha e depois em altos conciliábulos e quiçá orgias com o Corca Só e a sua corja de Madina/Belel ?!...

Ainda bem que o Cabral tem, por fim, a oportunidade histórica e soberana de, aqui, no blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, lavar a sua honra e reafirmar o seu impoluto patriotismo. A guerra da Guiné foi demasiado real para a gente sequer poder ficcioná-la ou fazer humor negro, com ela, com os seus heróis e com as suas vítimas.(...)



(...) Claro que lembro do Tosco! Havia pretas, mulatas e até uma chinesa. Todas, mais os copos, trataram-me da saúde. Entrava sempre a coxear, por via dos descontos… Mas o meu preferido era o Bolero, onde jantava no primeiro andar, antes do Tango em baixo, tocado a rigor por uma orquestra de cegos. Ainda lá fui após o 25 de Abril. A mesma orquestra, as mesmas putas, mas a música mudara – Todos em coro cantávamos a Internacional (...).

13 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3446: Estórias cabralianas (41): O palácio do prazer, no Pilão (Jorge Cabral)

(...) De Bissau conheci muito pouco. Apenas o Pilão, e neste Os Dez Quartos, um palácio do Prazer. Era o local ideal para um sexólogo, pois tendo todos os quartos o mesmo tecto e paredes incompletas, ouviam-se os murmúrios, os gritos, os ais e os uis, deles e delas, em plena actividade. Sempre que lá fui, abstraí-me um pouco da minha função e dediquei-me à escuta, tentando até catalogar os clientes por posto, ramo, forma, jeito, velocidade e desempenho (...)

26 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3519: Estórias cabralianas (42): As noites do Alfero em Missirá e uma estranhíssima ementa (Jorge Cabral)

(...) Eram calmas as noites do Alfero? Deviam ser, pois assim que pôs os pés em Missirá, cessou imediatamente a actividade operacional dos seus vizinhos de Madina. Chegou-se a pensar que o Comandante Corca Só entrara em greve, mas no Batalhão acreditava-se num oculto mérito do Cabral. Aliás, estando ainda em Fá e esperando-se um ataque a Finete, o Magalhães Filipe para aí o mandou, sozinho, reforçar o Pelotão de Milícias. Lá passou oito dias, dormindo na varanda do Bacari Soncó, que o alimentou a ovos cozidos (...).

6 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3572: Estórias cabralianas (43): O super-periquito e as vacas sagradas (Jorge Cabral)

(...) Cumbá, a terceira mulher do Maunde, ainda uma menina, sentiu as dores de parto, ao princípio da noite. Às duas da manhã sou lá chamado. Está muito mal e as velhas não sabem o que fazer. Eu também não. Vamos para Bambadinca. Chegamos, mas Cumbá morre e com ela a criança não nascida. Amparo o Maunde, que chora e grita:-Duas vacas, Alfero, duas vacas! (...)

27 de Janeiro de 2009 >Guiné 63/74 - P3808: Estórias cabralianas (44): O amoroso bando das quatro não deixou só saudades... (Jorge Cabral)

(...) O Amoroso Bando das Quatro deixou-nos muitas saudades. Mas que noite agradável ... até sonhámos com elas. Só que ainda nem três dias haviam passado, já recebíamos tratamento à fortíssima infecção que nos atingira o dito e adjacências. Graças à Penicilina, o caso seria em breve esquecido, pois afinal tinham sido apenas ossos do ofício, os quais segundo alguns até mereceram a pena... Porém, e estranhamente, os sintomas começaram a surgir nos africanos, soldados e milícias, os quais não tinham usufruído da benesse (...).

2 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P3963: Estórias cabralianas (45): Massacres e violações (Jorge Cabral)

(...) Corria o ano de 1968, quando prestes a concluir o Curso, não resisti ao convite do Estado – Férias pagas em África, com grande animação e desportos radicais. Primeiro o estágio-praia para os lados da Ericeira, findo o qual, tive um grande desgosto. Tinham-me destinado ao turismo intelectual – secretariado. Felizmente as cunhas funcionaram e consegui ser reclassificado em atirador, tendo passado a frequentar no Alentejo, o estágio-campo. Terminado este, ainda vivi muitos meses de tristeza e inveja ao ver os meus camaradas integrarem satisfeitos numerosas excursões, as quais iam embarcando (...).


31 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4114: Estórias cabralianas (46): Inspecção Militar: E todos os tinham no sítio... (Jorge Cabral)

(...) Pois, também eu naquela manhã de Junho me dirigi à Avenida de Berna, ao Quartel do Trem Auto, onde hoje funciona a [Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da] Universidade Nova [de Lisboa].Éramos mais de cem, altos e baixos, loiros e morenos, alguns mancos, pitosgas muitos, um quase corcunda, três gagos e dois tontos. Mandaram-nos despir e pôr em fila, numa literal e verdadeira bicha de pirilau. (...)



(...) Calma, simpática, acolhedora, a Vila de Vendas Novas. Bom vinho, petiscos, raparigas bonitas. Que mais podia aspirar o Aspirante? No Quartel fazia tudo, isto é, nada. Acumulara cargos, Justiça, Acção Psicológica, Revista, Cinema e ainda os discursos da Peluda.Cumpria gostosamente um peculiar horário. Após o toque de alvorada, às vezes de ressaca, de cara por lavar e barba por fazer, corria para a Formatura Geral, onde... passava revista ao Pelotão. Meia hora depois, abancava no Bar e tomava um lauto pequeno almoço, antes de regressar à cama. (...)


8 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4155: Estórias cabralianas (48): A Bandolândia ou uma aula de história em... 2092 (Jorge Cabral)

(...) O Cidadão – Aluno XI7 frequenta a décima semana do Curso Unificado – Primário, Secundário, Universitário, o qual segundo as normas da Declaração de Cacilhas, lher irá conferir o Diploma da Sabedoria.Claro que, quando entrou na escola, já dominava muitas das matérias que antigamente demoravam anos a aprender, pois logo em criança lhe implantaram um chip com todos os conhecimentos básicos. Porém XI7, hoje chegou à aula cheio de dúvidas. É que encontrou uma fotografia do seu trisavô, vestido com uma farda e empunhando um instrumento, talvez uma arma.(...)

12 de Maio de 2009> Guiné 63/74 - P4326: Estórias cabralianas (49): Cariño mio... Muy cerca de ti, el ultimo subteniente romántico (Jorge Cabral)

(...) Dois dias depois de chegado a Bambadinca em meados de Junho de 69, fui mandado montar segurança no Mato Cão. Periquitíssimo, cumpri todas as regras, vigiando a mata de costas para o rio, sem sequer reparar na beleza da paisagem.Mal sabia então, que ali havia de voltar dezenas de vezes, durante o ano que passei em Missirá. Pelo menos uma ida por semana para ver passar o Barco, no que se transformou numa quase agradável rotina.(...)


(...) - Meu Alferes! Meu Alferes! Já chegou o Senhor Abade! - O cozinheiro Teixeirinha, todo eufórico, gritava, à porta do meu abrigo.- Abade - pensei comigo - , o Puím?Magro, simples, humilde, o único Capelão que conheci na Guiné, viera de sintex e, antecipando-se, não esperara por ninguém, entrando no Quartel. Logo após o descanso, a missa foi celebrada, mesmo ao lado da Cantina, no local da Escola. Fiéis, sete, dois comungantes e o Padre, de paramentos verdes. (...)


