quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Guiné 63/74 - P3874: Blogoterapia (90): Natal é quando o Homem quiser (Santos Oliveira)

1. Nem sempre a Noite de Natal é noite de Natal para todos os Homens. Quando Santos Oliveira(*) se preparava para uma Noite de Natal solitária, surgiram-lhe sinais de que o Homem, que é um ser necessitado de afectos, também é capaz de os partilhar.

Depois de uma longa conversa telefónica entre mim e o nosso camarada Oliveira, este propôs-se falar de um acontecimento que tinha remetido para a gaveta do silêncio.

Fez-se ruído, do bom, e assim vamos ver como alguém, lá longe, na diáspora, se lembrou daquele Furriel que há dezenas de anos o tinha marcado, positivamente, para sempre.

Lembremos o que dizia, ao que julgamos, um homem simples, mas sincero, num comentário que fez no Poste 3544(**):

Senhores

Quando cheguei ao Cachil este era o furriel que já lá estava com um pequeno grupo de homens e três morteiros.

Foi o furriel que punha sempre os soldados à sua frente, conversava, falava, jogava, aconselhava e fazia a vigilância da mata, por eles.

Pareciam todos felizes quando os novos por lá ficavam tristes e sozinhos. Muitos de nós acabaram no jogo da lerpa e na cerveja.

Este furriel também tinha sempre um conselho para nós. Poucas vezes o vi festejar ou a beber com os outros furriéis e alferes da minha Companhia.

Este era o furriel que depois de cada ataque vinha saber de posto em posto, como estávamos e dizia-nos que já tinha terminado tudo, que esta já se tinha passado e outras coisas. Tinha sempre uma palavra que nunca ouvimos dos nossos alferes ou furriéis.

Para mim é um grande homem como um pai, porque me ajudou e aos meus companheiros. É o furriel que não dava ordens. Explicava e ensinava e os soldados faziam tudo sem serem precisas ordens.

Este furriel, se quisesse alguém para o seguir numa patrulha para morrer, tinha sempre mais voluntários do que se fosse para um rancho melhorado. Quando se foi embora nunca mais nos sentimos seguros. Só éramos mais experientes.

Estou a morar na Bélgica, não tenho internete, mas há uns portugueses companheiros mais novos do trabalho que têm e vão deixando ver essas coisas da tropa do meu tempo.

Desejo que o senhor Oliveira seja muito feliz, porque também me fez feliz.
Soldado Carvalho



2. Falemos então da última Noite de Consoada do nosso camarada Santos Oliveira. Melhor, vamos lê-lo.

DAS EXPECTATIVAS À REALIDADE, NA NOITE DE NATAL DE 2008

Estamos quase no Carnaval, mas só agora recebi concordância para fazer este relato.

Não sonhei grandes expectativas para o meu Natal deste Ano. Seria um dia como os demais. Fisicamente, mais solitário, mas que qualquer eremita criaria ambiente e capacidade de o viver no silêncio imaginário das festas e das multidões.

A M. Júlia, esposa e mãe, viajou para as Ilhas Britânicas com a finalidade de acompanhar a nossa filha e netos pelo Natal e Ano Novo. Um de nós (teria) terá de ficar. É uma alternância que praticamos com alguma naturalidade. Necessidades intransponíveis foram acontecendo e nos obriga a estas escolhas.

Neste Ano, porém, nos dias que antecederam a Noite de Paz, recebi solidariedade de metade do Mundo. Foi muito gratificante.

Na noite de 24 de Dezembro, desde a confecção da Ceia solitária, até muito além dela, os Companheiros, os Amigos, os Irmãos, estiveram comigo em permanência, interromperam as suas próprias Refeições, convivência e festas de Família, fazendo tudo para que me não sentisse só. E eu, verdadeiramente, não estava só, porque todos os que ao longo dos dias foram manifestando essa solidariedade, estavam presentes.

Significativas e de destacar, as Comunicações do Carlos Silva, Fur Mil Armas Pesadas/ At , da CCAÇ 2548, (Jumbembem, 1969/71) e Júlio Pinto, 2.º Sarg Milº da CART 1769, (Angola, 1967/69); aos restantes, que alongariam a vasta lista, as minhas desculpas de os não nomear. Mas, a todos, o meu sincero agradecimento.

Já muito próximo da meia-noite, o telefone volta a tocar. Sentia-me muito cansado, mas feliz. Do outro lado, uma voz singularmente simples perguntava se eu era o Furriel Oliveira que esteve no Cômo em 64. Disse que sim e, então, do outro lado veio a identificação: era o A.Carvalho. Ver poste > (Guiné 63/74 - P3566: Blogoterapia (80): Um elogio vindo da Bélgica (Soldado Carvalho / Santos Oliveira).

Acho que fiquei sem fôlego, paralisado, com o coração aos saltos, mudo… Não sabia pensar. Não possuía discernimento. Foram momentos que ficarão PARA SEMPRE, dentro de mim.

Então o meu amigo Carvalho, em palavras simples, incrivelmente belas, pediu que não fizesse alarido à volta do seu nome; que havia sido os companheiros que quase o obrigaram a (re)dizer e que escreveram por ele. Efectivamente, num dos dias tinha sido o Sentinela que tomou conhecimento da nossa ida à Orla da Mata e dois dias depois estava de Plantão no mesmo Posto. Que ouviu umas coisas acerca dum lenço, mas nunca tinha percebido bem. Ao ler o que escrevi, entendeu tudo.

E o que os companheiros escreveram, foi como ele havia desabafado; que quando voltar a Portugal, nos visitará. Preferiu (pediu) que não soubéssemos o seu endereço, até porque se ausentava muito da Empresa; mas não perderá o contacto. Ainda trabalha, mesmo com os seus 66 anos. Mais não devo revelar a fim de manter a promessa solene feita nesta NOITE DE NATAL que eu jamais irei esquecer.

Ao Carvalho, e a todos os que longe do Portugal que defendemos e amamos, os meus Votos muito especiais de um 2009 e que a sorte os traga de regresso à nossa Terra que nos viu nascer. As maiores Felicidades.

Um abraço fraterno, do
Santos Oliveira
__________

(*) Santos Oliveira, ex-2.º Sarg Mil Armas Pesadas Inf do Pel Mort 912, Como, Cufar e Tite, 1964/66

(**) Vd. poste de 30 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3544: O segredo de... (2): Santos Oliveira: Encontros imediatos de III grau com o IN

Vd. último poste da série de 8 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3851: Blogoterapia (89): Ninguém tem razão sozinho, viva o debate e o abraço (José Brás)

Sem comentários: