domingo, 15 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5277: Gavetas da memória (Carlos Geraldes) (12): O Furriel Emanuel

1. Mensagem de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66, com data de 13 de Novembro de 2009:

Boa noite, Carlos
Aqui vai mais um apontamento de ficção em modelo real.

Um abraço para ti, para todos os companheiros da Tabanca Grande e para quem mais se quiser juntar debaixo da árvore sagrada da nossa memória.

O Furriel Emanuel é um tributo ao soldado prudente, dócil, fiel cumpridor das ordens que recebe, exemplo de um ser superior que não sabe que o é e que nunca o vem a descobrir, vitima da cegueira de uma humanidade cada vez mais desumana.

Um abraço
Carlos A. Geraldes


O Furriel Emanuel

Era de origem timorense. Magro, de cara chupada e pele muito escura, cabelo preto de azeviche, parecia mais indiano que indonésio. Apesar de ter sido criado em Lisboa (viera para Portugal com os pais, ainda era bebé), parecia que tinha vivido sempre no sertão de Timor, como aquele menino criado por uma matilha de lobos que, mesmo depois de ter sido transportado para a civilização, todas as noites ia para a janela espreitar a lua, saudoso da companhia dos seus irmãos caninos.

Na escola do bairro onde os pais moravam, era xingado constantemente pelas outras crianças que lhe chamavam preto da Guiné. Ficava furioso e tentava explicar pela milésima vez que não era preto nem era da Guiné, mas sim de Dili numa ilha chamada Timor. Nesses momentos chegava até a sentir alguma dificuldade em expressar-se correctamente em português o que mais contribuía para o gáudio geral da pequenada. Talvez por isso nunca conseguiu formar-se, ter um emprego fixo, tornar-se um lisboeta de pleno direito como os outros. Era talvez o apelo da selva que vinha do seu ser mais profundo que lhe dificultava o completo entendimento da vida moderna. Certos costumes corriqueiros da nossa vida normal, como tomar uma aspirina para uma dor de cabeça, por exemplo, era para ele uma verdadeira aflição. Colocava-se em bicos de pés, com o corpo tenso, arqueado para trás, lembrando a posição de um faquir a querer engolir uma espada. Raras eram as vezes em que ele conseguia deglutir a pastilha com sucesso. Tossia e vomitava como um desgraçado.

E muitas outras coisas de que agora já não me lembro mas que eram uma marca insofismável das suas características tão especiais. Emanuel não parecia português, de Portugal.

Quando desembarcou na Guiné sentiu que, ali, estava mais perto das suas raízes. Sentiu-se como peixe na água. Enquanto os restantes camaradas se queixavam do calor húmido e dos malditos mosquitos, Emanuel ria-se com satisfação e ia tagarelar com as bajudas da tabanca onde era aceite com grande regozijo.

Outra coisa: o furriel Emanuel não conhecia a palavra não. De convívio alegre e matreiro, estava, no entanto, sempre pronto para fazer tudo o que lhe pedissem ou lhe ordenassem, mesmo que isso parecesse ser quase impossível. Era sempre o primeiro a aparecer equipado, armado e municiado, quando o destacavam para chefiar uma ronda, fazer uma patrulha ou integrar o Grupo de Combate a que pertencia para alguma operação mais prolongada. Sempre sem uma palavra de desagrado, contrariedade ou medo (que era outra palavra que não tinha sentido para ele). Nas operações mais difíceis e arrojadas, nunca se lhe ouviu um queixume, uma manifestação de cansaço ou desalento. Sempre pronto, fresco e desperto mesmo se estivesse sem dormir há mais de dois dias. De aspecto frágil era, no entanto, incansável, rijo e cheio de força. Até metia medo. Foi também por isso que se serviram dele como carne para canhão, sem qualquer constrangimento. Arrastaram-no para uma guerra sem sentido, que ele nem ousou questionar. Fizeram-no passar fome, e ele nem se apercebeu. Deram-lhe ordens para matar, e ele matou sem pestanejar. Usaram-no até ao extremo e, no fim, esqueceram-no e abandonaram-no ignominiosamente.

Quando um dia recebeu a trágica notícia da morte de toda a sua família num terrível desastre de viação, ficou imóvel, perplexo, e uma enorme tristeza começou por lhe toldar completamente o rosto. Pela primeira vez ficou de olhar perdido no vazio em que a sua vida se tinha transformado. Desde esse momento Emanuel pareceu morrer por dentro, vivia apenas como um autómato. Dos seus colegas e superiores nem uma palavra de conforto, nem uma mão no ombro. Como era diferente, um inadaptado, foi sempre um incompreendido, nunca tinha ganho grandes amizades. Apenas os soldados da secção, sentiam por ele uma espécie de compaixão, talvez por agora partilharem de mais perto um mesmo rosário de dor, mas nunca tiveram coragem de o confessar.

