sábado, 29 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3542: Memórias literárias da Guerra Colonial (11): Cristóvão de Aguiar na Biblioteca-Museu República. (José Martins)



O Alberto Branquinho, também escritor,  na assistência. Foto do José Martins


1.
Mensagem do José Martins,   dia 27 de Novembro de 2008 

 Como habitualmente, ao início do dia de trabalho, abri a caixa de mensagens do meu mail pessoal e encontrei uma mensagem do Cristóvão de Aguiar:

Caro Camarada José Martins: 

 Fico-lhe agradecido pelas referências elogiosas que tem feito ao meu livro "Braço Tatuado". É sempre agradável saber que alguém lê com acuidade um livro que nos pertence e foi escrito com sangue e muito suor. 

 Quanto ao número 666, claro que não existe nenhuma Companhia com tal número. Foi inventado por mim. Por duas razões. A primeira, porque, tratando-se de um livro de ficção, não gostaria de identificar a Companhia de Caçadores onde fui Alferes. Segunda, o número 666 é o número da Besta do Apocalipse, livro bíblico, que reflecte o caos, a guerra, e outros males que irão acontecer à Humanidade. Daí o adjectivo apocalíptico que se emprega na nossa língua para significar o que ficou dito. Deste modo, aproveitei a deixa para caracterizar a situação infernal em que estávamos metidos, identificando os comandantes como Besta 1 e Besta 2, etc... 

 Engana-se quem pensar que 'Braço Tatuado' é um relato fiel de uma guerra. Essa matéria pertence aos historiadores. Ao ficcionista apenas compete tornar o seu texto plausível, isto é, fazer crer ao leitor que determinado acontecimento se não ocorreu na realidade poderia tê-lo sido.

 A ficção é uma mentira para se acentuar uma verdade. Por isso, os nomes, no meu livro, são inventados, determinadas ocorrências lá narradas são, por vezes, uma mistura de vários acontecimentos, as personagens têm traços de várias pessoas que conheci, e assim por diante. Não foi meu intuito fazer história nem relatar o que na realidade aconteceu, mas tão-só tornar plausível (que poderia ter acontecido) as ocorrências em que eu e tantos outros nos vimos embrulhados. De qualquer modo, não se cria a partir do nada, mas a partir de uma realidade que se viveu ou desviveu. Quantas vezes um escritor descreve a realidade tal qual ela é (o que também não é fácil, porque entram factores subjectivos) e depois de vertida em texto ninguém acredita...

 Ora, a missão do escritor é fazer que o leitor acredite piamente no que foi escrito, mas que para isso tenha a realidade de ser torcida para parecer verdadeira. Mentir em ficção não é pecado, mas, sim, uma virtude... Claro que a sua investigação é muito meritória, mas os factos apurados pertencem a outra esfera, não a literária propriamente dita. 

 Ao menos fiquei a saber datas, nomes de operações de que já não me lembrava. O que me ficou gravado foi outra coisa muito pior, e esta pertence a outro reino... 

 Os meus agradecimentos e um abraço do Cristóvão de Aguiar 

 À tarde, pelas 19 horas estava na BMRR – Espaço Grandella em amena cavaqueira com o Cristóvão de Aguiar e o Alberto Branquinho, recebidos pelo sempre simpático José Paulo Sousa. Quando se deu inicio à “conversa”, pois que na sala se encontravam, além do conferencista e o anfitrião, os bloguistas Alberto Branquinho e José Martins, uma senhora que, vim a saber, ser açoriana e ter ido com o propósito de conhecer pessoalmente o Aguiar, um amigo dele que, nos idos anos da guerra se encontrava num seminário a estudar, e o nosso camarada Nuno Roque da Silveira, autor do livro “Um outro lado da guerra” e primeiro conferencista destes encontros. 

Posteriormente chegou uma senhora, que lecciona no ISCTE. A sessão iniciou-se com a exposição do Cristóvão de Aguiar (texto abaixo). 

GUERRA COLONIAL

Sou um dos milhares de cidadãos portugueses que pertencem à chamada geração da Guerra Colonial. Estive tentado a escrever o verbo no pretérito, mas, como tantos outros camaradas meus, ainda sofro, e sofrerei, as sequelas psicológicas que, durante os quase dois anos da minha estada no inferno da então chamada província portuguesa da Guiné, para sempre me machucaram a mente e o íntimo. Assim, a geração da Guerra Colonial só terminará quando o último ex-combatente cerrar os olhos ao mundo… Depois, talvez essa geração destruída, fique registada, em nota de pé-de-página, num capítulo da História do século XX português…

Existem, porém, milhares de outros que tiveram menos fortuna e continuam a padecer violentamente: os chamados deficientes das Forças Armadas – mutilados, cegos, doentes do foro psiquiátrico e orgânico… Muitos deles viram as suas vidas familiares desmanchadas, tornando-se em seres viventes cuja vida pouco sentido tem. E há ainda os milhares que tombaram na mata ao serviço de uma pátria apodrecida por um regime que, durante mais de quarenta anos, constituiu uma nódoa e uma desonra histórica.