(...) Tanto nas Tabancas Fulas como nas Mandingas, o Alfero actuava à vontade com as Bajudas, perante a complacência dos Homens e Mulheres Grandes… Aliás não ia além de um acariciar voluptuoso, acompanhado com promessas de encontros no Quartel. Na altura teria merecido o cognome de Apalpador. (...) Em Novembro de 1969, visitou uma Tabanca Balanta, Bissaque [, a norte de Fá, ], e ficou deslumbrado com a beleza das Bajudas, designadamente peitoral…

22 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4723: Estórias cabralianas (52): Em 20 de Julho de 1969, também eu poisei na Lua... (Jorge Cabral)

(...) Na Guiné, há mês e meio, mas já em Fá, havia nessa tarde muito calor. O pessoal dormia e toda a gente procurara a aragem possível. Em silêncio, o Quartel repousava… Eu porém, em tronco nu, saíra, a caminho da fonte mais pequena. Resolvera isolar-me, para escrever, calculem, um poema… Lá chegado, ainda nem escolhera um poiso confortável, quando vejo surgir, não sei de onde, um vulto de mulher, apenas com uns panos, caindo da cintura. (...)

28 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4750: Estórias cabralianas (53): A estranha doença do soldado Duá (Jorge Cabral)

(...) Quando uma noite, em Missirá [, o último destacamento de Bambadinca, a norte do Rio Geba, no Cuor,] o Alfero passava ronda, ficou estupefacto, ao constatar que todos os Soldados de Sentinela se encontravam acompanhados das respectivas Mulheres.- Mas que se passa? – indagou…- É por causa da doença! O Duá apanhou a doença do Victor!- Doença do Victor? (...)

(...) Nem um mês tinha de Guiné e já andava a experimentar todas as mezinhas recomendadas pelo Nanque . Bem, todas não. Nunca bebeu a primeira urina da manhã, remédio infalível para o estômago mas ainda no outro dia o receitou a uma distinta senhora, que calculem, se zangou com ele, por se pensar gozada. Tomou porém todas as demais, desde afrodisíacos a um chá para a tristeza, que o deixou eufórico durante quase toda a comissão… Apesar de tantos tratamentos, a verdade é que o Alfero gozava de excelente saúde. (...)

17 de Outubro de 2009 >Guiné 63/74 - P5117: Estórias cabralianas (55): Marqueses e murquesas ou... Peludas e Peluda... (Jorge Cabral)

(...) Há mais de 30 anos, que montei Escritório [de advogado] na Passos Manuel, entre o Jardim Constantino e o Intendente. Um bom local, com velhos da sueca, sem-abrigo alcoolizados e fanadas matronas em pré-reforma. Eu gosto. Aqui na Rua, já quase todas as lojas mudaram de ramo. Ultimamente, surgiram os Gabinetes de Fotodepilação. A propósito e não sei bem porquê, pois os pensamentos tal como as palavras são como as cerejas, lembrei-me primeiro de Pero Vaz de Caminha e do desembarque em Terras de Vera Cruz, quando os marinheiros depararam com as índias nuas, mostrando “suas vergonhas tão altas e cerradinhas”. E depois da Guiné. De uma espantosa conversa ao serão. O Alferes, os Furriéis, os Cabos, como de costume, falavam de tudo e de coisa nenhuma… Nessa noite, discutia-se um tema interessante – pêlos púbicos. Delas, claro está (...)

28 de Outubro de 2009 > Guiné 53/74 - P5172: Estórias cabralianas (56): Cum caneco, alfero apanhado à unha! (Jorge Cabral)

(..) Há uns dias telefonou-me o nosso Amigo Durães [, da CCS/do BART 2917, Bambadinca, 1970/72]. Estava em Setúbal, com um ex-cabo do Pelotão de Intendência de Bambadinca, o qual lhe jurava que o Alferes Cabral de Missirá havia sido, em 1971, apanhado à mão, quando regressava ao seu Destacamento.

Desaparecido durante dias, fora muito bem tratado pelo pessoal de Madina, passando a não ser incomodado pelos Turras. Garantia o homem da Intendência, a absoluta veracidade do evento, conhecido por todos os seus Camaradas. Queria o Durães saber se eu confirmava o facto. (...)


22 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5522: Estórias cabralianas (57): As duas comissões do Alfero... ou a sua dolce vita em Bissau, segundo a Avó Maria e a Menina Júlia (Jorge Cabral)


(...) A foto do Alfero, fardado de Alferes, no cais do Xime, comprova o que Avó Maria sempre disse. O seu neto Jorge deu-se muito bem na Guiné. Até porque, para ela, nunca saiu de Bissau, que devia ser igual à Lourenço Marques dos anos trinta, quando por lá passou. Essa a razão porque o Alfero, cumpriu simultaneamente duas comissões, uma em Fá e Missirá, outra na capital frequentando os bailes do Governador, os quais descrevia com pormenor em longas cartas, nas quais também falava das eloquentes homilias que ouvira na Sé Catedral. (...)


26 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5889: Estórias cabralianas (58): O Dia do Patacão e a Dívida do Alfero (Jorge Cabral)

(...) Tenho a certeza que os primeiros cabelos brancos do Alfero lhe nasceram nos dias do Patacão.
No final de cada mês, deslocava-se a Bambadinca a fim de levantar o dinheiro para pagar os ordenados aos Militares do Pelotão e aos Milícias. Era o dia do Patacão, ansiado por todos e ainda mais pela multidão de credores, que desde manhã acorria ao Quartel. Usurários, Pré-Sogros e Sogros, Batoteiros Profissionais, Dgilas, Alcoviteiros, Fanatecas, Músicos… havia sempre alguém à espera que o Alfero liquidasse as dívidas dos seus homens. Todos devedores, incluindo o Alfero, que prometera pagar, em prestações suaves, a conta do Fontória, onde em férias, numa noite, oferecera de beber a todos e terminara na Esquadra da Praça da Alegria. (...)


10 de maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6364: Estórias cabralianas (59): Notícias do Ano 2050, quando formos todos UPV e morarmos num Velhil (Jorge Cabral)


(...) Tenho como sabem, uma máquina do tempo, na qual viajo ao passado. Porém hoje a máquina avariou e em vez de recuar os quarenta anos programados, avançou e eis-me aqui no ano de 2050. Estou vivo e ainda trabalho pois agora já ninguém tem direito à Reforma. Exerço as minhas funções no Instituto da Promoção da Pobreza. Preparo um Estudo sobre o Empobrecimento Lícito e o certo é que já sei as conclusões – empobrecer é legítimo, justo, lícito e patriótico. (...)


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Nota do editor:


4 de janeiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22874: "Alfero Cabral ca mori": Lista, por ordem numérica e cronológica,  das 94 "estórias cabralianas" publicadas (2006-2017) - Parte I: de 1 a 19


sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22858: Homenagem da Tabanca Grande ao Jorge Cabral (1944-2021), ex-alf mil at art, cmd, Pel Caç Nat 63 (Bambadinca, Fá e Missira, mai 1969 / ago 1971) - Parte I: "Alfero Cabral", uma genial criação literária, um "alter ego" do autor, usado como arma de irrisão contra o absurdo da guerra (Luís Graça)


Foto nº 1  > O nosso "alfero Cabral" passou por todos os ramos das Forças Armadas: a... Marinha...


Foto nº 2 > O nosso "alfero Cabral" no Exército...


Foto  nº 3 > O nosso "alfero Cabral" na Força Aérea...


Foto nº 4 > O O nosso "alfero Cabral" na Milícia...

Lisboa > Belém > 10 de junho de 2016 > "Foto com o ex-alferes de artilharia dr. Jorge Almeida Cabral e Maldu Jaló, natural de Catió,  e que combateu comigo no sul da Guiné, fazendo parte da Milicia do João Bacar"...

