sábado, 18 de agosto de 2007

Guiné 63/74 - P2058: Estórias do Zé Teixeira (21): Fermero ká tem patacão prá paga, toma minha mudjer (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

José Teixeira, 1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , (1968/70). Sendo enfermeiro militar, proporcionou ajuda sanitária à população das tabancas por onde a sua Companhia passou. Dedicando todo o seu saber e desvelo à causa que tomou sobre os seus ombros, viveu estórias tocantes como esta.


Fermero ká tem patacão prá paga, toma minha mudjer

por Zé Teixeira (1)

De O meu diário

1969, 5 de Janeiro

Estou de volta a Mampatá , após uma coluna (de ida e volta) a Buba. Se todas as colunas decorressem como esta, não me importava de fazer colunas. Cerca de 400 homens em movimento.

Admiro esta população. Quando souberam que eu ia a Buba, vieram despedir-se de mim. As bajudas abraçavam-me… sei lá. Dá gosto viver com esta gente.

1969, 13 de Janeiro

Chamarra é o meu novo hatitat desde ontem. A despedida de Mampatá foi triste e chocante. Custou-me imenso deixar aquela gente que me ensinou que o africano é homem que sendo compreendido e ajudado, se dá numa amizade sincera. Muitos pediam que eu ficasse (*), outros para ir até lá, as bajudas beijavam-me, etc., etc...

Ao reler o diário que teimosamente fui escrevendo em cima dos acontecimentos, com o objectivo concreto de extravasar para o papel o que me ia na alma naquele exacto momento, esbarrei com estes dois pequenos textos, os quais posso afirmar encerram ou definem, quanto foi para mim agradável viver meio ano no convívio com aquela simpática gente, num “oásis” plantado em pleno teatro onde se praticava a mais dura guerra de guerrilha.

Passados que são trinta e nove anos, o meu pensamento mergulhou de novo em Mampatá Forreá. Pequena tabanca no sul da Guiné-Bissau situada a cerca de cinco quilómetros de Aldeia Formosa (Quebo). Cruzamento de quatro estradas (picadas), qual delas a mais apetecível para se passear acompanhado, no mínimo, com a G3 bem abastecida e em grupo destemido e disposto a vender cara a vida.

Não havia muito por onde escolher: uma direccionava-se para Gandembel, passando por Chamarra e Ponte Balana, continuando depois pelo corredor da morte até Guiledje.

Outra corria para Buba, passando por Uane (destruída e queimada pelo IN, onde tinham sido apanhados e feitos prisioneiros cinco camaradas em Maio último), Nhala e a temível bolanha dos passarinhos na Lagoa de Cufada.

Uma terceira, que lançando-se da direcção de Colibuia e Cumbijã, tabancas abandonadas recentemente, se partia em duas seguindo uma para Guiledje e outra para Buba, passando por Sinchã Cherno onde, quinze dias antes, eu vivera o drama de não poder valer a um camarada que partiu para o eterno aquartelamento, para desespero de todos nós.

A última, embora tivesse o seu fim em Bissau, passando por Aldeia Formosa, Saltinho, Xitole e Bambadinca, ficava-se por Aldeia Formosa, desde o fatídico dia 24 de Junho, em que o IN atacou Contabane, incendiou a tabanca, pondo a tropa e a população em fuga com a roupa que tinham no corpo.

Muitas cenas vividas me vieram à memória. Vou começar pela primeira.

Recordo a minha tímida chegada, integrado no 3.º Grupo de Combate para aqui destacado temporariamente em Agosto de 1968. Tinha como responsabilidade garantir a assistência, como enfermeiro, aos militares meus camaradas, ao pelotão de milícia e à população.

A forma como a população nos acolheu foi excelente. Tratava-se de uma pequena tabanca onde os habitantes não chegariam aos quinhentos, sem quartel, ficando os militares em abrigos construídos artesanalmente com troncos de madeira espalhados em redor da aldeia, para protecção da mesma.

Recordo o milícia que se dirigiu a mim, logo à minha chegada, dizendo que o pai “estava manga de doença”, “bariga e na dê” e “bariga ramassa” – suponho que me queria dizer que o pai tinha muitas dores de barriga e os intestinos presos.

Como ainda estava presente o enfermeiro que iria render (isto de aprendiz de enfermeiro passar a médico às três pancadas, não foi fácil para mim), pedi-lhe apoio para este problema e tive como resposta: - Este gajo é um chato. Tens ali uns comprimidos. Dá-lhe apenas um por dia. Não lhe dês o frasco, pois se o fizeres no dia seguinte está aqui de novo com a mesma ladainha e tu nãos tens remédio para o calares.

