sábado, 23 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5692: Notas de leitura (57): Armor Pires Mota (2): Tarrafo, o primeiríssimo relato literário da Guerra da Guiné (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Janeiro de 2010:

Queridos amigos,
Junto o primeiro texto sobre a obra do Armor Pires Mota. Para mim foi uma revelação. Espero partilhá-la com todos os camaradas do blogue.

Um abraço do
Mário



Tarrafo, o primeiríssimo relato literário da Guerra da Guiné

Beja Santos

Armor Pires Mota pertenceu à CCAV 488, formado em Estremoz, combateu durante dois anos em Mansabá, ilha do Como, Bissorã e Jumbembem, entre 1963 e 1965. Os seus relatos, à guisa de um diário, foram publicados no quinzenário Jornal da Bairrada, a partir de 1964. Regressado da Guiné, publicou Tarrafo, a colectânea organizada das suas crónicas, que a PIDE prontamente retirou das livrarias, o que não deixa de ser surpreendente, já que tudo, praticamente, era conhecido na imprensa regional. Critérios de quem sabia que a difusão em livro pode funcionar como um vitríolo, um pregão, um porta-estandarte.

Ele chega a Bissau e uma criança dirige-se-lhe: “Branco, parto um peso comigo”. E logo parte para a guerra, os T6 bombardeiam, uma tabanca é reduzida a cinzas. Nos seus relatos cabe todo o corpo da guerra: a nostalgia do que está longe, o capim com dois metros de altura, a descrição do trabalho dos enfermeiros a socorrer os feridos, os repentes da sorte quando um tiro do inimigo esfacela uma coronha, não produzindo ferimento, a acção psico, o bonito crioulo (“Mim cá cume arroz três dias...”), um assalto a um acampamento no Morés, o ajuste de contas com aquele que jogava com um pau de dois bicos, o medo físico como uma doença ou uma bola de fogo que nos devora as entranhas. É ainda uma tropa que leva burros e que usa capacetes.

Tarrafo surpreende, 45 anos depois: pela sinceridade, pelo registo inocente, pela dureza da aprendizagem. E chegamos a Janeiro de 1964, o autor vai viver a batalha do Como, legou-nos páginas densas, emocionantes, estranhamente esquecidas. Por exemplo: “Atravessámos o riacho e o tarrafo, de saco às costas, muito a custo, curvados, e encobertos pela vegetação, quase impotentes e amachucados, porque a viagem fora penosa, difícil. E debaixo de fogo intenso, a rastejarmos, entrámos no objecto... Sinto-me em baixo. A alma pesa-me como chumbo. E causa-me calafrios a morte daqueles dois moços que, ao entardecer, foram encontrados nus. Só lhes deixaram as meias enfiadas nos pés, por algum motivo religioso. De resto, levaram-lhes tudo. Tinham o sexo mutilado, o nariz arrancado e os olhos, e, pelos rasgões espalhados pelo corpo, tudo leva a crer que lutaram corpo a corpo, quando se viram sós e sem munições... Não quero que ninguém fique com a impressão de que este diário é pura ficção nem, tão pouco que me mascarem de valente. Escreverei para mim e não para a eternidade. E aqui estarei para chegar até ao fim”. O autor reza o terço quando rebenta a fuzilaria, estão metidos num cerco em ferradura, o ataque é reprimido, renasce a atmosfera de silêncio enquanto um vento húmido traz o cheiro horrível da carne a apodrecer algures, entrecortado pelos estrondos da artilharia. É uma batalha como não haverá igual, em tudo o que se passou na Guiné, todos se batem, tomam-se posições, derrubam-se acampamentos, regam-se feridos e mortos, há sequências apocalípticas, vive-se permanentemente à espera de um contra-ataque: “Há 40 dias que o mundo para nós é a incerteza da hora seguinte a devorar-nos a fronte atormentada. Há refeições em branco, porque não apetece senão a paz, o regresso. Uma grande parte da tropa está já inoperacional. As semanas são uma eternidade. Até parece que nascemos na tropa, na guerra. Em 1 de Março de 1964, dentro da batalha do Como, Armor Pires Mota faz a seguinte oração:

“Só Tu sabes, Senhor, a minha hora.