Fotos do Mário Fitas (ex-fur mil inf op esp, CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67).

Fotos (e legendas): © Mário Fitas (2016). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Lisboa > Belém > 10 de junho de 2009, Dia de Portugal > Encontro Nacional de Combatentes, em Belém, junto ao Forte de Bom Sucesso > Vacas de Carvalho à direita da foto, Jorge Cabral deliciosamente "cercado" pelas camaradas da Polícia do Exército (PE).

Foto: © Mário Fitas (2009). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Lisboa >  XXVI Encontro Nacional de Homenagem aos Combatentes do Ultramar >  Belém > 10 de junho de 2019 > Da esquerda para a direita: Luís Graça, Francisco Silva, Humberto Reis, J. L. Vacas de Carvalho e Jorge Cabral


Lisboa >  XXVI Encontro Nacional de Homenagem aos Combatentes do Ultramar >  Belém > 10 de junho de 2019 > Jorge Cabral e Juvenal Amado

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Lisboa, Belém, Forte do Bom Sucesso > 10 de Junho de 2009 > Mini-encontro do pessoal da Tabanca Grande Ei-lo, o mais desalinhado, quiçá o mais pacifista dos Homens Grandes da nossa Tabanca Grande, o autor das saborisíssimas "estórias cabralianas, já então à procra de um editor, o Cabral mais Cabral da Guiné, o Jorge Cabral ele mesmo... Com o seu inseparável cachimbo... Não perde um 10 de Junho desde que deixou as terras de Fá, Missirá, Bambadinca... Nostalgias...  (Em segundo plano, o J. L. Vacas de Carvalho, seu contemporâneo em Bambadinca, 1969/71)

Foto (e legenda): © Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 

Montemor-O-Novo > Ameira > Hotel da Ameira > I Encontro Nacional da Tabanca Grande > 14 de Outubro de 2006 > Um momento de fraternidade, pensa (e sente) o Jorge Cabral, em primeiro plano, tendo à sua direita o nosso baladeiro de Bambadinca (1969/71), e hoje fadista amador, o Zé Luís Vacas de Carvalho, comandante do Pel Rec Daimler 2206.

De pé, afinando as gargantas ou cantando ao desafio, outras duas grandes aves canoras: o Fernando Calado e o Manuel Lema Santos, o exército e a marinha de braço dado... O fotógrafo que estava de serviço apanhou o flagrante, era o David Guimarães, radiante, felicíssimo...

Foto: © David Guimarães (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


“Cabral só há um, o de Missirá, e mais nenhum” (*)

por Luís Graça

Agora que o Jorge Cabral partiu na "barca de Caronte" (**), este livro vamos guardá-lo com enorme saudade e relê-lo, talvez com outros olhos. 

O prefácio que lhe escrevi ( "o charne discreto da humanidade ou a arma da irrisão contra o absurdo da guerra") (*) , continua atualíssimo e estou só a revê-lo aqui e ali. 

“Cabral só há um, o de Missirá, e mais nenhum” continuará a ser o subtítulo, não explíicito deste livro, algo de saudavelmente provocador, mesmo que que não seja imediatamente percetível, para o leitor de hoje, a referência ao antropónimo Cabral e ao topónimo Missirá…

Missirá ficava na “portuguesíssima província” da Guiné, “muito longe do Vietname”, hoje República da Guiné-Bissau, país independente, de língua oficial portuguesa. E Cabral não era o Amílcar, o senhor engenheiro, de origemcabo-verdiano, mas nascido na Guiné,  e líder de um movimento nacionalista que combatia os “tugas”, e considerado hoje o fundador do novo país lusófono que se chama Guiné-Bissau, mas o “alfero Cabral”, um personagem literário criado como um “alter ego” por Jorge Cabral…

Tal como muitos jovens da sua geração, o autor foi chamado para a tropa, ainda antes de acabar o seu curso de direito, e fez o caminho do calvário de muitos outros portugueses, milicianos ou do recrutamento geral (, sem esquecer os militares do quadro), acabando mobilizado para a então “guerra do ultramar”. (Estamos a falar do tempo em que o serviço militar era obrigatório e havia, desde 1961, uma guerra em três frentes, a milhares de quilómetros de casa.)

Alferes miliciano, “atirador de artilharia”, com passagem por Mafra e Vendas Novas, tinha nascido numa família de militares (, segundo creio), sob uma frondosa árvore genealógica que já dera à Pátria “muitos Cabrais e que tais” (, ironizava ele). 

Não desertou como outros “meninos das Avenidas Novas”: foi comandar o Pelotão de Caçadores Nativos, nº 63, dividindo a sua comissão,  entre 1969 e 1971, em dois destacamentos, Fá Mandinga e Missirá,  no Leste da Guiné, região de Bafatá, Sector L1, Bambadinca. Foi, pois, meu vizinho e contemporâneo, e inclusive fizemos operações juntos.

No regresso à Pátria, foi advogado e docente universitário E, nomeadamente, dedicou uma vida à formação de técnicos superiores de serviço social, uma profissão largamente feminina (, ainda hoje). 

E continuou a ser do “contra” mas… “sempre discreto”. Um dia, em dezembro de 2005, apresentou-se à Tabanca Grande, à “tertúlia” criada à volta do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, nestes termos singelos, muito reveladores da sua maneira de ser, estar e escrever:

“Através do blogue, recordo. E sinto. Vejo os rostos dos camaradas, oiço os sorrisos das crianças, e até, calcula, consigo admirar de novo os belos seios das bajudas. Peço permissão para pertencer à Tertúlia, oferecendo o ‘pícaro’ de alguns episódios que vivi.”

Foi o início da série “Estórias cabralianas”, seguramente uma das mais populares que tivemos o privilégio de publicar no blogue, e que foi muito bem acolhida pela crítica literária de então… Cite-se, por exemplo, o nosso saudoso Torcato Mendonça (1944-2021): 

“Só tu, meu caro Jorge, me embacias os óculos com o cloreto de sódio que me saíram dos olhos e molharam os ditos”…

E, de facto, ninguém melhor do que o “alfero Cabral” para nos fazer (sor)rir, ao descrever, em traço grosso, numa frase, numa linha, num parágrafo, numa legenda, uma situação-limite, uma fantasmagórica personagem de carne e osso, um hilariante ambiente de caserna, um garboso chefe militar da “tropa-macaca”, um episódio grotesco mas sempre humaníssimo da nossa (co) vivência na guerra, enfim, uma cena rocambolesca, pícara, brejeira, relativamente à nossa passagem pela Guiné “em defesa da soberania portuguesa”.

Eu, que fui seu contemporâneo e camarada de armas, passei depois a ser fã das suas “short stories”, os seus micro-contos, as “estórias cabralianas”, para mais sabendo que ninguém podia invejar o lugar de comandante deste tipo de destacamentos, isolados, na “linha de fronteira da guerra”, na terra de ninguém, guarnecido por pelotões de caçadores nativos, mais uns tantos “milícias” locais, com a família às costas, os cães e os tarecos, e mais meia dúzia de graduados e especialistas de origem metropolitano, à beira do abismo, esquecidos e abandonados...

Intrinsecamente do “contra” e “antimilitarista” (ou não tivesse sido ele também um “menino da Luz”, uma "rata" do Colégio Militar do ano de 1955), o criador das “estórias cabralianas” não tem qualquer propósito panfletário de denunciar a “guerra colonial”, pôr em causa a gloriosa tradição da “honra & glória” dos nossos africanistas, ou sequer de “ofender a instituição militar”, tão apenas o de manifestar a saudável loucura, própria dos seres humanos que são “condenados” ou “postos à prova” em situações-limite, face à morte, o sofrimento, as privações, o absurdo, o “non-sense”, a irrisão de uma guerra de fim de império... E aquela guerra, naquele espaço e tempo, tinha tudo isso.

