quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Guiné 63/74 - P2294: De Madina para Missirá... com amor: a mina da despedida (Luís Graça / Humberto Reis / Beja Santos)

1. Na véspera de sair do destacamento de Missirá, com os seus homens do Pel Caç Nat 52 - para ser colocado em Bambadinca, sede do BCAÇ 2852 (1968/70) - o Alf Mil Mário Beja Santos é vítima de uma mina anticarro, no percurso de regresso a casa, na estrada Finete-Missirá, perto de Canturé... Ele e mais duas secções (1)...

Não foi às cinco na tarde, como no trágico poema de Garcia Lorca - que vocês podem ler (e reler, de preferência em voz alta) no blogue do nosso amigo e camarada João Tunes, em post já antigo de 5 de Março de 2005, Água Lisa (2) - , mas já ao anoitecer, no Cuor, a norte do Rio Geba, na Guiné, às 18h, do dia 16 de Outubro de 1969...

Diz a lenda que a mina era para o Beja Santos e trazia um bilhete do Corco Só, o comandante da base do PAIGC em Madina/Belel... Nunca ninguém leu o alegado bilhete, pregado numa árvore e que se terá volatizado... Mas se o Corca Só fosse um verdadeiro cavalheiro e conhecesse os romances e/ou os filmes da série James Bond - o que era de todo improvável - teria escrito, ao melhor estilo da luta de libertação, o seguinte bilhete: De Madina para Missirá... com amor (1).

Como regra (de outro) da nossa tertúlia e do nosso blogue, não fazemos juízos de valor sobre o(s) comportamento(s) de cada de um de nós, enquanto militares ou combatentes. Um camarada não pode ser juiz de outro camarada. Limitamos-nos aqui a narrar, a reconstituir os factos, a colar os pedaços das nossas memórias fragmentadas (e ainda doridas)... Sobre as peripécias desse trágico dia, trocámos alguns e-mails:


1. Mensagem de L.G., para o Humberto Reis, com data de 16 de Novembro último:

A mina em que o caiu o Beja Santos, a 16 de Outubro de 1969, marcou-nos a todos. Foi à hora de jantar... Sei que organizámos uma coluna de socorro que atravessou a bolanha de Finete, o teu (e na altura meu) 2º Gr Comb da CCAÇ 12 , mais os gajos do Pel Rec Info... Não sei se o furriel dos morteiros também foi... Houve vários voluntários... Eu tenho ideia de ter saído à noite convosco, mas já não posso jurar...

A tua foto [do Unimog destruído] (1) só poderia sido tirada no dia seguinte, por razões óbvias: estás tu e o Carlão, mais um dos nossos nharros... Sei que a viatura ficou armadilhada... Era um 404 ou ou 411 ? Faço sempre confusão... O Beja Santos diz que era um burrinho, e pela foto parece que era...

Ele omite a coluna de socorro que partiu de Bambadinca nessa noite, depois do jantar... Acho que ficámos lá, em Finete, e voltámos no dia seguinte... Os feridos só podem ter sido evacuados na manhã seguinte... Diz-me de que é que te lembras... O Tony também deve saber... Vou tentar despertar-lhe a memória... Ao Fernando Calado também é altura de lhe abrir o bico, até por que ele é citado pelo Beja Santos... Fico a aguardar o teu depoimento, e já agora o do Levezinho e do Calado... A propósito, republiquei a carta de Bissau ao Tony (que eu não sei se ele alguma vez leu, no blogue)(2).


2. Resposta, com data de hoje, do Humberto Reis

Luís: De facto foi o 2º Gr Comb [da CCAÇ 12] que atravessou a bolanha de Finete à noite, quando se soube do que tinha acontecido. Aliás lembro-me de alguém, se calhar até fui eu, ter feito uma hora antes, um comentário do género "o Beja Santos é maluco", pois ia sair de Bambadinca para Missirá já de noite.

Terá ido alguém da milícia de Finete connosco até ao local do acidente e ficámos lá toda a noite a dar de beber aos mosquitos e regressámos de manhã. O condutor morreu durante a noite em Finete.

Já não me lembro como é que a viatura veio para Finete. Julgo que era um 411, o burrinho, o mais pequeno que tinha motor diesel (o grande, o 404, era a gasolina).

Julgo que o furriel dos morteiros, o Lopes de Angola, não foi. Ele foi quando num domingo à noite, estávamos a jantar na messe e pensámos que a ponte estava a ser atacada, mas afinal era Amedalai (Já aqui contei esse episódio em que fomos vários vestidos à civil, que era como estávamos a jantar, e as viaturas com os condutores e algumas praças apareceram automaticamente à porta da messe, já prontas a marchar sem ninguém os ter chamado. A isso chama(va)-se ser camarada).

Aquele abraço

Humberto Reis


3. Comentário de L.G.:

Humberto: Eu sei que isto é a pequena história, a petite histoire, como dizem os franceses... E que os historiadores, oficiais ou oficiosos, irão ler, por cima da burra, com condescendência, sobranceiria, desprezo, as coisas que hoje escrevemos... É a história com h pequena, mas é nossa...

Dizes bem: isso era ser camarada, sem mais adjectivos, sem pompa nem circunstância... Fizemos isso [, nós, a CCAÇ 12 e o Pel Rec Info, ] pelo Beja Santos e pelos seus nharros, como ele e o Pel Caç Nat 52 fariam o mesmo por nós e pelos nossos nharros...

A aparente omissão desta coluna (imediata) de socorro, na narrativa do Beja Santos (1), é natural e compreensível: a nossa memória é selectiva, de resto o Mário não tinha cabeça para tudo o mais que se passou a jusante e a montante da explosão da mina...

Obrigado, mais uma vez, pelo teu oportuníssimo esclarecimento... Parte da tua estória bate certa com a minha...

Um abração. Luís


4. Comentário (final) Beja Santos:

Assunto - Repor a verdade!

Luís e Humberto: No episódio da mina de Canturé refiro explicitamente que recebi uma tocante solidariedade de Bambadinca, o Cunha Ribeiro foi determinante para pôr tudo em movimento, parti imediatamentre com o David Payne para Finete, vocês vieram depois, com o Reis sapador.

A viatura era um 404, indiscutivelmente, vinha carregado com toneladas de material, felizmente, senão a desgraça teria sido muito maior.

Sim, fui maluco e irresponsável, saindo àquelas horas para Missirá. Essa culpa ninguém ma tira!

Um abraço, Mário.

_________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 16 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2270: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (9): E de súbito uma explosão, uma emboscada, um caos...

(2) Vd. post de 14 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2264: Blogue-fora-nada: O melhor de... (3): Carta de Bissau, longe do Vietname: talvez apanhe o barco da Gouveia amanhã (Luís Graça)

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