Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > Candamã > CART 2339> 1968 > O Alf Mil Torcato Mendonça
Texto e foto: © Torcato Mendonça (2007). Direitos reservados.
1. Mensagem do Torcato Mendonça;:
Caro Luis. Julgava-te de férias. Porventura estás e o post do Poilão foi inserido por algum dos nossos Camaradas Co- Editores. Pelo sim pelo não espalhei os endereços. Vão navegando ciber espaço fora e levem a carta, não a Garcia… mas ao Luis, ao Virgínio, ao Carlos ou a quem a apanhar.
Efectivamente estas árvores tinham um significado especial para os guineenses. Qual? Não me lembro, mas envidarei esforços a sua procura!
Porque escrevo?! Porque os poilões abrigavam gentes, protegiam-nas, tinham eventualmente algo de sagrado e, isso afirmo e relato no texto que te envio, recebiam nos seus braços ou ramos as descargas da fúria dos Céus. Se tiveres tempo passa os olhos… digo-te, caro amigo, nunca tinha ouvido tamanho urro nesse encontro e nessa explosão de afectos. Nunca mais montei, em vida minha, um fornilho.Nem montarei…fornilhos, off course … o resto, bem.
Este texto está nas Estórias do José... Aquele abraço forte a um ou aos três e que em trovoadas tenham sempre um poilão, ou algo semelhante, a proteger – vos.
Um abraço
2. Estórias de Mansambo (7) > Eleições à vista, por Torcato Mendonça (Subtítulos do editor L.G.)
Com Setembro [de 1969 já bem lançado, sentia-se no ar um sentimento, um olhar diferente, um novo tema nas conversas, quiçá uma nova ou novas preocupações. Estávamos já no vigésimo mês de comissão. Fim quase á vista.
Recebi a ordem e não a esperava. As ordens cumprem-se. Os apetites, os nossos desejos, as nossas vontades, pouco ou nada têm a ver com as ordens recebidas. São-nos transmitidas, aceitamos e iremos, depois, transmiti-las a outros. Foi o que fiz. Reuni com o Grupo e disse:
-Amanhã vamos para Candamã. Preparem-se para estar, lá e em Afiá, cerca de um mês, ou acontece o mesmo da última vez que lá estivemos.
Na última vez, que para lá tínhamos ido, disseram-nos ser por poucos dias. Estivemos quase um mês. Foi demasiado duro. Falta de mantimentos, de roupa, de tudo que nos desse o mínimo de condições de vida. Ainda por cima estávamos em plena época de chuvas. Três breves episódios dessa estadia:
Salada de beldroegas, pu erva roubadas aos cabritos
A falta de tabaco e de tudo, levou-nos a quebrar regras. Um caçador de confiança e devidamente instruído, levou um bilhete ao Capitão Jerónimo, da 2405, em Galomaro. Dois dias depois aí estava ele, de volta, com tabaco L M e outros artigos. Festa e partilha do material recebido.
O Manuel, alentejano de Odemira, descobriu na pastagem dos cabritos uma erva parecida a beldroegas. Apanhou e veio mostrar-me. Os meus conhecimentos de botânica eram insuficientes. Reuniram-se dois ou três entendidos e sentenciaram:
- São beldroegas, pelo aspecto e sabor.
Perante isto declarei que os cabritos se lixassem e as ditas fossem em salada transformadas. Ao princípio eram três ou quatro a consumir o petisco. Depois, se não eram todos…lastimo. Salada para vários dias. Até que o vegetal se finou, os cabritos já tinham ficado sem pastagem naquela zona e, agora nós sem a deliciosa salada.
Spínola e o moral das tropas
Uma manhã sente-se o som de um helicóptero. A confusão habitual, ordens de: monta segurança, veste roupa que é o Spínola… depressa aterrou o aparelho… efectivamente, era o General e o séquito habitual.
Apresentei-me, calçado com botas sem meias, calções que tinham sido calças cubanas, T-shirt outrora branca e um quico regulamentar. Haja Deus. Ao menos o quico. Acompanhavam-me militares com fardamentos, cabelos e barbas a precisar de melhor atavio e tratamento. O Comandante–Chefe conhecia a malta do mato… conversa breve… devíamos ter ficado cá uma semana e já lá vai quase um mês… Bateu com o pengalim na bota, olhou para o major Bruno, fixou-me e disse: - O moral é baixo? Eu respondi: sapador.
Um festival de fogo de artifício
Uma vez chegados a Candamã e Afiá, fizemos uma exaustiva inspecção á defesa. Tinham havido ataques fortes, principalmente em 30 de Julho a Candamã. Isso originou, posteriormente, operações com êxito na destruição da base IN, pelos Paras do COP 7 e militares da 2339,CCaç 12, Pel Caç. Nativos.
