sábado, 23 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5696: Controvérsias (61): Ser ou não ser (português), eis a questão (José Brás)

1. Mensagem do nosso camarada José Brás, (ex-Fur Mil da CCAÇ 1622 (Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68), com data de 16 de Janeiro de 2010:

Carlos, meu amigo
Aqui vai mais uma, não necessariamente para editar e se for, quando o entenderes
Um abraço
José Brás


E QUE TÍTULO HEI-DE PÔR NISTO?

Dizia Brecht que... desgraçado do país que tem necessidade de heróis.

Dizia ele e concordo eu, não apenas porque o tenha como homem sábio, que sem dúvida era, mas porque também eu me sinto com direito a opinião, ainda que não opinião de construção original, escarrada em palavras novas, ou pelo menos juntas assim pela primeira vez, querendo dizer o que disse Brecht e que quero eu dizer porque concordo.

Claro que poderia dizê-lo de maneira diferente, com outro palavrar, porque creio de crer firme que a humanidade não careceria nem de heróis nem de santos se homem o fossemos de verdade, se homem fosse criado à imagem de deus, como se diz, buscando um ideal elevado, de mãos dadas à volta do mundo, cada um irmão de outro, de outros, e de outros, em cadeia aberta e sem fim à vista, ou, pelo menos, primo ainda que afastado, esclarecido de que ninguém pediu para nascer mas, nascendo, nasce com direito total à vida e à esperança.

Mas não digo assim porque dizê-lo assim, ou de outro modo complicado, não apenas dá o trabalho de juntar as palavras mas obriga a pensá-las e ainda antes delas, a pensar mesmo, de pensamento engendrado, a tirar da cabeça ideias arrumadas em gavetas que melhor é nem abrir.

Porém, tendo já dito e não podendo voltar atrás, e sabendo eu como ferve o sangue nas artérias dos meus amigos da sina africana, quando alguém parece pôr em causa a sua dádiva generosa em nome daquilo em que acreditavam, uns muito, outros menos, outros mesmo que nada mas presos de uma espécie de solidariedade que nascia da sua crença de que nação e país eram apenas os vizinhos, os amigos, os da matriz social, cultural e histórica igual e que sendo eles ceifados não lhes cabia direito de se negarem à ceifa, ainda que muito lhes custasse ceifar em seara alheia.

Mas direi que se estou de acordo com o Berthold, é apenas porque sei de certeza certa que quando ele disse o que disse, não o disse por pouca coisa, quer dizer, para negar a grandeza do heroísmo, daquele heroísmo que leva um homem a arriscar a vida para espantar invasores da sua morança; daquele que dá forças para tirar à morte um amigo em risco, ou que nem amigo, mas conhecido, vizinho apenas, desconhecido que seja, mas ser humano; daquele de um homem ou de um pequeno grupo que expõe a única coisa que pessoalmente tem, a vida, em acções que empurram o mundo em frente, representando desse modo a própria humanidade; ou do que se assume sem a razão fundamental mas na crença de que a temos.

E nós, portugueses, nascemos, crescemos e esperamos morrer, seja lá aonde for, cidadãos de um País desgraçado porque tem o tempo cheio de heróis. Os verdadeiros, os que sulcaram mares, alargaram a geografia da Terra, descobriram coisas novas de que nem suspeitávamos, inventaram instrumentos e meios, contribuíram de forma superior para um entendimento maior e mais profundo sobre o homem, sobre o seu sonho e sobre a sua tragédia. E os outros, os que ficaram heróis apenas porque tendo nascido onde nasceram, quase nem podiam ser outra coisa senão heróis, de vontade própria porque crentes nos valores que os fizeram, a contra-gosto, outros, mas decididos.

Não creio que Brecht quisesse negar o herói em si próprio, no seu valor, na sua decisão de ir até ao extremo da dádiva em nome daquilo em que acredita, ainda que aquilo em que acredita, seja apenas a obrigação de cumprir um dever colectivo a que nenhum concidadão se deva furtar.
Brecht não aceitava a monstruosidade da fera que cresceu em seu tempo e no seu próprio berço, ainda que gerasse gente capaz de se imolar na ideia que lhes enchia a vida.