Mas as “estórias cabralianas” são, também, um hino à idiossincrasia (lusitana e africana), à plasticidade comportamental dos nossos soldados, à enorme capacidade de resistência, de resiliência, de imaginação e de adaptação da nossa gente...

O Jorge Cabral que, quanto estudante universitário, leu o Ionesco e conhecia o teatro do absurdo, não coloca o seu “alter ego” na situação, confortável, do marionetista... Ele faz parte, de alma e coração, da peça, dos adereços, do cenário, do texto e do contexto… Ele expõe-se, como ninguém

Devo dizer que Jorge Cabral foi o mais “paisano” dos militares que eu conheci na Guiné. Em Fá Mandinga e depois em Missirá, e sempre que ia a Bambadinca, não se limitava a ser um heterodoxo “tuga”, representante da tropa, oficial miliciano, ator e crítico ao mesmo tempo. Era também homem grande, pai, patrão, régulo, chefe de tabanca, conselheiro, psicólogo, ‘amigo do turra’, poeta, socioantropólogo, feiticeiro, ‘cherno’ (catequista), ‘mauro’ (padre), ‘médico (com a difícil especialidade de ‘obstetra e ginecologista’, “consertador de catotas”), sexólogo, advogado e não sei que mais. 

À força de ser propalada e levada pelo vento, de bolanha em bolanha, a histórica e temível frase “Cabral só há um, o de Missirá e mais nenhum” terá tido um efeito “contrassubversivo” e até “perturbador” nas “hostes do PAIGC”… Ao reivindicar ser ele "o único e legítimo Cabral", punha em xeque, o outro, o de Conacri, o "usurpador", que defendia os seus pergaminhos de Kalashnikov na mão…

Chegou por certo aos ouvidos do temível Corca Só, o chefe da 'barraca' de Madina / Belel, a sul do Morés, a tal ponto que no tempo do "alfero Cabral” não mais voltou a meter-se com a malta de Missirá…

Em Missirá, um destacamento mais exposto às morteiradas, canhoadas e roquetadas do IN (abreviatura de inimigo) do que Fá Mandinga, contava-se que o "alfero Cabral”, mais do que temido, passara a ser "respeitado" (e quiçá "venerado") pelos “camaradas do PAIGC”, desde o famoso dia em que foi atrás deles, na bolanha, a apaziguá-los e a tranquilizá-los: “Vocês não fujam, não tenham medo!!!... Sou o Cabral!!!”...

Eis, pois, um verdadeiro Lawrence, não das Arábias, mas do Cuor,  das terras do Cuor, na Guiné!... Alguns dos seus amigos e companheiros de Bambadinca (aonde ele ia com frequência matar a sede) chegaram a recear que ele ficasse completamente ‘cafrealizado’ ou ‘apanhado do clima’.

O “alfero Cabral”, sua genial criação literária, nunca acentua o lado do “bestiário da guerra” que há no Homo Sapiens Sapiens, mas sim o da sua humaníssima, frágil, quase tocante, condição de primata, de primus inter pares na ordem zoológica do mundo... O único animal que, afinal, consegue esta dupla proeza: (i) ser capaz de rir-se de si próprio; e (ii) e mostrar, pelo outro, compaixão (no seu sentido etimológico cum + passio: sofrimento comum, comunidade de sentimentos, partilha da dor… e prazer).

O seu sentido de humor é muito próprio: nu, de tanga (uma toalha à volta cintura), e de G3 às costas, é uma figura impagável, que nos acompanha, de princípio ao fim, fazendo destas “short stories” pérolas literárias, que só podiam ser fruto de um espírito aberto, fraterno, pacifista, sadio, maroto, provocador, lúcido, irreverente, desconcertante, descomplexado.

A par da imensa tragédia que provocou (com perdas e danos, materiais e simbólicos, irreparáveis), a guerra da Guiné foi também palco (hilariante) de muitas peças do Teatro do Absurdo (envolvendo as NT, o IN, os nossos oficiais superiores, o “Caco Baldé”, os nossos camaradas, de diferentes cores e feitios, a população local e, claro, as "bajudas")...

Por outro lado, Jorge Cabral é um dos poucos que tem o engenho e a arte de nos conseguir falar (e, sobretudo, enternecer e comover), com um subtil toque de humor, de maneira descomplexada, das nossas relações com as mulheres locais, sem nunca cair na “ordinarice de caserna”…

Veja-se, por exemplo, essa fabulosa estória, da primeira vez que veio passar férias à Metrópole, em janeiro de 1970, a compra, num grande armazém de Lisboa (, takvez o Grandela), de trinta e oito sutiães de todos os tamanhos e cores, e que ele levou consigo, na bagagem, de regresso a Fá Mandinga, para oferecer às suas queridas bajudas. Mas não se pense, malevolamente, que ele tinha um harém: simplesmente organizou “a festa do corpinho, para a alegria das bajudas, que envergaram o seu primeiro sutiã”…

À laia de conclusão e incentivo para a leitura, acrescentarei este excerto de uma mensagem que em tempos lhe dirigi e que não perdeu nem acuidade nem atualidade, depois agora que ele partiu na barca de Caronte:

“Só tu, meu querido Jorge, consegues pôr a malta e o resto a tropa a fazer... o pino!...Tu és a subversão total, o iconoclasta, o bombista-suicida, o terrorista intelectual, o humorista-mor e outras figuras que tais, que em muito contribuíram para o fim do nosso longo, vasto e glorioso Império... 

O teu humor é(era) subversivo, corrosivo, demolidor... Depois de te ler, um homem, um ‘tuga’, já não é mais o mesmo... Tu devias ir a tribunal militar, porque tu tiras a ‘tusa’... a qualquer combatente... Depois de te ler, quem é o combatente (até mesmo o de Alá!) que se sentirá com ‘tomates’ para ir combater na guerra, nas próximas ‘guerras santas’ que se avizinham?!”...

Luís Graça, editor do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (*)

 [Na altura, em outubro de 2020, o Jorge Cabral manifestou-me o seu agrado e apreço pelo prefácio que lhe escrevi, mas, modesto como era, disse-me que não merecia tantos... adjetivos!]


Escreveu o seu filho, Pedro Almeida Cabral, em 28 do corrente, na sua página do Facebook:


Jorge Almeida Cabral, 1944-2021. Jorge Almeida Cabral

O meu querido e adorado pai faleceu hoje de manhã, em paz e ao meu lado, vítima de um cancro de pulmão raro e agressivo. Como sei que muitos o admiravam, deixarei, quando souber, os detalhes das cerimónias fúnebres.

Esta fotografia, de que gosto particularmente, é dele em Moscovo, no verão de 2019, a jantar comigo num restaurante da moda. Está com a típica expressão a dizer que eu sou maluco (uma das suas frases preferidas), acompanhado do seu inseparável cachimbo.
.___________

Notas do editor:

(*) Adapt. do prefácio de Luís Graça ao livro de Jorge Cabral, "Estórias Cabralianas", vol I. Lisboa: Ed José Almendra, 2020, 144 pp

sábado, 31 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21498: Notas de leitura (1319): "Estórias cabralianas", 1º volume, Lisboa, Leituria, 2020, 144 pp,, de Jorge Cabral... Prefácio de Luís Graça: "o charne discreto da humanidade ou a arma da irrisão contra o absurdo da guerra"


O " alfero Cabral"... o mais "paisano" e "heterodoxo" dos comandantes que passaram pelo TO da Guiné...