Cumpri as instruções do colega e o homem lá foi tirar as dores ao pai. Coitado.
Manhã cedo, lá estava o Suleimane: - “Fermero, parte quinino pra minha pai. Bariga na dê”.

Armei-me em xico esperto e acompanhei-o à morança para ver o pai, qual médico sabichão, sem conhecimentos, sem instrumentos, apenas com um frasco de pírulas castanhas que eram recomendadas para tirar dores em geral e nos pós-operatórios, aconselhando uma toma mínima de três por dia. Medicamento milagroso, cujo nome, por traição da memória, não consigo relembrar, mas que muito me ajudou a debelar dores a brancos e a pretos, que nos dezassete meses que se seguiram me procuraram, à procura de remédio para as suas maleitas, na ausência quase permanente de um médico.

Após uns minutos de difícil conversa, dado que o velho doente se exprimia apenas no seu dialecto, o filho palrava algumas palavras em português à mistura com crioulo que para mim ainda era chinês e eu fazia perguntas em português de Portugal, consegui deduzir que o homem não fazia o saneamento da tripa cagueira há mais de oito dias. A barriga parecia uma dura pedra. Ao fazer a apalpação como tinha visto o médico a fazer, provoquei a saída forçada de uma estrondosa e mal cheirosa bomba de gases, que por uns instantes perfumaram o ambiente, valendo-nos a porta que não havia e o telhado que era de capim, para desanuviar o ambiente.

Este acontecimento, acompanhado pela tomada de um dos comprimidos milagrosos, gerou temporariamente um aliviar das dores do velho, mas isso para mim não era solução.
Dirigi-me ao comandante do destacamento, o alferes José Belo, que depois de me ouvir atentamente, concluiu comigo que era urgente o doente ser visto por um médico, coisa rara por aquelas bandas, pelo que havia de ser pedida uma evacuação urgente, dado que a avioneta do correio só viria na Sexta-Feira e estávamos na Segunda.

Uma mensagem rádio para Aldeia Formosa, dali para Buba, suponho, e de lá para Bissau, com retorno a tentar saber da razão da urgência em pedir uma evacuação para a população. Resposta do alferes Belo: - Sou alferes atirador e não médico, o meu enfermeiro diz que não se responsabiliza, eu também não.

A meio da tarde recebemos novo rádio a comunicar a vinda da avioneta e lá vamos nós com o velho, a caminho de Aldeia Formosa, sem as devidas e normais cautelas, próprias de quem está em zona de guerra, sem azar, por aquele dia.
Embarcou pai e filho com destino ao hospital de Bissau, ficando eu aliviado em consciência e livre de um chato que deixou de me pedir “mesinho para pai di mim”.

Uns dias depois o filho regressou. Pude saber que o pai fora operado de urgência e estava recuperar bem.
Dois meses depois regressa o velhote, com outra cara, sem dores e até ao meu afastamento de Mampatá, nunca mais deu problemas.

Foi uma entrada de leão a minha, em Mampatá, por força das circunstâncias, mas que de algum modo marcou toda a relação entre a população nativa e a tropa, nos seis meses que por ali estacionamos. Ficou para mim o melhor quinhão, naturalmente. O Suleimane, quando o pai regressou curado, dirigiu-se a mim para me agradecer do seguinte modo: - ”Fermero, ká tem patacão prá paga. Toma minha mudjer. É tua mudjer”.

... E ficamos os dois abraçados.

Zé Teixeira
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Nota do autor

(*) Soube já em Chamarra que o alferes da milícia e chefe de tabanca Aliu Baldé e o sargento da milícia Amadu foram a Aldeia Formosa pedir ao Major Azeredo, para eu ficar em Mampatá, enquanto houvesse tropas da minha companhia no Sector – tinha ficado o 2.º Grupo de combate em Chamarra.

Como tal não era possível dado que em Mampatá tinha sido colocado um segundo pelotão de milícia com um africano como enfermeiro, fui então colocado na Chamarra com prejuízo para o meu colega, que foi com a Companhia para Buba, montar segurança na construção da estrada, tendo eu sido mandatado para ir uma ou duas vezes por semana a Mampatá atender e assistir a população.
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Nota do editor:

(1) Vd. último post desta série> 12 de Agosto de 2007> Guiné 63/74 - P2042: Estórias do Zé Teixeira (19): A vaca que deu sorte.

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