E dizendo isto, assim, nem parece necessário pôr mais na carta porque ninguém ignora o que nela ficaria dito, se mais dissesse.
Portugal não tem gente dessa. Ou pelo menos, se teve em tempos, gente acolitada em torno do ódio, da repressão assustadora, da ideia da penitência extrema, da necessidade da dor e do sofrimento, se teve, foi em tempos outros, na sombra dos restos de feudalismo que o Renascimento só mais tarde varreria e que, hoje, todos repudiamos horrorizados.

O que fizemos no mundo, tomado no seu balanço global, não nos envergonha como povo, antes pelo contrário, tentando entender a fatalidade do sacrifício e do feito, individual ou de grupo, como necessidade absoluta do mundo para saltar em frente, nos dá a certeza de que fomos grandes na contribuição trágica e heróica que demos no passado ao futuro que nos é presente.

A guerra colonial!

Da guerra colonial não acrescentarei nada ao que já disse antes e confirmo agora. Éramos o que éramos, filhos de um País com uma história que, como todas as histórias, se interpreta de um modo ou de outro, conforme o dono da verdade transitória.

Tínhamos os olhos em heróis e mártires do passado que nos diziam desígnio nacional quase divino, quase ordem de um deus que nos davam ao contrário, não como consequência dessa necessidade humana e global de melhorar o mundo, mas como valentia musculada e portadora de superioridades raciais.
Mais nos falaram de bravos que de trovadores; de guerreiros que humanistas; de homens de armas que de poetas. No entanto, enchemos o tempo e oferecemos ao mundo, de uns e de outros.

A História da América Latina está cheia dos sangue dos povos anteriores e posteriores a Colombo, mas falavam mais castelhano e se chamavam Cortez ou Pizarro ou Balboa ou Orellana ou Valdívia ou Ponce de Leon os autores dos massacres, e não Antónios ou Joaquins de qualquer coisa.
Ocupámos, sim, na prática da época que mais ouvia a palavra domínio que sermões aos peixes. Mas nem ladrões, nem torturadores fomos, senão na emergência de necessidades de sobreviver.

Os colonizadores que ocuparam as terras descobertas, não eram senão colonizados.

O saque em África e na América Latina, não fomos nós que o fizemos e do que trazíamos nos deixávamos espoliar no mar pela pirataria inglesa e holandesa ou em negócios parvos da nossa elite analfabeta.

Como homens em armas, pelo menos, estamos limpos dessa prática de massacrar, tão própria de outros povos, mesmo europeus e actuais. Lutámos, apenas.

Poucas vezes encontrei tão claramente e em tão poucas palavras discurso que definisse "português" como em "Eva Luna" faz Isabel Allende. "Tenia doce años cuando conoció al hombre da las gallinas, un portugués tostado por la intemperie, duro y seco por fuera, lleno de risa por dentro. Sus aves merodeaban devorando todo objeto reluciente encontrado a su paso, para que más tarde su amo les abriera el buche de un navajazo y cosechara algunos granos de oro, insuficientes para enriquecerlo, pero bastantes para alimentar sus ilusiones. Una mañana, el portugués divisó a esa niña de piel blanca con un incendio en la cabeza, la falda recogida y las piernas sumergidas en el pantano y creyó padecer de otro ataque de fiebre intermitente. Lanzó un silbido de sorpresa, que sonó como la orden de poner en marcha a un caballo. El llamado cruzó el espacio, ella levantó la cara, sus miradas se encontraron y ambos sonrieron del mismo modo. Desde ese dia se juntaban con frecuencia, él para contemplarla deslumbrado y ella para aprender a cantar canciones de Portugal".