... Até o Spínola um dia desabafou, no regresso à sua  visita ao destacamento de Missirá: "- Porra, que não é só o alferes!... Estão todos apanhados!"


Lisboa > Belém > 10 de Junho >  Sempre bendito entre as mulheres... Mas em Fá Mandinga e Missirá, em 1969/71,  ainda não havia camaradas do sexo feminino, em terra, no mar ou no ar! (,tirando meia-dúzia de enfermeiras-paraquedistas que tinham o estatuto transcendente de "anjos do céu" que vinham resgatar mortos e moribundos).

Fotos: © Jorge Cabral (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Prefácio: “Cabral só há um, o de Missirá, e mais nenhum”  (»)


por Luís Graça

Este bem podia ser o subtítulo, saudavelmente provocador, deste livro, se fosse imediatamente percetível, para o leitor de hoje, a referência ao antropónimo Cabral e ao topónimo Missirá…

Missirá ficava na “portuguesíssima província” da Guiné, “muito longe do Vietname”, hoje República da Guiné-Bissau, país independente, de língua oficial portuguesa. E Cabral não era o Amílcar, o senhor engenheiro e líder de um movimento nacionalista que combatia os “tugas”, mas o “alfero Cabral”, um personagem literário criado como um “alter ego” por Jorge Cabral…

Tal como muitos jovens da sua geração, o autor foi chamado para a tropa, ainda antes de acabar o seu curso de direito, e fez o caminho do calvário de muitos outros portugueses, milicianos ou do recrutamento geral (,sem esquecer os militares do quadro), acabando mobilizado para a então “guerra do ultramar”. (Estamos a falar do tempo em que o serviço militar era obrigatório e havia, desde 1961, uma guerra em três frentes, a milhares de quilómetros de casa.)

Alferes miliciano, “atirador de artilharia”, nascido numa família de militares, sob uma frondosa árvore genealógica que já dera à Pátria “muitos Cabrais e que tais”, não desertou como outros “meninos das Avenidas Novas”: foi comandar o Pelotão de Caçadores Nativos, nº 63, dividindo a sua comissão entre Fá Mandinga e Missirá, entre 1969 e 1971, no Leste da Guiné, Sector L1, Bambadinca.

No regresso à Pátria, foi advogado e docente universitário. E continuou a ser do “contra” mas… “sempre discreto”. Um dia, em dezembro de 2005, apresentou-se à Tabanca Grande, à “tertúlia” criada à volta do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, nestes termos singelos:

“Através do blogue, recordo. E sinto. Vejo os rostos dos camaradas, oiço os sorrisos das crianças, e até, calcula, consigo admirar de novo os belos seios das bajudas. Peço permissão para pertencer à Tertúlia,, oferecendo o ‘pícaro’ de alguns episódios que vivi.”

Foi o início da série “Estórias cabralianas”, seguramente uma das mais populares que tivemos o privilégio de publicar, e que foi muito bem acolhida pela crítica literária de então… Cite-se, por exemplo, Torcato Mendonça: “Só tu, meu caro Jorge, me embacias os óculos com o cloreto de sódio que me saíram dos olhos e molharam os ditos”…

E, de facto, ninguém melhor do que o “alfero Cabral” para nos fazer (sor)rir, ao descrever, em traço grosso, numa frase, numa linha, num parágrafo, numa legenda, uma situação-limite, uma fantasmagórica personagem de carne e osso, um hilariante ambiente de caserna, um garboso chefe militar da “tropa-macaca”, um episódio grotesco mas sempre humaníssimo da nossa (co) vivência na guerra, enfim, uma cena rocambolesca, pícara, brejeira, relativamente à nossa passagem pela Guiné “em defesa da soberania portuguesa”.

Eu, que fui seu contemporâneo e camarada de armas, passei depois a ser fã das suas “short stories”, as “estórias cabralianas”, para mais sabendo que ninguém podia invejar o lugar de comandante deste tipo de destacamentos, isolados, na “linha de fronteira da guerra”, na terra de ninguém, guarnecido por pelotões de caçadores nativos, mais uns tantos “milícias” locais, com a família às costas, os cães e os tarecos, e mais meia dúzia de graduados e especialistas de origem metropolitano, à beira do abismo, esquecidos e abandonados...

Intrinsecamente do “contra” e “antimilitarista” (ou não tivesse sido ele também um “menino da Luz”), o criador das “estórias cabralianas” não tem qualquer propósito panfletário de denunciar a “guerra colonial”, pôr em causa a gloriosa tradição da “honra & glória” dos nossos africanistas, ou sequer de “ofender a instituição militar”, tão apenas o de manifestar a saudável loucura, própria dos seres humanos que são “condenados” ou “postos à prova” em situações-limite, face à morte, o sofrimento, as privações, o absurdo, o “non-sense”, a irrisão de uma guerra de fim de império... E aquela guerra, naquele espaço e tempo, tinha tudo isso.

Mas as “estórias cabralianas” são, também, um hino à idiossincrasia (lusitana e africana), à plasticidade comportamental dos nossos soldados, à enorme capacidade de resistência, de resiliência, de imaginação e de adaptação da nossa gente...

O Jorge Cabral que, quanto estudante universitário leu o Ionesco e conhecia o teatro do absurdo, não coloca o seu “alter ego” na situação, confortável, do marionetista... Ele faz parte, de alma e coração, da peça, dos adereços, do cenário, do texto e do contexto…

Devo dizer que Jorge Cabral foi o mais “paisano” dos militares que eu conheci na Guiné. Em Fá Mandinga e depois em Missirá, e sempre que ia a Bambadinca, não se limitava a ser um heterodoxo “tuga”, representante da tropa, oficial miliciano, ator e crítico ao mesmo tempo. Era também homem grande, pai, patrão, régulo, chefe de tabanca, conselheiro, psicólogo, ‘amigo do turra’, poeta, socioantropólogo, feiticeiro, ‘cherno’ (catequista), ‘mauro’ (padre), ‘médico (com a difícil especialidade de ‘obstetra e ginecologista’, “consertador de catotas”), sexólogo, advogado e não sei que mais.

À força de ser propalada e levada pelo vento, de bolanha em bolanha, a histórica e temível frase “Cabral só há um, o de Missirá e mais nenhum” terá tido um efeito “contrassubversivo” e até “perturbador” nas “hostes do PAIGC”… Ao reivindicar ser ele "o único e legítimo Cabral", punha em xeque, o outro, o de Conacri, o "usurpador", que defendia os seus pergaminhos de Kalashnikov na mão…

Chegou por certo aos ouvidos do temível Corca Só, o chefe da 'barraca' de Madina / Belel, a sul do Morés, a tal ponto que no tempo do "alfero Cabral” não mais voltou a meter-se com a malta de Missirá…

Em Missirá, um destacamento mais exposto às morteiradas, canhoadas e roquetadas do IN (abreviatura de inimigo) do que Fá Mandinga, contava-se que o "alfero Cabral”, mais do que temido, passara a ser "respeitado" (e quiçá "venerado") pelos “camaradas do PAIGC”, desde o famoso dia em que foi atrás deles, na bolanha, a apaziguá-los e a tranquilizá-los: “Vocês não fujam, não tenham medo!!!... Sou o Cabral!!!”...

Eis, pois, um verdadeiro Lawrence das terras do Cuor, na Guiné!... Alguns dos seus amigos e companheiros de Bambadinca (aonde ele ia com frequência matar a sede) chegaram a recear que ele ficasse completamente ‘cafrealizado’ ou ‘apanhado do clima’.