Como escreveu um conterrâneo meu, já falecido, companheiro de República em Coimbra e camarada na Guiné, José Noronha Bretão (1), num livrinho intitulado "Três Tristes Tempos e o Regresso do Melro Preto". Passo a citar:

Esperávamos em silêncio
mastigando a memória das coisas
e a Morte claramente apercebida
aguardava o seu quinhão

Pensávamos:

Cada coice de Mauser no ombro
é uma carícia da Pátria agradecida.

Puta de Pátria que agradece aos coices.

De ambos os lados da barricada, a guerra colonial foi intensamente cruel e ainda está a sê-lo para muitas centenas, ou milhares, que por lá andaram a esmigalhar os melhores anos da juventude. Isto de se falar em terrorismo apenas do lado dos guerrilheiros tem muito que se lhe diga. As nossas tropas também o praticavam em grande escala e com muito engenho e sadismo. Sobre tudo isso, porém, era expressamente proibido falar. Havia ouvidos atentos à escuta, e existia medo, ignorância, e a censura a compor o resto do ramalhete, torcendo a verdade para construir a mentira oficial.

Nem sequer havia guerra, afirmavam os donos e cabecilhas do regime. Andávamos tão-só em missão de vigilância nas províncias ultramari­ nas, flageladas pelos chamados “turras”, e que, como se devem lembrar, constituíam (as tais províncias) o prolongamento natural da pátria, que ia do Minho a Timor, refrão patrioteiro, que então se entoava e que alguns ainda gostariam de continuar a solfejar.

Havia, pois, uma mantilha de silêncio caída sobre o que ocorria nas três frentes de batalha. Pouco ou nada se sabia. As razões são múltiplas e não serão despiciendas as que já apontei: censura, medo, vigilância da PIDE, desinteresse do povo em geral, que só lhe importava como passavam os familiares que por lá combatiam – adeus, até ao meu regresso – e, quanto à esmagadora maioria dos soldados, não sabiam, nem queriam saber, das razões que os haviam levado a ir matar e esfolar negros para um Continente que, segundo lhes martelaram desde a catequese da escola primária, constituía um património tão português como as suas aldeias da Metrópole – “Angola é nossa”- tocavam as bandas regimentais, nas cerimónias militares, por vezes acompanhadas por um coro de vozes tremelicantes de patriotismo…

Havia quem estivesse a par das causas da situação bélica em África: Intelectuais esclarecidos e muitos dos oficiais milicianos, saídos das Universidades directamente para as fileiras, alguns por castigo por terem intervindo activamente nas crises académicas de 62 e 69; os que haviam desertado antes que fosse demasiado tarde e seguissem para as cadeias políticas do regime; outros ainda que, mesmo na clandestinidade ou em plena guerra colonial, procuravam passar informações de todas as maneiras e feitios, que viriam a constituir matéria importante para a rádio “Voz da Liberdade”, aos microfones da qual Manuel Alegre desempenhou um papel relevante de informação e formação.

O silêncio, porém, era a regra e prolongou-se em demasia. Ninguém, por mais ousado politicamente, se atrevia, em público, a falar de guerra colonial. A primeira vez que ouvi gritar “abaixo a guerra colonial” foi numa Assembleia Magna da Academia de Coimbra, cuja ordem do dia era a greve académica que se realizou depois com tal êxito, que havia de abalar o regime. Mas, o estudante que deu aquele grito de alma, sincero e lancinante, foi depois admoestado pelos próprios companheiros, por ter dado razões aos elementos da DGS, infiltrados entre a multidão estudantil e que nos acompanhavam na gritaria de vivas e morras, para que ninguém desconfiasse da sua presença, o que não era muito difícil...

Até onde chegava a censura interior! Os jovens de hoje não poderão compreender essa atitude de uma prudência tal, que poderia, facilmente, confundir-se com cobardia…

Foi na poesia, e ainda durante no regime salazarista, que a guerra colonial principiou a ser “cantada” e denunciada. Os dois primeiros poemas conhecidos sobre a guerra colonial foram publicados por Fernando Assis Pacheco, no seu livro "Cuidar dos Vivos".