Amamos aquela gente contra quem combatemos. Abraçamo-los quando os encontramos e queremos para eles o melhor do mundo, não por remorso, não com saudade, não com vontade de voltar ao que fomos, sinceramente como irmãos que poderíamos ter sido e que poderemos ser agora e no futuro.
Se o merecermos nos chefes que, à vez, nos calharem.
Bem-aventurados sejamos, então

José Brás
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 9 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5618: Bibliografia de uma guerra (54): 30 anos de guerra colonial (José Brás)

Vd. último poste da série de 17 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5482: Controvérsias (60): Ainda as afirmações de Lobo Antunes e os apoios sociais atribuídos aos ex-combatentes (Arménio Santos)

5 comentários:

Anónimo disse...

Amigo Zé Braz,
a partir da afirmação "Os colonizadores que ocuparam as terras descobertas, não eram senão colonizados", falas mais qu'um livr'aberto, isto é, não podias ser mais didáctico em menos palavras, embora eu me ficasse por 'não odiar' o opositor (fosse em que guerra fosse... daquelas que não nos afectam).
Um abraço

Salvador

Anónimo disse...

Caro Zé,

Transfiro para aqui algo que disse ao Torcato!

Gostei! Gosto sempre, de quem sabe escrever, e esta Tabanca é um enxame.

Volto a Camões! "A condição humana"!

Aqui estamos todos concordantes, o Português fez a diferença: "Foi Humanista".

Podem filosofar, podem defender as teorias mais dispares, mas o Português, _é claro que toda regra tem excepção_ foi diferente.
Ontem e hoje na Guiné podemos confirmá-lo!

O abraço do tamanho do Cumbijã junto com o Guadiana,

Mário Fitas

Anónimo disse...

Caro José Brás

Vou plagiar o Alentejano do Cubijã, já que cheguei depois dele.
Gostei, visto que gosto de quem escreve bem.
Já agora também te envio um abraço, que o Comandante ABranco me deixou para ti. É meu conterraneo, não sei se sabias, ainda do meu tempo, se bem que mais novo e já não passava por cá faz um tempão. Lembrei-me da tua ou antes vossa TAP e pronto.
Abraço
Jorge Picado

Jorge Narciso disse...

Caro José Brás

Será o "plágio" sempre condenável?

Refiro-me aos casos em que ele é a expressão da "inveja" de alguém que, aberta e sinceramente, gostaria de ter o talento de transmitir concepções suas de forma, ao menos semelhante, ao que outrem o fez.
Por outras palavras
"Fazer suas as palavras de alguem"

Serve o "relambório" para por em evidencia uma frase que acabaste de Postar e que ouso sugerir aos estimados Editores, que nem que por um só dia, a elevem a isso mesmo na rúbrica respectiva do Blogue:

FRASE DO DIA:

Amamos aquela gente contra quem combatemos. Abraçamo-los quando os encontramos e queremos para eles o melhor do mundo, não por remorso, não com saudade, não com vontade de voltar ao que fomos, sinceramente como irmãos que poderíamos ter sido e que poderemos ser agora e no futuro.
Se o merecermos nos chefes que, à vez, nos calharem.
Bem-aventurados sejamos, então"

Com desejos (cetezas) que continues a gerar desejos de "plágios virtuais)

Um abraço

Jorge Narciso

JD disse...

Camaradas,
Este texto do Zé Braz tem direito a figurar na selecta do blogue.
Primeiro, porque está muito bem escrito, a confirmar as virtudes do autor e a importância que ele pode constituir para nós, para nos fazer ver, sentir e pensar. Depois, porque aquela citação da Eva Luna, caracteriza muito bem o aventureirismo nacional, a capacidade de penetrar e estabelecer-se em comunidades onde outros não chegam, apenas com a ambição de viver.
Finalmente, porque mostra alguns mecanismos que ainda nos condicionam e podem levar à demanda de terras e gentes.
Pelo que conheço, posso afirmar que na África que nos foi contemporênea, pouco mais fomos do que feitores dos interesses dos trust internacionais, para onde se canalisavam as riquezas das terras que adminitrávamos, apesar da grande obra que estava em realização.
Abraços fraternos
JD