Reforçamos pois a defesa. Na última vez, que lá estivemos, utilizamos e, deram bom resultado a repelir o IN aquando dos ataques, granadas iluminantes de morteiro 60. Singelo contributo aos heróis do 1º Grupo da 2339, que sustiveram os ataques.
Desta vez resolvemos montar seis fornilhos de disparo eléctrico, dispostos em leque, virados para a hipotética zona, de onde vinham os ataques. O material fora o trazido de Mansambo. Avisámos a população: toda aquela zona junto ao arame farpado, acrescentámos outras para disfarçar, está minada. Perigo relativo mas…
Talvez, na segunda semana de Outubro, recebi uma mensagem da Companhia. Dia, talvez 10 ou 11, soldados…. indicava quais… abandonam esse e serão rendidos por igual número idos deste. Motivo: participação na votação para as eleições a 13 do corrente...
Ainda me perguntaram porque não ia (só votei em 25 de Abril de 75) e o que haviam de fazer… votem, bebam uns copos em Bafatá e etc…
Chegado o dia, vieram uns e foram os votantes. Creio que no dia seguinte, estávamos em época de chuvas, levantou-se tremenda tempestade. Chuva, trovoada a merecer abrigo rápido. Fui para a tabanca dos géneros, enfermaria e mais o que fosse preciso. Estávamos a conversar, de repente ouviu-se um estrondo enorme. Parecia que o céu desabava e a terra abanava. Seguem-se sons menores e o grito – ataque. Fuga para valas e abrigos, ligeira confusão, gritos, dois ou três militares caídos no chão junto á árvore grande. Ao longe, correndo na nossa direcção, a gritar, vinha o furriel Rei e outros. Mau. Alto e para o ataque.
Que tinha acontecido? Uma descarga eléctrica, enviada pelo S. Pedro, bate na árvore – que protegia a cozinha, posto de sentinela, o meu refeitório e escritório, etc – faz ricochete, ou gera um campo eléctrico, destrói a antena horizontal do rádio, desce e, depois de o queimar, vai pelos fios accionando, em simultâneo, os seis fornilhos. Por isso aquele tremendo barulho. No abrigo só estavam granadas de RPG2 e outras munições não eléctricas. As da Bazuca 8,9 estavam noutro abrigo ou em Afiá. Sorte a nossa.
Ferragudo, o ladrão cded chispes de porco holandês
Mas o pior estava para vir. Tínhamos três homens meios grogues. Dois, depois de ligeiro tratamento, recuperaram. Havia, no entanto, um que estava meio desmaiado. Era o Ferragudo, cozinheiro na tropa, pescador no porto de Portimão. Felizmente tínhamos um homem, o Barros, habituado a desmaios daquele género. Rápido, depois de abanar o Ferragudo, pediu:
- Tragam o azeite e uma colher.
Aparece o azeite e o Barros despeja, três ou quatro colheres do dito, goela abaixo do Ferragudo. Este estrebucha, joga as mãos á garganta, revira os olhos e urra. Pede ajuda o Barros. Levantam o doente. É prontamente agarrado, apertado e sacudido pela cintura. De repente dá-se o milagre. Vomita desalmadamente o cozinheiro glutão. Talvez dois ou mais chispes de porco holandês. Pancada nas costas, água goela abaixo e dá-se a recuperação. Eu assistia. meio incrédulo, a toda aquela cena.
O Ferragudo, ainda meio atordoado olhava-me. Apesar da vontade de rir, olhei para ele e disse:
- És um ladrão, roubas com a tua gula os teus camaradas, vai haver porrada, desaparece, só voltas próximo do jantar. Não há feijão com chispe. É indigesto ou não é, algarvio da porra?
Foi-se o cozinheiro pescador, ou vice-versa. Porrada não houve. Nenhum militar teve qualquer castigo, posto na caderneta, devido a castigo por mim dado.
Rimos e gozámos durante uns dias. Distracções singelas. Viver naquelas condições era difícil. Á noite nos abrigos, por debaixo, do que nos servia de leito, se não tínhamos cuidado as rãs cantavam o seu Sole Mio, a água caía ora nos pés, ora noutro lado. Dormia-se…o tempo passava lentamente… e o Império esfarelava-se!
Saímos de Candamã a 24 de Outubro [de 1969 ] e não mais voltámos. Apesar das más condições, principalmente na época de chuvas, recordo aquela gente com saudade.
____________
Notas de L.G.:
(1) Vd. posts anteriores:
14 de Março de 2007> Guiné 63/74 - P1594: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (1): A dança dos capitães
16 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1666: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (2/3): O Zé e o postal da tropa
25 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1785: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 239) (4): Burontoni, mito ou realidade ?
27 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1892: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (5): O Casadinho e o Bessa, os mortos do meu Gr Comb, os meus mortos
7 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1929: Estórias de Mansambo (6): Matilde
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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