O “alfero Cabral” nunca acentua o lado do “bestiário da guerra” que há no Homo Sapiens Sapiens, mas sim o da sua humaníssima, frágil, quase tocante, condição de primata, de primus inter pares na ordem zoológica do mundo... O único animal que, afinal, consegue esta dupla proeza: (i) ser capaz de rir-se de si próprio; e (ii) e mostrar, pelo outro, compaixão (no seu sentido etimológico cum + passio: sofrimento comum, comunidade de sentimentos, partilha da dor… e prazer).

O seu sentido de humor é muito próprio: nu, de tanga (uma toalha à volta cintura), e de G3 às costas, é uma figura impagável, que nos acompanha, de princípio ao fim, fazendo destas “short stories” pérolas literárias, que só podiam ser fruto de um espírito aberto, fraterno, pacifista, sadio, maroto, provocador, lúcido, irreverente, desconcertante, descomplexado.

A par da imensa tragédia que provocou (com perdas e danos, materiais e simbólicos, irreparáveis), a guerra da Guiné foi também palco (hilariante) de muitas peças do Teatro do Absurdo (envolvendo as NT, o IN, os nossos oficiais superiores, o “Caco Baldé”, os nossos camaradas, a população local)...

Por outro lado, Jorge Cabral é um dos poucos que tem o engenho e a arte de nos conseguir falar (e comover), com um subtil toque de humor, de maneira descomplexada, das nossas relações com as mulheres locais, sem nunca cair na “ordinarice de caserna”…

Veja-se, por exemplo, essa fabulosa estória, da primeira vez que veio passar férias à Metrópole, em janeiro de 1970, a compra, num grande armazém de Lisboa, de trinta e oito sutiães de todos os tamanhos e cores, e que ele levou consigo, na bagagem, de regresso a Fá Mandinga, para oferecer às suas queridas bajudas. Mas não se pense, malevolamente, que ele tinha um harém: simplesmente organizou “a festa do corpinho, para a alegria das bajudas, que envergaram o seu primeiro sutiã”…

À laia de conclusão e incentivo para a leitura, acrescentarei este excerto de uma mensagem que em tempos lhe dirigi e que não perdeu nem acuidade nem atualidade:

“Só tu, meu querido Jorge, consegues pôr a malta e o resto a tropa a fazer... o pino!...Tu és a subversão total, o iconoclasta, o bombista-suicida, o terrorista intelectual, o humorista-mor e outras figuras que tais, que em muito contribuíram para o fim do nosso longo, vasto e glorioso Império... O teu humor é(era) subversivo, corrosivo, demolidor... Depois de te ler, um homem, um ‘tuga’, já não é mais o mesmo... Tu devias ir a tribunal militar, porque tu tiras a ‘tusa’... a qualquer combatente... Depois de te ler, quem é o combatente (até mesmo o de Alá!) que se sentirá com ‘tomates’ para ir combater na guerra, nas próximas ‘guerras santas’ que se avizinham?!”...

Luís Graça, editor do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (**)


O livro está à venda na Livraria Leituria (Rua José Estêvão, 45 A, Pascoal de Melo / Jardim Constantino, Lisboa).Preço de capa: 10 €


Compra "on-line" em www.leituria.com: envio correio: 10,00 €, mais 0,90 € de expedição, podendo ser pago por multibanco, transferência, PayPal, etc.

quinta-feira, 2 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21130: Memórias cruzadas nas 'matas' da região do Oio-Morés em 1963/64 (Jorge Araújo) - II (e última) Parte


Foto 4 – Cutia (Região do Óio) - "Ronco" da CART 564 [Out63-Out65]. (Foto do álbum do fur mil Leopoldo Correia, da CART 564), com a devida vénia. In: https://rumoafulacunda.wordpress.com/mansoa/cutia/


Foto 5 – Cutia (Região do Óio) - Estrada principal para Cutia. (Foto do álbum do fur mil Leopoldo Correia, da CART 564, 1963/65), com a devida vénia. In: https://rumoafulacunda.wordpress.com/mansoa/cutia/


Foto 6 – Mansoa (Região do Óio) - Dois elementos da CCAÇ 413 (1963/65), junto à placa toponímica que indicavam algumas das localidades mais próximas para Oeste (Nhacra, a 28 km e Bissau, a 49 km. Para Leste: Enxalé, a 50 km; Bambadinca, a 65 km e Bafatá, a 93 km. – Foto do livro «Nos celeiros da Guiné», de Albano Dias Costa e José Sá-Chaves, com a devida vénia – P3066.



O nosso coeditor Jorge Alves Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger,
CART 3494 (Xime e Mansambo, 1972/1974), professor do ensino superior, indigitado régulo da Tabanca de Almada e da Tabanca dos Emiratos; tem 256 registos no nosso blogue.


MEMÓRIAS CRUZADAS
NAS 'MATAS' DA REGIÃO DO ÓIO-MORÉS EM 1963-1964
- O CASO DE ENCHEIA -

II (e última) PARTE


Mapa da região do Óio, com indicação de alguns dos locais de "memórias cruzadas".
Em todos eles, e em todas as gerações de combatentes, com início em 1963, ocorreram factos marcantes para o resto da vida… (de todas as vidas)… em que alguns não tiveram direito a "viagem" de regresso... Lamentavelmente!

► Continuação do P21095 (21.06.20) (*)

3.   - AVALIAÇÃO DO DESEMPENHO DOS COMANDANTES DE BASES

Os objectivos da missão realizada por Bebiano Cabral d'Almada, dirigente do Bureau de Dakar, entre 12 de Janeiro e 05 de Fevereiro de 1964, incluía contactos com as estruturas partidárias organizadas em território da República do Senegal, na região de Casamansa, e um melhor conhecimento sobre o desenvolvimento da luta no interior da Guiné, através da visita a algumas das bases existentes na região do Óio-Morés.

No entanto, um outro propósito intrínseco aos objectivos supra, passava pela avaliação do desempenho versus comportamento dos diferentes comandantes das bases visitadas, que o relatório dá conta. A justificação para esse desiderato é explicada pelo autor do documento nos seguintes termos:

"Sem qualquer ideia de crítica ou espírito de maldade, mas na obrigação estrita do cumprimento do dever, cumpre-me deixar aqui escrito, certas informações sobre alguns responsáveis, colhidas nas bases visitadas." (Op. Cit., p. 16)

3.1         - INFORMAÇÕES SOBRE DIVERSOS CAMARADAS

● Camarada Mamadu Indjai – responsável da base de Fajonquito [Óio] e da recente base criada em Maqué [viria a morrer em 1973, na região do Boé, fuzilado pelos seus camaradas, por estar envolvido, em Conacri, na conspiração que levou ao assassinato de Amílcar Cabral (1924-1973)].

Não só na organização dos grupos de rapazes e raparigas existentes nas suas bases, como ainda pela muita coragem que tem sempre demonstrado em constantes combates travados contra os colonialistas portugueses, não parando além disso inactivo na sua base, sempre à procura de entrar em acção, quer em terra, como ainda procurando inutilizar as vedetas inimigas em fiscalização no rio, tendo ainda agora, permanecido durante cinco dias vigiando o rio Cacheu, perto de Iador, para ver se conseguia neutralizar a acção duma vedeta que ultimamente tem rondado aquelas paragens, não tendo infelizmente de satisfazer o seu desejo.

Camarada Leandro Vaz – responsável da base de Dando

Tem uma boa organização na sua base, mas isso não é suficiente, em virtude de não se deslocar da base para procurar entrar em acção contra o inimigo e nem sequer em serviço de rotina de ronda.

Camarada Augusto Pique

Encarregado duma base nova a poucos quilómetros de Dando, sob a responsabilidade do camarada Leandro Vaz, tem demonstrado sempre muita coragem e a melhor vontade no desempenho do seu cargo.

