sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5687: Notas de leitura (56): Armor Pires Mota (1): Tarrafo e Baga-baga, duas surpresas de um combatente repórter (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos, (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Janeiro de 2010:

Queridos amigos,

Trabalho não falta.
Primeiro, ler o Armor Pires Mota de fio a pavio. Aqui está o primeiro diário da Guiné, não percebo a injustiça dos homens, só faltou sepultá-lo vivo, talvez por ter acreditado que a Pátria não se discute, defende-se.
Depois, tenho aqui um calhamaço do Manuel Fialho “Além do Bojador”, uma edição patrocinar pela Câmara de Moura. Na Associação 25 de Abril há também cofres para abrir.
E depois o CIDAC, a Guiné também mais escritos do que muitos supunham. Resta saber o que vamos pedir aos nossos amigos guineenses, eles têm obrigação de abrir os seus cofres. Indo directo ao assunto, é importante que pessoas como o Leopoldo Amado e o Pepito agitem as hostes. O primeiro recado está dado.

Um abraço do
Mário



Armor Pires Mota:
"Tarrafo" e "Baga-Baga", duas surpresas de um combatente repórter


Beja Santos

É incompreensível o manto de silêncio que tem coberto o nome de Armor Pires Mota, nas últimas décadas, como combatente-escritor da Guiné. “Tarrafo” é um livro único: é o primeiro diário de um oficial que escreve no teatro de operações e publica quinzenalmente num órgão da imprensa regional da metrópole. Estamos em 1964, os vigilantes da censura não se apercebem que o repórter revela em directo o que se está a passar na Guiné: que há T6 que bombardeiam os objectivos para onde se dirigem tropas especiais ou unidades em que vai o autor do diário; ele fala de nomes e localidades, data os seus textos, esmiúça o comportamento dos guerrilheiros, fala em santuários como o Morés ou descreve a batalha do Como, dia após dia, semana após semana, mês após mês. Outro valor histórico não tivesse e ficariam parágrafos indesmentíveis, solenes, melancólicos, pensamentos que ocorreram a qualquer um de nós, como se transcreve:

“Escrevo do meu abrigo, onde o dia é longo e a noite dolorosa, quase uma eternidade. No princípio sofria o cacimbo, mas olhava o céu azul, tropical, a lua, as estrelas e um satélite vagabundo riscando os espaços ou mesmo um avião desconhecido, voando alto (15 de Março de 1964, ilha do Como).”

"Jantei. E o tempo correu no rio, no escuro e na vida, com aquela caixa de papelão que deitei fora e agora fugia, carregada de estrelas e azul, não sei para onde. E a noite continuou a divagar nos meus olhos e nos meus ombros, até que acordei ancorado ao largo de Bambadinca, porque a maré estava na vazante. E ergui-me ao sol claro com uma gazela correndo timidamente (24 de Maio de 1964, Bafatá).”

“As prisioneiras, sentadas num tronco de árvore, devoravam a sopa e o pão que os soldados lhe davam. E uma delas, ainda de olhos húmidos, contou a história: ela e a outra (e apontou uma mulher nova, de lábios carnudos, que andava grávida), eram mulheres de um Balanta a quem os terroristas espancaram, obrigando-o a agarrar em armas contra o branco. Ele agora estava doente e tinha ficado com uma menina de três anos. E chorava:

- Mim ter menina... (27 de Maio de 1964, Sitató).”

“A palavra que o podia ter salvo, condenou-o, porque se sentiu cúmplice como tantos outros. Tomado de espanto e ao mesmo tempo de um frio a varar-lhe os ossos, largou a bicicleta, mas os passos iriam tropeçar-lhe no fim do caminho da existência.

- Fogo!

E as balas crivaram-no imediatamente. Caiu como uma pedra. Mas, num estertor febril, ergueu-se. Voltou os olhos para nós, para a vereda. Uns olhos terrivelmente raiados de sangue, negros, por detrás dos quais havia palavras para dizer, mas que não lhe vinham à boca, ligeiramente aberta, e maldições a lançar sobre as nossas cabeças ou, talvez, um grito de perdão.

Eu, como um criminoso, (mas que, de facto, não era), atirei a arma por terra e berrei-lhe:

- Cá fuge! Bó cá fuge! (11 de Junho de 1964, Lamel).”