Quando regressámos à Metrópole, aos nossos aconchegantes cantinhos familiares, o furriel Emanuel não tinha para onde ir, não tinha família, não tinha amigos, não tinha ninguém a quem se pudesse agarrar, à deriva numa terra que nunca fora a dele. Nos primeiros tempos ainda o viram vagabundeando pela Baixa de Lisboa, dormindo aqui e ali em pensões baratas, comendo em tascas manhosas na companhia de chulos e prostitutas.

Parece que acabou por morrer na Alemanha, para onde tinha conseguido emigrar, não sei como nem quando, pobre e abandonado como sempre, numa noite gelada, sem nunca ter conseguido voltar à sua tão saudosa ilha natal.

Se calhar nunca chegou a ouvir falar desse tal acréscimo de pensão que queriam dar aos ex-combatentes da guerra do Ultramar! Não se preocupava em estar a par dessas coisas, não era isso que lhe iria resolver os problemas.

Viana do Castelo, Nov. 2009
Carlos A. G.
carlos.geraldes@live.com.pt

OBS:-Negritos da responsabilidade do autor do texto
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 11 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5253: Gavetas da memória (Carlos Geraldes) (11): A Enfermeira Josefina

3 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro Carlos

Uma história com Vida dentro, embora com a Morte a triunfar....
O que nos relastas é triste mas é, infelizmente, bem real e mais corrente do que se poderia pensar.

Um abraço
Hélder S.

MANUEL MAIA disse...

CARO GERALDES,

AQUI ESTÁS DE NOVO COM UMA HISTÓRIA QUE DÁ QUE PENSAR...

LAMENTAVELMENTE, O FURRIEL EMANUEL NÃO FOI O UNICO A QUEM A VIDA FOI TÃO MADRASTA AO PONTO DE NEM OS SEUS SUPERIORES LHE DAREM UM SIMPLES ACONCHEGO DE OMBRO NA HORA DA DESGRAÇA.

A HISTÓRIA DA NOSSA PASSAGEM POR ÁFRICA ESTÁ PRENHE DE SITUAÇÕES DESSE TIPO...

QUANTOS FORAM OS "EMANUEIS" DOS CORPOS AFRICANOS DA NOSSA TROPA NA GUINÉ?
QUANTOS "EMANUEIS"COMPUNHAM AS MILICIAS?

QUANTOS FAXINAS "EMANUEIS" QUE NOS SERVIRAM A TROCO DE UMAS SOBRAS DE COMIDA E UNS TROCOS, CONFORME HÁ TEMPOS, AQUI REFERIU DE FORMA EXTRAORDINÁRIA O CHERNO?

OBRIGADO POR TRAZERES A LUME ESTA HISTÓRIA DO EMANUEL,PARA FAZER MOSSA NA NOSSA CONSCIÊNCIA E SOBRETUDO OBRIGAR OS REFRACTÁRIOS OS DESERTORES E OS RESPONSÁVEIS POLÍTICOS E MILITARES AINDA VIVOS A REFLECTIR NO INTERVALO DAS SUAS VIAGENS DE LAZER À VOLTA DO MUNDO,MONTADOS NAS TARTARUGAS E ELEFANTES,COM QUE FORÇARAM O DESTINO A PRESENTEÁ-LOS,OU ENTRETIDOS NOS SUAS MESAS DE BRIDGE ONDE TENTAM ESCONDER UMA BOÇALIDADE MAL ESCONDIDA,OU AINDA NO REFÚGIO DAS ENORMES BIBLIOTECAS DE QUE FAZEM ALARDE SER DONOS, COM LIVROS CUJOS CONTEÚDOS NUNCA LHES ENSINARAM OS VALORES DA AMIZADE, DO RESPEITO PELO PRÓXIMO, DA VERDADE SEM MEDO DA MORDAÇA,DA HONESTIDADE INTELECTUAL,DO SABER ESTAR SEM EXPLORAR O POVO INGÉNUO...

MUITO OBRIGADO

UM ABRAÇO
MANUEL MAIA

António Matos disse...

Caro Geraldes,
Aos poucos vou lendo os posts que vão aparecendo e hoje foi a vez de me deliciar com o teu tributo ao furriel Emanuel.
Antes de mais uma apreciação ao teu texto.
Numa palavra - fantástico !
Quanto à estória que contas, confesso que me tocou profundamente pela humanidade do Emanuel e pela inadaptação a uma vida urbana já ferida pelos desgostos que relataste.
Deste drama ( não tão raramente vivido por ex camaradas de armas ) permito-me exortar a que se estudem e publicitem estes casos por batalhão, companhia ou pelotão em contraposição aos fait divers de quantos corneteiros, padeiros, cozinheiros e outros eram essas unidades constituídas.
Enquanto estes apenas interessam na fundamentação duma qualquer tese académica sem qualquer valor para o entendimento da guerra, aqueles representam a verdadeira face oculta das responsabilizações não assumidas por uma nação que não se faz merecer dos seus heróis !
Um abraço,
António Matos