Camarada Paulo Santi I (1º)

Encarregado duma base recentemente formada, sob a responsabilidade do camarada Leandro Vaz e situada entre Mansoa e Dando, tem desempenhado as suas funções a contento do seu responsável.

Camarada Corca Só – responsável da base de Sansabato

Demonstrou a sua coragem no ataque no dia 01 do corrente mês (Fev'64), contra os colonialistas, forças terrestres e aéreas que tentaram atacar a sua base, tendo mesmo defendido corajosamente, somente com seis camaradas na ocasião na base, em virtude dos dois pelotões armados terem saído de ronda, tendo-se valentemente aguentado, dando assim tempo à chegada de reforços saídos da base Central. Merece as melhores referências [morreu em combate, na base Guerra Mendes (Óio-Morés), em 08Out72].

Camarada Inocêncio Kani – responsável da base de Mansodé [, futuro assassino de Amílcar Cabral, em Conacri, em 20 de Janeiro de 1973]

É um incansável e corajoso combatente, tendo ainda há dias, depois de bombardeada a central eléctrica de Farim, assaltado de surpresa uma povoação de fulas, ligados aos colonialistas e dali retirou mais de quarenta cabeças de gado bovino e milho, que servirá para a alimentação das bases.

Camaradas João da Silva e Quintino Robalo – encarregados da base Central, na ausência do camarada Ambrósio Djassi (Osvaldo Vieira)

Durante a minha estadia na base Central, nunca se deslocaram da base para qualquer acção ou simples serviço de ronda, a não ser o camarada Quintino Robalo, quando me acompanhou de visita às bases a cargo dos camaradas Inocêncio Kani e Corca Só.

Camarada Agostinho da Silva "Gazela" – responsável da base de Biambe

Não visitei esta base, não só pela longa distância, como me encontrei com o respectivo responsável na base Central, quando ali fora pedir reforço de material para enfrentar os constantes ataques aéreos e terrestres de tropas colonialistas portuguesas, vindas de Bula, Bissorã, Mansoa e Canchungo. 

Informou-me não ter raparigas na sua base mas que está em vias de as ter dentro em breve, e que a organização da massa se encontra normal. Desse camarada tive a informação que o camarada Marcelino da Mata, é muito cobarde, procurando fugir sempre a qualquer contacto com as tropas inimigas.

Camarada Caetano Semedo – responsável da base de Cubajal (Porto Gole)

Também não visitei esta base, pela sua longa distância, mas fui informado pelos camaradas Maximiano Gama e Irénio Lopes, que por lá passaram, que nessa base existem grande número de raparigas e rapazes bem organizados, apesar também de sofrer constantes ataques terrestres, aéreos e navais. Este camarada, por informações obtidas na base Central tem desempenhado corajosamente as funções do seu cargo, mostrando muito brio e competência.

Camarada Hilário Rodrigues "Lolo"

Segundo informações colhidas na base Central, tem-se desviado de constantes ataques, tanto assim que o camarada Ambrósio Djassi (Osvaldo Vieira) resolveu destacar-lhe em serviço de mobilização e propaganda, o que demonstra não ter o mesmo condições militares. 

Foi depois colocado, como Cmdt da "Zona 3" (Canquelifá - Buruntuma - Piche e Nova Lamego), onde o vamos encontrar em Abril de 1965. Passados cinco meses (Set'65), Amílcar Cabral toma a decisão de o transferir para a Frente Sul, como prisioneiro do Partido, ficando à guarda de "Nino" Vieira, com a seguinte justificação:



Citação: (1965), Sem título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_35336, com a devida vénia.

Camarada António Embaná

Encontra-se na base de Fajonquito a trabalhar com o camarada Mamadu Indjai, tendo este realçado as suas qualidades, dizendo ser o seu braço direito e que tem desempenhado as suas funções com competência e coragem, tendo no seu regresso, deixado o camarada António Embaná, incumbindo pelo camarada Mamadu Indjai, em Iador a escolher um local seguro, para uma nova base que pretendem criar, tendo nesse mesmo dia reunido o camarada Embaná, numerosas pessoas para explicar-lhes a necessidade da criação daquela base, em virtude da povoação estar agora livre do traidor Braima Cutô, que servindo de Pide, vinha extorquindo a população, e que foi pessoalmente preso por ele Embaná e executado na base Central por ordem do camarada Mamadu Djassi.

Camarada Julião Lopes
O parecer sobre o Cmdt Julião Lopes será analisado no contexto do ponto seguinte.

Foto 7 – Citação: (1963-1973), "Reunião de combatentes do PAIGC e população em Morés", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43456, com a devida vénia.

4.   - A SITUAÇÃO MILITAR EM ENCHEIA

4.1 - SUBSÍDIO HISTÓRICO DA COMPANHIA DE ARTILHARIA 564 =
NHACRA - QUINHAMEL - BINAR - TEIXEIRA PINTO - ENCHEIA - MANSOA E CUTIA (1963-1965)

4.1.1 - A MOBILIZAÇÃO PARA O CTIG
Mobilizada pelo Regimento de Artilharia Pesada 2 [RAP 2], de Vila Nova de Gaia, para servir na província ultramarina da Guiné, a Companhia de Artilharia 564 [CART 564] embarcou em Lisboa, no Cais da Rocha, em 08 de Outubro de 1963, 3.ª feira, sob o comando do Cap Mil Art Rodrigo Claro de Albuquerque Menezes de Vasconcelos, seguindo viagem a bordo do N/M «ANA MAFALDA», tendo chegado a Bissau em 14 do mesmo mês, 2.ª feira.

4.1.2 - SÍNTESE DA ACTIVIDADE OPERACIONAL

Após a sua chegada ao CTIG, a CART 564 [14Out63-27Out65] rendeu a CART 240 [30Jul61-19Out63, do Cap Art Manuel Fernando Ribeiro da Silva], ficando colocada no sector de Bissau, com Grs Comb destacados em Nhacra e Quinhamel, ficando integrada no dispositivo e manobra do BCAÇ 600 [18Out63-20Ago65, do TCor Inf Manuel Maria Castel Branco Vieira], com vista a garantir a segurança das instalações e das populações da área. 

A partir de 24 de Dezembro de 1963, um Gr Comb foi destacado para Binar e seguidamente para Teixeira Pinto, a fim de reforçar a actividade do BCAÇ 507 [20Jul63-29Abr65, do TCor Inf Hélio Augusto Esteves Felgas], enquanto outro Gr Comb se instalou em Encheia, na zona de acção do BCAÇ 512 [22Jul63-12Ago65, do TCor Inf António Emílio Pereira de Figueiredo Cardoso], a fim de ocupar aquela povoação. 

Em 12Mai64, assumiu a responsabilidade do subsector de Nhacra, então criado, na zona de acção do BCAÇ 600, continuando, no entanto, a manter o pelotão destacado em Encheia até 01Jul64.

Nesta data, por rotação com a CCAÇ 413 [09Abr63-29Abr65, do Cap Inf Júlio Eugénio Augusto Viegas de Almeida Pires], assumiu a responsabilidade do subsector de Mansoa, ficando integrada no dispositivo do BCAÇ 512 e depois do BART 645 [10Mar64-09Fev66, do TCor Art António Braamcamp Sobral], sendo utilizada, cumulativamente, na função de força de intervenção do sector, de 12Set64 a Fev65, actuando nas regiões de Santambato, Cubonge e Mantefa, em 13Abr65, voltou a ter um Gr Comb em Encheia, tendo ainda mantido efectivos em Cutia, por períodos variáveis. 

