sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Guiné 63/74 - P2270: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (9): E de súbito uma explosão, uma emboscada, um caos...

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Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Estrada Finete-Missirá > 1969 > O Fur Mil Reis (à esquerda) e o Alf Mil Carlão (à direita), do 2º Gr Comb da CCAÇ 12 examinam o estado em que ficou a viatura Unimog em que seguia o Alf Mil Beja Santos, comandante do Pel Caç Nat 52, quando accionou uma mina anticarro, no dia 16 de Outubro de 1969, por volta das 18h00, na zona de Canturé. O accionamento da mina foi seguido de emboscada.

A NT, que seguiam em coluna de reabastecimento ao destacamento de Missirá, sofreram um morto (sold condutor Manuel Guerreiro Jorge, da CCS do BCAÇ 2852) e quatro feridos (1º cabo Alcino Barbosa e o sold Cherno Suabe, ambos do Pel Caç Nat 52; 2º Sarg Milícia Albino Mamadu Baldé, do Pel Mil 101; Sold Trms Arlindo Guiomar Bairrada, do Pel Mort 2106/CCS do BCAÇ 2852).

O Pel Caç Nat 52 será transferido para Bambadinca, sendo substituído, em Novembro de 1969, pelo Pel Caç Nat 54, comandado pelo Alf Mil Correia, devido ao grande desgaste a que tinha estado sujeito nos últimos meses.

Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Pel Caç Nat 52 > O Beja Santos mais alguns militares da sua unidade, num burrinho conduzido por um dos condutores da CCS do BCAÇ 2852, o Manuel Guerreiro Jorge ou o Setúbal (não posso precisar) (LG).
Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.


Envelope de luto, com a carta que enviou ao Beja Santos em 10 de Novembro de 1970 o pai do infortunado soldado condutor Manuel Guerreiro Jorge, morto em Canturé - "o Sr. Jesuíno Jorge que tanto esperou por uma visita que nunca lhe fiz" (BS).

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.



Mensagem do Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Setembro de 2007:

Luis, estou para saber como é que ganhei coragem para estas confissões. Felizmente, foi a única mina anticarro que tive com tão trágicas consequências. Tens aí várias fotografias da mina de Canturé, vou juntar o relatório, o louvor do Mamadu Djau, e acho que é um bom momento para mostrares a carta do Sr. Jesuino Jorge, que tanto esperou por uma visita que nunca lhe fiz. Pareceu-me descabido falar de leituras num episódio como este. Não há problema, em Bissau li e li muito, estava tão triste que não queria ver ninguém. Haverá muitas leituras para a semana. Recebe um abraço do Mário.

PS - Luis, esta é a versão definitiva. O texto que te enviei ontem tinha gralhas imperdoáveis. Para a semana haverá mais um episódio. Recebe um abraço do Mário.


Operação Macaréu à vista - Parte II > Seis da tarde quando a formiga sacode a pólvora
por Beja Santos (1)


Este seria o nosso último abastecimento em Bambadinca

A 16 de Outubro [de 1969], a coluna que parte de Missirá para Bambadinca vai à procura de mantimentos e combustível, para que não haja problemas logísticos momentosos para quem nos vem substituir. Prevê-se a chegada iminente do Pel Caç Nat 54, um grupo de combate da CCaç 12 vai nesse dia a Mato de Cão, as populações civis de Missirá e Finete estão sem arroz, muitos dos soldados do Pel Caç Nat 52 andam à procura de quartos em moranças na tabanca de Bambadinca, passo horas a apresentar-me junto dos senhorios e dos comerciantes locais como fiador na compra de camas e colchões.

Como que por milagre, arrebito das minhas mazelas, está a desaparecer-me o líquen das costas, secam as feridas dos pés, durmo melhor, vou digerindo o colapso nervoso do Casanova, atiro-me com energia à contabilidade, aos autos, aos livros de abate, aos cadernos onde registamos todas as munições. Fazemos gala, o Pires e eu, em entregarmos toda a escrita em dia, toda a transparência no deve e haver, seja nas folhas de pagamentos seja nos abastecimentos que deixamos nos armazéns de víveres.

É uma manhã que pronuncia o fim das chuvas, um céu azul de cobalto e despido de quaisquer nuvens caindo ao fundo na cobertura vegetal cor garrafa escuro, as picadas estão secas, o capim ergue-se louro como se fosse trigo. O meu estado de espírito renovou-se com optimismo.