Mas tenho medo porque sou homem e tenho o destino de mãos vazias.

Que as minhas mãos não façam correr sangue inocente, mas que não sejam cobardes se for preciso castigar, matar ou morrer.

Mas tenho medo, Senhor!

Tu bem sabes que eu tenho uma mãe que chora e reza a minha ausência e que a saudade chora dentro de mim como uma criança longe dos braços maternos.

Tu sabes que eu tenho sonhos de ouro e espero de olhos azuis no futuro.

Tu sabes que eu tenho um amor na vida de mãos cheias de primavera e cabelo preto, da candidez dos lírios. E Tu bem sabes como dói cair uma rosa no chão só porque não choveu...

E só Tu sabes o segredo da noite: para a vida?, para a morte?

A hora é de luta para vencer ou morrer.

Mas tenho medo sem ser cobarde e tremo todo como cana agitada ao vento.

Espero em Ti.”

A batalha prossegue, sangrenta, com casas da mato a arder, pára-quedistas perdidos, o caos das ordens e contra-ordens. Escreve no seu diário: “Tivemos missa, como antigamente nas manhãs das grandes batalhas. O altar era feito com duas caixas de cerveja e montado por detrás da casa velha a ruir. De tronco nu ou descalços, mas alma cheia de esperança nos desígnios eternos, todos quantos ali estavam confiavam ao Senhor dos Exércitos as suas angústias, as oras más, as vitórias e as derrotas, as saudades da terra e da família, da noiva... Deus desceu à guerra para a paz”.

Armor Pires Mota vai seguir para Jumbembem. Voltaremos proximamente a “Tarrafo” e à obra seguinte, os poemas “Baga-Baga”.

Resta perguntar porquê este silêncio em torno do primeiro repórter combatente, alguém que escreveu a guerra quase em directo, em tom singelo, frugal nas imagens, entregando-nos os seus estados de alma sobre a forma de diário. Porventura houve preconceitos ideológicos, hoje totalmente inexplicáveis, talvez porque o escritor assumisse que fizera esta comissão numa convicção dos destinos da Pátria. Ele foi o primeiro escritor entre nós, devemos-lhe esta guerra quase em directo, no tempo em que se combatia de capacete e se transportavam munições e víveres em burros. Como veremos, a Guiné tem acompanhado a sua obra literária, até ao presente. Armor Pires Mota ofereceu-me a cópia de “Tarrafo” com as marcas do lápis da PIDE. É um exemplar que, cheio de orgulho, entrego ao blogue.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 22 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5687: Notas de leitura (56): Armor Pires Mota (1): Tarrafo e Baga-baga, duas surpresas de um combatente repórter (Beja Santos)

2 comentários:

Luís Dias disse...

Caro Beja Santos

Que linda oração que tu nos trazes do Pires Mota. É por este amor que existiu dentro de nós, por esta capacidade de sofrimento, por esta nostalgia feita de coragem nos momentos oportunos, que o soldado português conseguiu aguentar três frentes de guerra, durante 13 anos, em condições que muitos exércitos não acreditariam existir É esta massa de gente que ainda me faz acreditar que Portugal possa cumprir o seu destino, não obstante, tal como outrora, os políticos que nos dirigem, fazem fraca forte gente.
Um grande abraço
Luís Dias

Carlos Pinheiro disse...

Subscrevo, assino por baixo, as palavras do Luis Dias. Mas permitia-me acrescentar o seguinte: - Que esses senhores que têm andado a brincar com os ex-combatentes, que têm andado a fazer de contas que fazem leis para nos proteger, fossem origados, mas mesmo obrigados, durante um mês, a lerem, todos os dias, ao levantar e ao deitar, esse texto tão simples como objectivo, que afinal de contas só relata uma passagem da guerra que afectou 900.000 jovens deste país entre 61 e 75.
Parabens.
Obrigado pela oportunidade.
Carlos Pinheiro