Em 27Out65, foi substituída no subsector de Mansoa pela CART 644 [10Mar64-27Jan66, do Cap Art Vítor Manuel da Ponte da Silva Marques (1.º), Cap Art Nuno José Varela Rubim (2.º) e Cap Art José Júlio Galamba de Castro (3.º), tendo seguido para Bissau, a fim de efectuar o embarque de regresso. p 440.

4.1.3 - SÍNTESE DA ACTIVIDADE OPERACIONAL EM ENCHEIA

A chegada de um Gr Comb da CART 564 a Encheia, verificada em 24 de Dezembro de 1963, 3.ª feira, é a resposta do comando militar do Sector C, da responsabilidade do BCAÇ 512 [22Jul63-12Ago65, do TCor Inf António Emílio Pereira de Figueiredo Cardoso], ao crescendo das hostilidades na região do Óio iniciadas no mês de Junho de 1963, a partir da base central do Morés, "santuário" dos guerrilheiros do PAIGC.

Em relação a Encheia, merecem destaque, como fonte de informação privilegiada, as referidas pelo Chefe Administrativo do Posto local, José Cerqueira Leiras, ex-militar da CCAÇ 153 (1961-1963), retiradas do seu livro «Memórias de um esquecido», edição de 2003, já referenciado na Parte I deste trabalho – P21095 –, onde o camarada Beja Santos faz a apreciação crítica da narrativa do autor, a quem agradecemos, e que aproveitamos para citar algumas ocorrências – P16503.

São exemplos: 

"Numa coluna para Bissau [provavelmente em Outubro'63], entre Encheia e Binar há uma emboscada, um camião civil carregado de arroz e mancarra saltou pelos ares com o rebentamento de uma mina".

 Passado algum tempo, regressa a Encheia, "e pela estrada de Bissorã, via Mansoa, depara-se um camião civil a arder. Dez quilómetros à frente, duas árvores atravessadas e mais adiante uma grande vala cortando por completo a estrada". (…) 

Este quadro adverso e de terror, onde diariamente assiste à fuga da população para o mato, leva José Leiras a deslocar-se a Bissorã para falar com o Administrador local e pedir reforços, mas tudo lhe é recusado. "No regresso, escapa por um triz a uma saraivada de balas".

A este conceito de "sorte", juntou-se um outro algum tempo depois, provavelmente em meados de Outubro de 1963, durante um ataque à povoação de Encheia.

O ataque teve como consequências a destruição, pelo fogo, de muitas moranças, o comércio saqueado, todo o gado roubado e pessoas levadas para o mato. O comerciante Francisco Beira Mar é assassinado. José Leiras consegue chegar ao Posto Administrativo e resiste ao fogo dos guerrilheiros, apesar de ferido, pois no jipe onde se fazia transportar foi atingido por várias balas numa perna. José Leiras arranja um voluntário para ir a Bissorã avisar a tropa. Esta levou cinco horas para fazer 24 kms, pois na estrada havia dezenas de árvores atravessadas para além das valas.

Ferido, José Leiras é levado para o hospital (?), nessa altura as cuidadoras são religiosas. São-lhe extraídas as balas e algum tempo depois vai de avioneta até Bissorã. Aí passará a noite de Natal de 1963, e no dia seguinte segue para Encheia, onde vai encontrar o Gr Comb da CART 564.

O responsável por este primeiro ataque a Encheia foi o Cmdt Julião Lopes, vindo da base Central do Morés. Quem o afirma é Bebiano Cabral d'Almada no seu relatório, no ponto reservado às informações sobre diversos camaradas (ponto 3.1 desta narrativa).

=> Diz o relatório (p. 18):

"Por informações colhidas na base Central sobre este camarada [Julião Lopes], soube que num ataque [realizado em Outubro de 1963] do grupo por ele dirigido, em Encheia, contra o Chefe de Posto [José Cerqueira Leiras] e não contra a tropa colonial, que numa rajada da sua metralhadora matou três camaradas, a saber: Luís Mendes "Mambará", João Balimbote e Joãozinho Amona, ficando ele, Julião, ferido com uma bala de um dos camaradas daqueles que morreram, que o atingiu propositadamente com a intenção de o matar, procurando assim vingar-se por si e seus companheiros, tendo nesta altura também ficado ferido, e ainda pelo camarada Julião Lopes, o camarada Paulo Santi

Depois de arrebentada a porta da residência do Chefe de Posto [José Cerqueira Leiras], para ser liquidado, o respectivo chefe, o camarada Julião Lopes, impediu os seus companheiros de o fazerem, alegando bastar já o mesmo ter uma perna quebrada [balas nas pernas].

O Cmdt deste ataque, Julião Lopes, foi depois transportado para o Hospital de Ziguinchor, a fim de ser intervencionado, onde se manteve até ao dia 09 de Janeiro de 1964, 5.ª feira, data em que deu início ao seu regresso à base Central do Morés.


4.2 - ANTECEDENTE DESTE ASSASSINATO COLECTIVO

Segundo os factos narrados no ponto anterior, procedemos ao seu aprofundamento realizando nova pesquisa onde encontrámos um registo datado de 25 de Setembro de 1962. Trata-se de uma carta escrita em Zinguinchor, em "linguagem codificada", dirigida a Amílcar Cabral, onde constam alguns nomes dos que foram assassinados pelo Cmdt Julião Lopes, em Encheia, e que seguidamente se transcreve o conteúdo e se reproduz o documento original.

=> Ziguinchor, 25 de Setembro de 1962 (3.ª feira).

Camarada Cabral,

Esta tem por fim pedir-lhe o envio urgente, caso seja possível, de 4 bonecas daquelas que trazem sapatos e roupa sobressalente pois que tenho que ir presentear pessoas da minha estima.

Seria conveniente enviar-me também o mapa e croquis do número 10 [Zona 10? - Bula a Teixeira Pinto] porque faz muita falta na conclusão do trabalho que tenho entre mãos.

Não se esqueça também de algumas caixas de supositórios para levar aos meus doentes bem como os respectivos suportes suplementares.

Cito-lhe o nome de alguns doentes: - Augusto da Costa, William Tubman, Luís Mendes e João.

O amigo Brauner [Braima Camará?] pediu-me um pé suplente para a boneca da sua filha porque só veio com um pé. É das bonecas maiores, conforme ficha de recebimento.

Receba cumprimentos do camarada sempre ao dispor,
Julião Lopes.

Citação: (1962), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_37368, com a devida vénia.
Concluído.
► Fontes consultadas:

Ø  CasaComum, Fundação Mário Soares. Pasta: 07071.123.011. Título: Relatório do Bureau de Dakar sobre a viagem à região de Casamansa e às bases do Norte da Guiné. Assunto: Relatório enviado a Amílcar Cabral, Secretário-Geral do PAIGC, por Bebiano Cabral de Almada, Membro do Bureau de Dakar, sobre a viagem à região de Casamansa e às bases do Norte da Guiné Bissau. Data: Sábado, 15 de Fevereiro de 1964. Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Relatórios IV 1963-1965. Fundo: DAC – Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Documentos.

Ø  Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 7.º Volume; Fichas das Unidades; Tomo II; Guiné; 1.ª edição, Lisboa (2002).

Ø  Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 8.º Volume; Mortos em Campanha; Tomo II; Guiné; Livro 1; 1.ª edição, Lisboa (2001).

Ø  Outras: as referidas em cada caso.
Termino, agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde… sem ajuntamentos.

Jorge Araújo.
21JUN2020
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Nota do editor:

Último poste da série > 21 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21095: Memórias cruzadas nas 'matas' da região do Oio-Morés em 1963/64 (Jorge Araújo) - Parte I