No entanto, antes de partir, enquanto engulo um leite achocolatado com pão e marmelada, oiço um pouco de “Um Requiem Alemão”, de Brahms, o coro da RIAS de Berlim entoa “Bem aventurados os que estão em aflição, porque eles serão consolados”. É um requiem profano, muito plangente, e é quando eu desligo o gira-discos que tenho a primeira premonição da tragédia que se avizinha. Mas a azáfama é tanta e tantas andanças nos esperam em Bambadinca que a mente saúda e esvoaça na bela manhã, rendendo-se à serenidade envolvente.

Passa-se por Canturé, há árvores em flor, os picadores estão prudentes tal a densidade da vegetação, tal a poeira que se levanta no estradão. Em Finete, há dois dedos de conversa sobre as obras, os mais feridos sobem para a caixa do 404, Bacari Soncó apresenta a lista dos sacos de arroz que urge comprar. O alvoroço do mercado de Bambadinca está no auge, toda a estridência dos encontros nota-se nos tons que se elevam a volumes quase impossíveis. Paro sempre impressionado com a alegria esfuziante desses encontros, as mãos dadas, as perguntas, os olhos cheios de contentamento.

Passamos a manhã numa roda viva, sou fiador não sei quantas vezes, subo ao quartel, há conversas na engenharia, requisitam-se peças para o burrinho, discute-se a substituição do radiotelegrafista, os bidões de petróleo e gasóleo sobem para uma viatura e daqui são transportados para o cais de Bambadinca, depois é a compra de comida, deixo o Alcino Barbosa a regatear com os vagomestres, sigo para a secretaria onde deixo ofícios assinados, passo pelo serviço de justiça e entrego ao Valentim vários autos.

Logo a seguir ao almoço vou a Afiá comprar arroz, regresso com oito sacos. Junto do paiol, pegamos em vários cunhetes de munições, as nossas operações logísticas estão finalmente concluídas. Levo a promessa que na próxima semana haverá a transferência. O comandante não me deixa de avisar:
-Você fica mais uma semana em Missirá, até porque vão chegar as duas secções de milícias. Não se esqueça de patrulhar tudo, não quero tropa instalada só dentro do arame farpado. Procure melhorar as relações entre as autoridades civis que não vêem com bons olhos o regresso do Pel Caç Nat 54 a Missirá.

A travessia da bolanha é penosa, o 404 vai ajoujado com bidões, sacos de arroz, caixas de tudo, desde cerveja a esparguete. O entardecer encaminha-se perigosamente para o ocaso. O condutor, Manuel Guerreiro Jorge, que veio esbaforido desde o Geba até Finete, sempre a fintar os buracões da bolanha com um peso anormal de mercadorias, fuma nervosamente um cigarro e pede-me para partirmos cedo, estamos mesmo a entrar no lusco-fusco.

A energia renascida leva-me a comportamentos impulsivos de distribuir recomendações e ver as obras em curso. A viatura vai tão pesada que sobe a resfolegar a rampa íngreme, toda a gente a pé até lá acima, depois é a paródia de nos anicharmos nos espaços possíveis e impossíveis. Estou descansado com a segurança da estrada, duas secções da milícia passaram por aqui perto do meio dia.


A explosão, a emboscada, a reacção, o caos, de novo a reacção


No guincho à frente está Cherno Suane, sigo ao lado de Manuel Guerreiro Jorge,[o condutor,] estamos ladeados por Alcino Barbosa e Arlindo Bairrada. No alto, sentado no bidão mais protuberante vai Mamadu Djau com a bazuca nas pernas. Levamos quatro crianças, Mazaqueu quer vir a meu lado, mando-o para o pé de Albino Amadu Baldé, o comandante da milícia de Missirá.

O condutor está cada vez mais nervoso com a semiescuridão que desce, inexoravelmente. Apaga o último cigarro e pergunta-me:
-A que velocidade vamos, meu alferes?

Peço-lhe, atendendo à segurança que julgo existir, que vá a toda a velocidade até um pouco depois de Canturé, a seguir é que temos problemas, a picada está escorregadia até ao pontão de Caranquecunda. E a viatura parte à desfilada. Não se ouve o piar das aves, a lua recorta-se dentro do arvoredo que se vai sumindo rapidamente. É um anoitecer suave onde o rodado do 404 se sobrepõe à vozearia de quem vai na caixa. Exactamente quando a recta de Canturé está no fim, um estrondo medonho levanta o 404, os fios eléctricos silvam, a viatura afocinha na agonia, oiço o primeiro urro do condutor que pisou a mina anticarro, há a surpresa dos transportados, sou cuspido, sinto os óculos voarem, uma massa quente e ácida cega-me o olho direito, quer o destino que eu salte de escantilhão com a G3 na mão direita.

