sábado, 13 de dezembro de 2008

Guiné 63/74 - P3615: Histórias de um condutor do HM 241 (António Paiva) (1): Corrida com triste fim

1. Mensagem do nosso camarada António Paiva, ex-Sold Cond no HM 241 de Bissau, 1968/70, com data de 30 de Novembro de 2008, contando uma história que esperamos seja a primeira de muitas.

2. Corrida com triste fim
António Paiva

Rompe a manhã, como tantas outras, daquele domingo de 26 de Abril de 1970.
Muitos acordam, só com uma ideia em mente… ver o jogo. Soltar de dentro de si, naquele dia, um grito de alegria e felicidade, que o tempo de comissão lhes ia comprimindo.
Às 15 horas, ia realizar-se o jogo entre Clube Ténis de Bissau e o Sporting Clube de Braga a contar para a Taça de Portugal, era a final, no campo do UDIB sito em Benfica.
Eu não ia, mas um condutor que fazia serviço à Base, das 13 às 19 horas, pediu-me na véspera para eu lhe fazer o serviço, ele queria ir ver o jogo, não lhe tirei esse prazer, só lhe disse:

- Vai descansado, à volta pagas uma cerveja.

Depois de almoço, pelas 12,30, pego na ambulância e sigo para a Base a render o outro condutor que lá se encontrava desde as 7 da manhã. Na Base faziam-se 2 turnos todos os dias, das 7 às 13 e das 13 às 19. Lá chegado, estacionei a ambulância no sitio habitual e fui até ao bar, não sei se beber uma bica ou uma cerveja. Podíamos lá estar, porque assim que viesse uma evacuação éramos informados pelo altifalante.

Quando lá cheguei, reparei que faltavam 3 avionetas de alerta, se a memória não me atraiçoa era assim que se dizia, logo concluí que ia ter trabalho.

Por volta das 14,30, mais ou menos, sou alertado para a chegada de uma avioneta com evacuação. Dirigi-me ao local onde ela tinha parado, e é-me entregue uma menina de 7 anos. Quem a vinha a acompanhar diz-me:

- Condutor, o tempo é pouco, já sabe o que tem a fazer.

Arranquei, levando comigo uma criança em sofrimento que tinha sido atropelada. Rolei o mais rápido que pude para o Hospital Civil. Ao chegar a Teixeira Pinto, 1.ª rotunda com esse nome, e vejo a multidão que se encontrava em Benfica, junto ao campo do UDIB, a tapar a rua toda, eu respirei fundo… ó Deus. O sinaleiro, que estava no seu pelourinho, penso que saltou…, a multidão abriu alas, lembrou-me quando o mar se abriu nos 10 Mandamentos, sempre em frente, praça do Império, Santa Luzia e Hospital Civil.

Começa o inesperado. Estaciono onde devia para levar a menina para dentro, mas que tristeza, não se encontrava ali ninguém que me desse uma ajuda para levar a maca e sozinho era impossível. Entre 5 a 10 minutos depois, aparece uma rapariga que me ajudou a levar a maca com a menina.
Azar a mais, o médico não estava. Perguntei por ele e dizem-me que deve estar no 1.º andar. Subo a escada de 2 em 2, passado algum tempo lá o encontro. Viemos para baixo directos ao posto de socorros, entramos… O Anjo tinha subido ao Céu.

Senti uma pancada no peito, lágrimas nos olhos, como era linda a menina.
Revoltei-me, não sei se comigo próprio ou com o sistema, minha missão não tinha sido perfeita. Onde errei?

Ao chegar cá fora, o que não estava à espera, para me prestarem homenagem tinha 2 cálices de sangue venoso transportados na bandeja que se encontrava estacionada atrás da ambulância, um alferes e um soldado da PM. Diz o alferes para mim:

- Então condutor, vem doido ou quê? Depois da porrada que vai apanhar nunca mais corre.

Só lhe disse:

- Corri para salvar uma criança, acabou por morrer.

Ligou pouca importância, mas depois de tirar os apontamentos necessários para me oferecer a medalha, deixou-me ir embora.

Voltei para a Base. No fim do serviço voltei para o Hospital, fui ter com o médico de dia e contei-lhe o ocorrido.

No dia seguinte, o Director, Dr. Felino de Almeida, mandou-me chamar, contei-lhe o sucedido e ele mesmo tratou do assunto, não levando castigo.

Agora dirijo-me aos Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras

Os pilotos, nunca chegam a saber como os evacuados acabam, mas este recorrendo-se da sua caderneta de serviços, saberá o triste fim duma evacuação que ele começou.
Será que chego a saber quem foi esse piloto?

Um abraço a todos
António Paiva
______________

Notas de CV:

(*) Vd. postes de:

20 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3486: Tabanca Grande (98): António Paiva, ex-Soldado Condutor no HM 241 de Bissau, 1968/70

24 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3511: O meu baptismo de fogo (23): Uma vacina para o enjoo... (António Paiva)

1 comentário:

Anónimo disse...

Ao acabar de ler esta confissão, do cumprimento do seu dever com zelo, na tentativa de salvar uma jovem vida, não posso deixar de enaltecer e elogiar o camarada António Paiva que estando em Bissau, como o Camarada Matos acaba de referir no seu trabalho posterior tinham "outra visão da guerra", esforçou-se como os que tinham de cumprir no mato com as armas na mão.
Mas não há bela sem se não e, lá temos o comportamento dos brilhantes defensores da ordem, não pública, mas militar que, certamente todos engraxadinhos e bem aperaltados, burocráticamente lá faziam "a sua guerra".
Um grande abraço Paiva
Jorge Picado