quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4788: Estórias do Mário Pinto (6): “O Puto da Mancarra”


1. O nosso Camarada Mário Gualter Rodrigues Pinto, que foi Fur Mil At Art da CART 2519 - "Os morcegos de Mampatá", Buba, Aldeia Formosa e Mampatá - 1969/71, enviou-nos mais uma estória:

Amigos e Camaradas,

Ao rebuscar os meus velhos apontamentos dei com este velhinho texto, que achei, pelo interesse e dramatismo do seu conteúdo, dever partilhá-lo com toda a nossa Tabanca Grande e ao qual dei o título de:

"O PUTO DA MANCARRA"

As ruas de Bissau, invariavelmente, durante o dia e pelo entrar da noite, encontravam-se plenas de viaturas e gente civil e militar, num pintalgado de fardas da tropa portuguesa, trajes tradicionais africanos e outras vestimentas diversas, que emprestavam à paisagem daquela cidade, cenários de uma diversidade colorida mística, rara e atractiva.

Sós, ou em pequenos grupos, esta gente pululava pelas ruas e estabelecimentos, em permanente rodopio, ora atarefada a tratar das suas vidas, ora calma e serenamente a cumprir as suas habituais rotinas, que, regra geral, acabavam com uma rumagem a um dos vários cafés e esplanadas da cidade.

Um dos putos "reguilas" que gravitavam à nossa volta

Ali, sentados e saciando a sede, bebericando descansadamente a sua cervejinha, entre ruidosos burburinhos de risos e conversas, normalmente sobre acontecimentos e novidades dos pontos mais longínquos da Guiné, o pessoal era cercado pelos persistentes vendedores de ronco (1) e pelos incansáveis e simpáticos miúdos da mancarra (2), que negociavam os seus produtos em troca de alguns pesos (3).

O Mamadú Jaló era um desses putos, filho de uma mulher de origem “papel”, que vivia nos arredores da cidade e tinha uma irmã, que lavava roupa a alguns dos nossos militares em serviço no Quartel-General. Um dia essa sua irmã, perdeu-se de amores por um deles, nativo local, tendo engravidado e abalado na sua companhia para Bula.

O puto, com a partida da sua irmã, ficou a ser o único meio que podia sustentar a sua mãe, de origem “papel” e que todos os dias desesperava, na sua pobre Tabanca, pela falta de dinheiro indispensável à sua subsistência e do seu querido filho.

Desenrascado como era, o Mamadú procurou trabalho no cais de descarga de Pijiguiti onde, por “artes mágicas” durante o dia, ia surripiando nas descargas dos batelões, que à data eram propriedade da CUF, alguns vagos de amendoim torrado e salgado.

À noite, com o resultado obtido desse “produto desviado”, deambulava pelas ruas fracamente iluminadas de Bissau, de esplanada em esplanada, vendendo o “seu” amendoim torrado e salgado, aos inúmeros tropas que com ele brincavam.

Findos os seus precários trabalhos diários, o puto da mancarra contava o magro “patacão” (4) angariado, que mal dava para as despesas de sobrevivência do seu corpito magro e franzino, e, muito menos, para ajudar a sua tão necessitada mãe, que ele, melhor que ninguém sabia, o esperava na Tabanca com ansiedade.

A mãe ainda nova, vistosa e dona um corpo rijo, e bem feito, era então viúva de um homem mais velho, que com a morte do seu companheiro, que um dia a tinha trazido de Farim (sua terra natal), se viu de repente com dois filhos nos braços.

Claro que com estes atributos físicos era assediada por todos os homens, naturais e militares, mas nunca cedeu às pretensões de quem a procurava, apenas, para as tão desejadas “loucuras” de uma noite de amor.

Até que, um certo dia, fraquejou amorosamente e se entregou a um militar, que através de estudadas e manhosas artes de sedução, e promessas ludibriosas a conquistou. O que é certo, é que o “conquistador” depressa se fartou dela, ficando a desgraçada mulher novamente sozinha e dependente do parco pecúlio, que habitualmente auferia o seu filho, Mamadú Jaló.

Farta de lutar e desanimada pela sua má sorte e infelicidade, começou a “vender” o corpo aos homens que a procuravam, para as tais noites de prazer, tornando-se assim em mais uma prostituta do Pilão.

O Mamadú Jaló, nunca mais foi visto para os lados do Pijiguiti ou na venda de
Mancarra, havendo quem afirmasse que ele, ultimamente, era angariador de clientes para a sua mãe.

Duas tristes vidas que o destino marcou e obrigou, sem apelo nem compaixão, a baixarem ao mais baixo nível da condição humana, que é para muitos desamparados e desprotegidos, o complicado acto da sobrevivência.

Um abraço,
Mário Pinto
Fur Mil At Art

Legenda:

(1) – Artesanato muito diversificado
(2) - Amendoim na Guiné e Cabo Verde
(3) – Escudos (antiga moeda portuguesa)
(4) – Dinheiro, porventos

Foto: © Eduardo Ribeiro (2009). Direitos reservados.
__________

Notas de M.R.:

(*) O Mário Pinto transmitiu-me que tem vários textos deste género, que acabamos de ler sobre um dos putos giros e “chatos”, que pululavam à nossa volta na pequena e aconchegada cidade de Bissau, impingindo-nos “manga de ronco” e que eu considero mais uma "peçinha" complementar do infinito puzzle, que pretendemos seja o nosso blogue.

São pequenas e saudosas memórias (umas melhores, outras menos boas), que vão também contribuindo para as nossas delícias literárias.

Mais disse o Mário, que tem vindo a contar-nos estas estórias, que ele designa como pequenos ensaios, do livro que ele pretende escrever num futuro próximo.

Ficamos pois a aguardar ansiosamente a sua publicação.

(**) Vd. último poste da série em:

4 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4777: Estórias do Mário Pinto (5): “O Palácio das Confusões” e o “Pilão”

1 comentário:

Hélder Valério disse...

Mário
Uma história com o seu "quê" de dramatismo e de sabor amargo quanto a justiça social.
Não deixa se ser actual.... e não só na Guiné!
Quanto à tua descrição da vida da cidade, acho-a bastante bem caracterizada e fez-me relembrar momentos meus vividos. Fechei os olhos e "estive" lá: na "Ronda", no "Oásis" e lá estavam os vendedores de mancarra ou simplesmente a frase "furrié, parte peso!".
Confesso que nunca perguntei como "acertavam" no posto militar, quando no grupo, ou mesmo só, como muitas vezes me aconteceu, quando queria "curtir" uma de nostalgia, estava vestido "à civil".
Bem, hoje, depois de ler os textos do Cherno, acho que consigo formular uma teoria, mas por enquanto ainda é minha.
Um abraço
Hélder S.