Tive muita sorte, os emboscados não dimensionaram devidamente a zona de morte, o 404 entrou de roldão fora da picada, terão recuado espavoridos, limitei-me a despejar rajadas, o que também terá surpreendido quem esperava uma carnificina fácil. E mais sorte tive porque Mamadu Djau deu novo sinal da sua valentia, do seu destemor, desferindo duas bazucadas que troaram naquela floresta em reboliço.

Manda o pudor que vamos encerrar por aqui a descrição desta emboscada incongruente e até pensar que um homem vestido de caqui amarelo que avançou para mim como que para me esganar e a quem enfiei o tapa-chamas da G3 no frontal não existiu, se bem que tenha deixado a arma ensanguentada. O importante era reagir um pouco mais, medir o desastre e ir pedir auxílio, passado o perigo de vida para todos nós.

Os acontecimentos sucedem-se em catadupa, lembro avulsamente que o guincho estava retorcido e que logo pensei que o Cherno ficara pulverizado, as crianças estavam estiradas na berma da picada, o tiroteiro, os dilagramas e as granadas defensivas eram a resposta da sobrevivência. Depois, o fogo arrefeceu, aquela estranhíssima emboscada deixou de dar sinal de vida, o que se ouvia até ferir os tímpanos eram os gritos lancinantes de Manuel Guerreiro Jorge que perdera as pernas e entrara em estado de choque. O Alcino queixa-se, há mais feridos, a caixa do 404 cedeu, como num naufrágio os bidões e todas as mercadorias estão espalhadas à nossa volta.

Se existe inimigo perto, penso, está a reagrupar-se. Falo com Mamadu Djau, dando-lhe a saber que ele vai ficar ali com todos os homens e que vou até Finete e levo as crianças, vou buscar reforços e mesmo auxílio a Bambadinca. Nunca mais esquecerei a resposta de Mamadu:
-Pode confiar, não me entrego, juro-lhe que vamos aguentar até regressar.

A cambalear, agradecendo a Deus só ter perdido o olho direito, como suposera, rodeado de crianças que me seguem no mais absoluto silêncio, demoro menos de uma hora até chegar a Finete. A povoação espera-me na porta de armas, naquela mesma rampa por onde há pouco passei com uma viatura carregada, nós desejosos de chegar a Missirá, tomar banho, jantar, dormir um pouco para, pelas quatro da manhã, partirmos para Mato de Cão.

Bacari Soncó recua quando me vê com o rosto escurecido. Peço-lhe um balde água que ele me atira brutalmente sobre os olhos. Afinal não ceguei, mesmo com o olho cheio de dores vejo ao longe o bruxulear das luzes no porto de Bambadinca. Estou especado, ergo a cabeça para os céus, rezo o Credo. Seguem-se as ordens, os civis acompanham os milícias, eu parto para Bambadinca. Peço insistentemente a Bacari que me lave o tapa-chamas. Ele não faz perguntas.


Aqueles grandes momentos de solidariedade (2)


Mesmo com a noite enluarada, atravesso a bolanha aos trambolhões, não fora aquele recuperar de energias dos últimos dias e o suplício da caminhada não teria chegado ao fim. Mufali Iafai atravessa-me de novo para Bambadinca, não faz perguntas, ouviu o suficiente à distância de seis quilómetros para saber que houve uma grande desgraça. É o Zé Maria quem me leva até ao quartel e também não faz perguntas, limita-se a olhar a minha cara queimada e a roupa desfeita.

O Ismael Augusto e o Fernando Calado, décadas depois, lembraram a minha entrada na messe de oficiais, nessa noite de 16 de Outubro, à hora do jantar:
-Mal se abriu a parte de vai-vem e tu apareceste completamente chamuscado, percebemos a desgraça. Toda a gente se levantou, tu falaste na mina anticarro e numa emboscada, disseste que havia feridos graves, o major Cunha Ribeiro tomou imediatamente as decisões necessárias. Parecia que o desastre era completamente nosso.

E assim foi. O Reis partiu com um pelotão, veio o David Payne com ajudantes, aparecerem rapidamente as viaturas, Bambadinca actuava em uníssono. Teve aqui lugar um gesto afectivo inesquecível. O major Cunha Ribeiro sentiu que os meus nervos estavam á beira de rebentar. Pegou-me num braço e disse-me ao ouvido:
-Tigre, vamos lavar a cara, tem que fazer pela noite inteira, o Gomes vai preparar-lhe umas coisas para comer e beber, uma boa parte do nosso jantar segue consigo.

Quando nos reencontrámos em 1994, em Fão, ele tinha esquecido o seu gesto e até mesmo a organização daquela emergência. Foram momentos inesquecíveis de solidariedade que me fizeram suportar a dor física e moral.

