Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
terça-feira, 10 de fevereiro de 2009
Guiné 63/74 - P3863: Tabanca Grande (114): Libério Candeias Lopes, ex-2.º Sarg Mil Inf da CCAÇ 526 (Bambadinca e Xime, 1963/65)
1. Mensagem de Libério Candeias Lopes, ex-2.º Sargento da CCAÇ 526, Bambadinca e Xime, 1963/65, com data de 6 de Fevereiro de 2009:
Caro amigo
Junto, em anexo, um pequeno contributo para a historia da guerra da Guiné.
Se o mesmo tiver alguma utilidade queiram publicá-lo no respectivo blog.
Um abraço
Libério
2. Carta para Luís Graça
Libério Candeias Lopes
Ex-2.º Sarg Mil Inf
Guiné: Bambadinca e Xime
1963/65
Caro Luís Graça
Sou um assíduo leitor do teu blog e tenho acompanhado com grande interesse as inúmeras histórias descritas por quem as viveu e sentiu intensamente. São elas que estão a contribuir para que se escreva a verdadeira história da guerra da Guiné.
Cumpri o serviço militar obrigatório durante 48 longos meses. Quando estava para passar à disponibilidade, fui agraciado com um prémio: um cruzeiro (com tudo incluído) até à Guiné...
É normal que estes 4 anos acabassem por ser vividos intensamente, embora sem quaisquer contrapartidas no aspecto pessoal e profissional. É também natural que, embora tente esquecer os dois anos de Guiné, o não consiga fazer.
E, por isso mesmo, sempre que posso lá estou eu ligado ao teu blog.
Certamente que não irei contribuir ou acrescentar muito mais ao que tenho lido. Mas gostaria de deixar alguma coisa sobre os locais e a companhia a que pertenci.
Há nomes que nunca esqueci ao longo destes 4 anos:
Amedalai, Samba Silate, Ponta Varela, Ponta do Inglês, Taibatá, Chicamiel, Xitole, Saltinho, Fá Mandinga, e, principalmente, Bambadinca e Xime.
Fiz parte do primeiro pelotão a instalar-se no Xime, no dia 1 de Julho de 1963. O resto da Companhia 526 ficou instalado em Bambadinca.
Vivi intensamente 9 meses no Xime.
Dias felizes e outros menos felizes, nem uns, nem outros foram esquecidos. Houve tempo para tudo.
Do Pelotão, de cerca de 30 homens, faziam parte o Alf Mil Correia Pinto (já falecido); os Furriéis Milicianos Tibério (falecido), Virgílio e eu próprio.
Para terminar, segue uma historieta passada comigo no Xime, e em separado, o resumo da história da Companhia 526, que por mero acaso fui guardando ao longo destes anos.
Aquartelamento do Xime
Ponte de Saltinho
Fur Mil Virgílio e Tibério, Alf Mil Correia Pinto e Fur Mil Libério
3. Um libanês no Xime
Além da casa onde nos instalámos no Xime, havia uma outra em frente, onde habitava um italiano. Indivíduo afável, que fazia, como ninguém, um frango à cafreal, e que tinha a profissão de alfaiate.
Em determinada altura arranjei uma cadeira onde poderia descansar e dormir alguma sesta, já que, durante a noite, pouco dormia. Faltava-me, porém, o tecido para a referida cadeira de encosto. Tiradas as medidas pelo alfaiate, vou à moradia mais acima, onde o libanês Amin tinha o seu comércio. Dei-lhe as medidas, escolhi o pano e entreguei-o novamente ao alfaiate, para o coser.
No dia seguinte vou colocar o pano na cadeira e, em vez de ficar abaulado, para nele me deitar, ficou esticadinho, resultando daí a sua ineficácia. Chamei o alfaiate para lhe mostrar a sua obra e fiz-lhe ver que se tinha enganado nas medidas. Jurou que não e que as medidas estavam correctas, pelo que deveria ir ao Amin ver o que tinha acontecido. Lá regressei novamente ao comerciante e pedi-lhe para rectificar as medidas do tecido que tinha comprado, tendo-lhe eu explicado o que sucedera com a cadeira. Pela reacção dele, vi logo que ali havia marosca, e que ele nem atava nem desatava. Perante a minha reacção, um pouco menos amigável, começou a titubear e acabou por me pedir desculpa, porque se tinha enganado no metro. Convidei-o a contar toda a história, e não é que o indivíduo tinha um metro para o branco e outro para o preto?! O do branco estava correcto, mas o outro tinha menos cerca de 20 cm.
Ao olhar em frente, vejo duas balanças decimais no meio do estabelecimento. Resolvi ir pesar-me em ambas. E eu, que pesava na realidade cerca de 75 quilos, pesei, numa, perto de 100 quilos e, na outra, sessenta e pouco! Cheguei à conclusão lógica de que uma era para vender e a outra para comprar os produtos locais.
Aí, a minha consciência é alertada e pensei: - Mas, afinal, o que andamos nós aqui a fazer? Os habitantes desta terra terão assim boas razões para se revoltarem...
Resumindo: Disse ao Amin que, se à noite ainda estivesse no Xime, eu iria ter com ele. Não foi preciso. Pegou na sua velha camioneta, carregou-a com o que pôde, e desapareceu de vez daquela tabanca.
Foi mais uma casa livre dentro do arame farpado...
À esquerda a nossa vivenda. À direira o comércio do libanês Amin
3. Comentário de CV
Caro Libério, cabe-me receber-te na nossa Tabanca Grande. Bem-vindo. És um dos pouco mais velhos do nossa Tertúlia e um dos ex-combatentes do início da guerra na Guiné, logo com direito a uma saudação especial.
Pelo modo como entraste, prometes ser um elemento activo, com muitas histórias para contares a nós, periquitos da década de setenta.
Instala-te, puxa da caneta e continua a escrever as tuas memórias que muito contribuirão para a memória futura da guerra colonial, da Guiné particularmente.
Em nome da Tertúlia, deixo-te um abraço fraterno.
CV
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 9 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3857: Tabanca Grande (113): José Manuel Moreira Cancela, ex-Soldado AM da CCAÇ 2382 (Guiné, 1968/70)
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1 comentário:
Libério:
Não imaginas a alegria que nos dás, a mim e a muita malta que conheceu o Xime (era a porta de entrada da Zona Leste).
Eu que passei por lá em 1969 (a caminho de Contuboel, com regresso, menos de dois meses depois, a Bambadinca) e que lá (no subector do Xime) passei os piores momentos da minha/nossa guerra, já não conheci o teu alfaiate italiano nem o teu comerciante libanês Amin... Mas a tua história é um verdadeiro conto moral...
Sê bem vindo à nossa Tabanca Grande. Publicaremos a seguir a história da tua companhia... Mas vês se lembras de mais coisas e de mais pessoas do Xime. Vamos gostar de ler e de ver (se tiveres mais fotos).
Um Alfa Bravo. Luís
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