A seguir, Manuel Alegre e a sua "Praça da Canção", um dos mais sérios casos editoriais que neste país jamais aconteceram. A PIDE, como lhe competia por ofício, “vocação e amor à pátria”, ainda tentou retirar a obra do mercado, mas já não chegou a tempo. Esgotara-se num ápice. Mas não tardou que corresse, copiado à mão, por esse país fora. Outro livro do mesmo autor, com a guerra em fundo: "o Canto e as Armas"…

Uma das maneiras de escapar à censura, que, por vezes, e felizmente, se mostrava estúpida, era escrever ou poetar sobre a guerra colonial como se fosse a do Vietname ou de Hiroshima, trocando-se as voltas aos vigilantes da ordem e dos bons costumes morais, cívicos e políticos...

A editora tomarense Nova Realidade publicou antes de 74 vários livros considerados à época perigosos: "Cantares", de José Afonso; "o Canto e as Armas", de Manuel Alegre; "Hiroshyshima" e Vietname", duas antologias, cujos poemas se referiam, nas entrelinhas, à guerra colonial portuguesa…

Tenho dado tratos de polé ao pensamento a ver se consigo deslindar as razões por que, logo após a Revolução do 25 de Abril, e já com as colónias tornadas países independentes, se continuou a silenciar a guerra colonial e os seus efeitos traumáticos que ela exerceu sobre milhares de jovens portugueses. Dir-se-ia que tudo ficou encarcerado no seio das famílias que tiveram seus filhos e parentes a combater e voltaram, que morreram ou ficaram mutilados. Talvez o medo, que ainda se não desvanecera por completo, seja uma das razões; quem sabe se o pudor de falar sobre uma ferida ainda não sarada; quiçá a explosão da festa revolucionária, após a qual se silenciaram as armas, ou ainda o facto de a Guerra Colonial ter sido travada contra o regime português e não contra o seu povo, dando deste modo uma achega para o êxito da Revolução de Abril… São causas possíveis, mas que estão longe de explicar tudo. Um dia há-de saber-se, ou se calhar não, pelo menos na sua real profundidade…

Cristóvão de Aguiar


O texto aqui apresentado foi lido, em versão mais ampla,na Biblioteca-Museu da República e da Resistência/Espaço Grandella, em 27 de Novembro de 2008, seguido de um aceso debate entre os presentes.

 


O Cristóvão de Aguiar na sua comunicação. Creio que com o texto de apresentação, aliado ao mail que teve a amabilidade de me enviar, creio que passamos a compreender melhor, toda a trama passada ao redor de um 'Braço Tatuado'. Não quero deixar de acrescentar que Cristóvão de Aguiar é um homem de verbo fácil, preciso e conciso. Deu mostras de um bom amigo e camarada, mas também notei que, ainda, sofre os problemas que adquiriu, como tantos de nós, na guerra, isto, porque a página tantas disse, mais ou menos isto: “Vamos acabar. Basta de falar em Guerra”. 

José Martins

28/Novembro/2008 

___________


Notas de vb:
1. Julgo estar a referir-se ao alf mil António José Orlando Bretão que, segundo consta na História do BCav 490, se apresentou em 19 de Dezembro de 1963 e foi destinado à CCav 488/BCav 490 , em substituição do alf mil António N. Coelho Brasil (ferido em combate em 08Out63).


Subalternos, como se dizia então, da CCav 488, em Jumbembem, talvez em finais de 1964, princípios de 65. Dos que me lembro e que não voltei a ver desde 1965, ainda recordo (da esqª para a dirª) o alf Carvalho (o "fotógrafo" da CCav 488 e já agora do BCav 490), o 2º embora o rosto me seja familiar perdi o nome, o alf Bretão (Terceirense, se a memória não me falha), o Dr Franco (um médico que deixou muito boas recordações não só junto dos miltares da CCav 488 mas também da população de Jumbembem), outro alf que recordo a cara vagamente e do nome nem pensar e o alf Armor Pires Mota, hoje escritor de obra reconhecida. 

Foto extraída do blogue do Carlos Silva, a quem devemos a obrigação de reconhecer o enorme esforço que tem feito para reconstituir a nossa Memória. Tenho fotos do Bretão e da CCav 488, mas ainda não as consegui localizar...

1 comentário:

Luís Graça disse...

Tive pena de não poder conhecer pessoalmente o nosso camarada Cristóvão de Aguiar. Estava em reunião no dia e hora em que ele apresentou o seu livro que, como nunca é demais sublinhar, é um romance, 'obra de ficção'... O Zé Martins, no entanto, representou-me, e bem, a mim e ao nosso blogue.

Gostaria que o Cristóvão escrevesse no nosso blogue. Fica aqui o convite.