Estávamos a chegar a Finete quando a coluna de milícias e civis descia a rampa com os feridos, à luz de archotes. Não sei porquê, voltei a recordar os sons que ouvira ao amanhecer de “Um Requiem Alemão” e sempre que oiço esta obra-prima regresso a Finete e ao sofrimento dos meus homens. O Manuel Guerreiro Jorge morreu nos braços do David. O Alcino Barbosa coxeava, e ainda não sabíamos que era uma fractura de calcâneo. O Arlindo Bairrada tinha estilhaços num saco lacrimal. Albino Amadu Baldé tinha várias fracturas nas pernas.

O caso mais grave era o de Cherno. Ele foi descoberto milagrosamente perto de um morro de baga-baga, com o deflagrar da explosão fora atirado pelo sopro a vários metros de distância. Estava deformado, ensanguentado, irreconhecível. Com o maqueiro, lavamo-lo até aparecer um rosto tumefacto, sulcado de feridas, lábios rasgados, sangue a escorrer dos ouvidos, sempre a gemer, a suplicar água, a denunciar o calvário das dores. De madrugada, deitado a seu lado, procurando-o acalmar, ele disse baixinho:
-Alfero, agradeço a Deus morrer depois de o ter visto.

E pela primeira vez na minha vida vi o Cherno a chorar em silêncio. Na manhã seguinte, morto e feridos foram resgatados por um helicóptero. Como se sabe, Cherno não morreu, teve um traumatismo craniano profundo, é hoje um deficiente das forças armadas portuguesas. Despeço-me do Reis e David Payne, eles regressam a Bambadinca e eu a Missirá.
De Missirá a Bissau

Queta Baldé ficara em Missirá e contou-me depois:
-A minha secção estava de faxina, tínhamos que apanhar lenha, ir buscar água, dois quilómetros para lá e dois quilómetros para cá a rebolar os bidões, três horas no reforço, três horas a descansar, três horas no reforço. Ouvimos a explosão e os tiros, pressentimos uma grande desgraça. Estávamos em Missirá com os furriéis Pires e Pina. Esperámos toda a noite, os homens foram à mesquita pedir a Deus para que ninguém tivesse morrido. Ao amanhecer viemos com o segundo comandante da milícia de Missirá, Bubacar Baldé, em direcção a Finete. Quando vimos a viatura desfeita, tudo espalhado, muitas marcas de sangue, suspeitámos o pior. Não pode imaginar a nossa alegria quando vimos uma coluna vinda de Finete e nosso alfero a mancar à frente.
Em Missirá, fui lacónico na descrição dos acontecimentos mas prolífico na resposta. Combinara com o alferes Reis que a viatura ficaria armadilhada, depois de se trazer os víveres e os combustíveis. Tínhamos que nos preparar para tempos sem viatura já que o 404 ficara completamente destruído (felizmente não foi assim, a solidariedade dos desempanadores mostrou-se logo, o burrinho recuperou forças a 18 de Outubro, fez serviço à água e até Gã Joaquim, onde vinha receber os abastecimentos do Sintex).


Carta do pai do Manuel Guerreio Jorge, com data de 10 de Novembro de 1970, já com o Bej Santos a viver na Metrópole.

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.


O Pires foi fazer o patrulhamento à volta de Canturé, os resultados foram inconclusivos quanto à força emboscada, encontraram-se cartuchos, granadas de RPG2, pensou-se que terão retirado por Canturé até Chicri. Segundo relataram os que estavam em Missirá a 16 de Outubro, foram ouvidos tiros de pistola, pelas duas da tarde, ali perto, poderá ter sido uma força que estava à espera do grupo emboscado ou montara emboscada perto de Morocunda. Não interessava, tratava-se de um grande desastre, eu tinha o sentimento de culpa, houvera várias negligências, baixara irresponsavelmente as guardas, as gentes de Madina foram extremamente hábeis, aproveitaram-se bem dos nossos gestos automatizados, as nossas idas diárias a Mato de Cão, talvez a euforia da transferência.

Tenho que ir a Bissau a vários médicos. Perdi os óculos, seguramente que aconteceu alguma coisa ao meu olho direito, o ouvido dói-me e não há analgésico que abrande a dor, o David Payne sugere que eu vá amanhã.

Estou derreado, Ussumane Baldé veio prontamente avisar-me que é o substituto temporário do Cherno. O régulo pede para ser recebido, abraça-me com calor, longamente e a custo retenho as lágrimas. A seguir ao jantar, depois de ter ido buscar a morada dos pais do Manuel Guerreiro Jorge, escrevo uma carta onde, de forma abreviada, falo da mina anticarro e da morte do condutor que não queria viajar de noite.

