1. Mensagem do Raul Albino, ex-Alf Mil, da CCAÇ 2402
Caro Luís e editores,
Aqui vai o texto nº 7 das Memórias de Campanha da CCAÇ 2402 (1). Por acaso, não pensava enviar este episódio, mas como o Luís me pediu no último mail que me enviou, que relatasse alguma coisa sobre o destacamento na Ilha de Jete, faço-lhe hoje a vontade.
Um abraço a toda a equipa,
Raul Albino
Destacamento na Ilha de Jete
1º Pelotão no destacamento da Ilha de Jete
No dia 24 de Setembro de 1968, seguiu o primeiro Grupo de Combate reforçado com alguns elementos dos outros grupos, a ocupar a Ilha de Jete, comandado pelo Alferes Brito, com a missão de montar instalações para as tropas e captar a população da área através de assistência directa às gentes nativas e contactos com os seus chefes.
Esta decisão estratégica de destacar este grupo para Jete reduziu substancialmente a capacidade operacional da restante companhia sediada em Có, sobrecarregando os restantes grupos com as actividades militares atribuídas à Companhia. Este enfraquecimento da defesa de Có poderia ter causado sérios reveses às nossas tropas, como o demonstra o segundo ataque ao quartel de Có, um dos mais violentos de toda a nossa campanha na Guiné, que só por sorte não teve consequências mais dramáticas (Ver 2º Ataque a Có em 12/10/68). Estes militares de ocupação da Ilha de Jete, voltariam a Có no dia 1 de Dezembro de 1968, com a sua missão cumprida.
À esquerda, o Nelinho com os galões de alferes e o furriel Bragança
Fotos e legendas: © Raul Albino (2007). Direitos reservados.
O nosso soldado Manuel Vicente Fernandes, mais conhecido por Nelinho, cedeu-nos algumas fotografias do tempo em que por lá permaneceu. Numa delas o Nelinho apresenta-se com os galões de alferes, pedidos ao Alf Brito para tirar a fotografia, fazendo a família pensar que ele tinha sido promovido. Brincadeiras inofensivas ... Escreveu o Nelinho juntamente com as fotografias que enviou à família:
“Ofereço à Minha Querida Mãe para ver nos estados em que a gente se encontra a dormir, pois como está a ver, é nessa barraca que aí vê onde nós dormimos quatro e a nossa miséria é essa que se vê. Adeus.”
Depoimentos de quem lá esteve
Os depoimentos que se seguem, mantiveram o texto original, só corrigidos alguns erros gráficos essenciais. Preferi assim, para manter a maneira de se expressar dos autores, mesmo à custa de alguma forma de expressão menos perfeita.
Texto da autoria de José Manuel Ferreira:
O dia mais inesquecível, não sei a data, foi na véspera de ir para a Ilha de Jete em que o Capitão Vargas Cardoso me informou que no dia seguinte ia para a tal ilha. Eu não tinha roupa, pois tinha dado a lavar à minha lavadeira de nome Amália. Então não estive com meias medidas, saí pela porta de armas sozinho, sem imaginar o perigo que corria desarmado, pedi ao militar para me deixar sair e saí sem dar conhecimento ao nosso capitão. Fui à procura da casa da Amália no meio das tabancas e da população nativa para trazer a roupa. Só depois de entrar no quartel é que reflecti no tremendo disparate que tinha acabado de fazer. O então capitão nunca chegou a saber. Acabei felizmente por não ser capturado pelos turras, mas não escapava de uma porrada.
José Manuel Ferreira
Texto da autoria de António Fangueiro da Silva, mais conhecido por Silva Condutor:
O primeiro pelotão foi destacado para a Ilha de Jete com mais alguns elementos de outros pelotões, ao todo eram trinta e seis homens. Esta ilha tinha poucos habitantes e era a base da raça Papel que eram pescadores e da raça Fula. Aí não havia guerra, mas construímos uma base com abrigos, utilizando como materiais as palmeiras, terra e muita força dos nossos delgados braços, um traçador de serrar e um machado que era manobrado por todos. No pelotão tínhamos o lenhador, o soldado Paiva, que tinha uma força fora do comum. Os abrigos foram feitos para todas as secções e comando, mas enquanto estes não se encontravam prontos, dormíamos em tendas de oito pessoas e colchões pneumáticos. O Alferes Brito, que era o comandante do destacamento, recebeu ordem para ir à outra ilha para trazer a população que quisesse vir para a nossa. Íamos ao porto que era uma parte da ilha que tínhamos armadilhado com granadas para o inimigo não entrar, no entanto, tivemos de retirar as armadilhas para podermos ir à outra ilha a pé aproveitando a maré baixa. Como entretanto eu disse que a maré demorava seis horas a vazar e seis horas a encher, ficando nós durante esse período à mercê do inimigo, ele pensou então melhor e não fomos, tendo assim de armadilhar o porto outra vez. O nosso sistema de comunicação era por meio de rádio, sendo a energia fornecida por um gerador Manual que era da guerra de 1914, tendo de dar à manivela para gerar corrente. Quando a malta precisava do rádio, normalmente os acumuladores estavam em baixo e dávamos à manivela e nada, ninguém respondia do comando da ilha que pertencia a Teixeira Pinto. Numa das vezes que não tínhamos rádio, o barco que nos trazia os mantimentos também avariou e não veio durante oito dias, não tendo nós de comer e beber. Esta falta de contacto levou o Alferes Brito a ter receio de importunar o comando. Este acontecimento levou a que eu tivesse uma chatice com o Alferes, dizendo-lhe que tinha de fazer rádios, assim não dava, pois estávamos a passar mal, ao ponto dos nossos lábios com sede se assemelharem aos dos pretos, todos inchados e gretados. Ele entendeu e disse ao Vito para fazer os rádios, mas eles não respondiam. Em Có ouviram o rádio, tendo o Capitão Vargas mandado o padeiro fazer trinta e seis pães e, como estava lá uma avioneta, o capitão pediu para eles nos mandarem dessa forma. Quando a avioneta pairou no ar, lançou os sacos que pareciam sacos de correio, mas o nosso desejo era que fosse pão. Quando os sacos se aproximaram vimos que eram maiores que os sacos de correio e exclamámos que era pão e fomos todos a correr, de forma a cada um ser o primeiro, não aguentando mais a fome. Viemos então embora para Teixeira Pinto e tivemos de receber cuidados médicos. Nesta ilha havia um negro que era cabo e mandava na população, ele tinha dezasseis mulheres, tendo eu curiosidade de saber como era a vida dele, disse-me que ficava uma semana com cada uma. Depois disse-me que ia falar com o Alferes, pois os soldados andavam com as suas mulheres, respondi-lhe que de nada adiantava, corria o risco de algum soldado lhe bater, decidiu então nada dizer.
Silva Condutor
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Nota dos editores:
(1) Vd. post anteriores:
15 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1282: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (1): duas baixas de vulto, Beja Santos e Medeiros Ferreira
6 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1343: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (2): O primeiro ataque ao quartel de Có, os primeiros revezes do IN
12 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1516: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (3): Combatentes, trolhas e formigas bagabaga
13 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1658: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (4): Uma emboscada em Catora e um Lobo Mau pouco predador
28 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1790: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (5): Protecção a uma coluna logística Bula/Có
31 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P2016 : História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (6) : O grande ataque a Có, em 12 de Outubro de 1968
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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