Mal sabia eu que se iria iniciar uma troca de correspondência que durou largos meses. O que me surpreendeu na carta que recebi, dias depois, do Sr. Jesuino Jorge, do Monte da Cabrita, Santana da Serra, concelho de Ourique, era a pretensão que me pareceu mórbida: o pai pedia-me insistentemente que lhe descrevesse o sofrimento e os últimos momentos do seu filho, sem faltar à verdade. Vim a aprender que é um pedido natural de quem não viu, não acompanhou, o desaparecimento físico do ente querido. Prometi visitá-lo um dia, faltei à promessa, a essa e a outras ainda mais graves: por exemplo, nunca visitei, nunca mais soube do paradeiro do Alcino Barbosa, que me fora tão devotado.

Estou no meu abrigo, é mais uma noite suave onde os coágulos de sangue nos meus joelhos e nos braços me impedem de dormir. Arrastando-me até à secretária, a pretexto de escrever ao Carlos Sampaio, arremedo uma prosa poética:

Efeméride: seis da tarde quando a formiga sacode a pólvora.
No fragor, sangue e alabastro nos olhos espalmados, vazos.
Seis da tarde à medida de um potro selvagem que soube ludibriar
o corno da morte. Ao sacudir a pólvora, abriu-se uma cratera
que engoliu feridos e mortos, todos inocentes.
Assim chegou o Outono da doce vinha, aqui uma época seca.
Aprendi com esta efeméride: pelas seis da tarde, Deus estava na lua,
para uns, a fortuna era uma rosa de betão, momentos de perdição,
para mim a fortuna tornou-se vida quando Cherno Suane
regressou à vida nestes trópicos de fúria e fetos aborígenes.
Deus seja louvado.


Fecho o aerograma, venho à porta do abrigo ver o céu, todo estrelado. Depois parto para Bissau. Ainda não sei, vou ser tratado por um médico oftalmologista açoriano, que se tornará num grande amigo. E até irei estudar um pouco da história da Guiné. Por favor, sigam comigo até Bissau.

______________

Notas de L.G.:

(1) Vd.posts de 9 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2251: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (8): Cartas que levam saudade(s) das terras e das gentes do Cuor

(2) Vd. também sobre este episódio, os seguintes posts:

24 de Junho de 2006> Guiné 63/74 - P904: SPM 3778 ou estórias de Missirá (3): carta a Alcino Barbosa, com muita intranquilidade (Beja Santos)

24 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P905: A morte na estrada Finete-Missirá ou um homem com a cabeça a prémio (Luís Graça)

26 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P911: Uma mina para o 'tigre de Missirá' (Luís Graça)

(...) Era voz corrente que o Beja Santos, conhecido entre os seus camaradas milicianos como o tigre de Missirá, tinha a cabeça a prémio no regulado do Cuor... Exagero ou não, o próprio Beja Santos reconhece publicamente este facto (...) (Vd. post de 24 de Junho de 2006):

A 15 de Outubro devíamos ter regressado mais cedo. O Comandante local do PAIGC, Corca Só, já me tinha ameaçado de morte, tendo mesmo deixado um bilhete na estrada. Saímos tardíssimo de Finete, o sol a cair a pique, como acontece nos trópicos (...).

Mário: Não foi a 15, mas sim a 16 de Outubro de 1969, como já ficou esclarecido entre nós. Na lista dos mortos do Ultramar, da Liga dos Combatentes, é também esta a data da morta do Manuel Guerreiro Jorge.

Na história da CCAÇ 12, também consta essa data:

"Registe-se ainda a intervenção do 2º GR Comb que, com o Pel Rec Inf da CCS [do BCAÇ 2852], foi em socorro duma coluna do Pel Caç Nat 52 que em 16 [de Outubro de 1969], já ao anoitecer, caiu numa emboscada com mina A/C comandada, no itinerário Finete-Missirá, próximo de Canturé, sofrendo um morto e três feridos graves".

O mais importante é que o Corca Só não te levou para Madina/Belel o teu escalpe. E hoje estás vivo, e está entre nós, partilhando connosco as alegrias e as tristezas de um tempo e de um espaço que nos coube em sorte, nos nossos verdes (e loucos) vinte anos... Mas sei do que falas: ser vítima da explosão de uma mina anticarro é uma situação-limite por que nem todos passaram:
2 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXIX: E de súbito uma explosão (Luís Graça)
23 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCV: 1 morto e 6 feridos graves aos 20 meses (CCAÇ 12, Janeiro de 1971) (Luís Graça)

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