O combatente repórter segue para Jumbembem, aí vai combater, patrulhar e emboscar. Escreverá o seu diário em localidades como Farincó Mandinga, Canjanbari ou Cuntima. São apontamentos curtos, incisivos, por vezes metálicos, onde não escapa o volteio poético, a descrição brutal, os gemidos, os desalentos, um olhar quase etnógrafo, o anseio por regressar. Em 11 de Junho de 1965, em Jumbembem, regista as suas últimas notas íntimas:

“Mas que é para nós um calendário? Uma estrada monótona de cômoros sem amoras e borboletas; um pedaço de papel que podia não ter existido, um ponto morto. Mas diz-me tanto o calendário cravado na parede! Quadradinhos vermelhos: dias doridos de poentes de sangue; carne anavalhada por estilhaços de morte, enrodilhada de medo, atrás de uma árvore ou nas bermas das picadas, ou montada em gloriosos corcéis de batalha, vencendo tudo e todos; combates ensopados em chuva ou lama para lavar as feridas; minas que desfazem viaturas, levando-as pelo ar com os homens; sangue, muito sangue, morte.

Quadradinhos negros: dias feitos de nada, inúteis, como uma folha que o cacimbo apodreceu; dias impossíveis de construir, em que atiramos a alma para trás das costas, de braços caídos nos braços da cadeira...”.

O poeta que se anunciava neste diário confirmou-se com o livro “Baga-Baga”, galardoado com o prémio Camilo Pessanha. Armor Pires Mota revisita a Guiné, exalta tocadores de Korá, os ritmos de batuque, a beleza da mulher africana, apela a uma reconciliação dos homens, comove-se com as crianças, é tudo um lirismo singelo onde cabem as suas recordações de combatente como o Natal, o batuque dos bombolons, o sentido épico da missão cumprida.

Todos aqueles que versejaram, que rabiscaram as suas odes, sonetos, poemetos e outros arroubos poéticos, sentem como é sincero o entusiasmo do poeta quando regista o que sente o que vê os outros sentir, como em


Sambaro tocador de Korá

Sambaro, à sombra do mangueiro em flor,
torso nu, dedos longos,
canta tristezas no seu Korá

E crianças, de olhos gregos,
cigarras da tarde lenta,
procuram a música branca
que fica do rio manso
na ponte de pedra.

Sambaro, à sombra do mangueiro em flor,
torso nu, dedos longos,
canta tristezas no seu Korá

Quem entende Sambaro, olhar macilento,
cantando não sei quê no seu Korá?

Chora, coração dentro da voz do vento,
terras longe, destino que não há.







Este “Baga-Baga” é de 1968, ano em que publica, também na Editora Pax, “Guiné Sol e Sangue, contos e narrativas”, de que iremos falar a seguir.

Estes livros de Armor Pires Mota passam a ser pertença do blogue.

MBS








__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 16 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5657: Notas de leitura (55): No Regresso Vinham Todos, de Vasco Lourenço (Beja Santos)

3 comentários:

Anónimo disse...

Obrigado, caro camarada Beja Santos, por nos ir alertando para estas obras. No fundo, e como destaca, é mais vasta do que se pensava a bibliografia sobre a guerra do Ultramar.
Levanta, ainda, uma questão interessante: a "distracção" da censura ao deixar publicar textos destes. Não passariam, evidentemente, na imprensa "nacional" de Lisboa e Porto. Há quem diga que passavam na "Província" por incompetência dos censores. Não sei se seria só isto. Há que ter em consideração as relações sociais em meios pequenos, as solidariedades, as amizades pessoais, os pequenos favores, o desconforto com a crítica social, o "deixa andar", etc. Daí que, na imprensa regional, se encontrem textos como estes. É uma opinião, até pelo conhecimento que tenho de algumas situações parecidas aqui da imprensa açoriana.
Um abraço,
Carlos Cordeiro
Cada caso será um caso.

Anónimo disse...

Camaradas,nos anos setenta após ter regressado da Guiné numa visita a uma feira do livro,vi Tarrafo,e comprei li,devorei aquele livro,exaltava o valor do nosso soldado,e de uma realidade e descrição de factos impressionante,
na altura também me interroguei,
"como deixaram passar isto".
Vale a pena ler.
José Nunes
Beng 447
68/70-Brá

j_m_ferreira@sapo.pt disse...

Camarada Beja Santos:
Penso que chegou a altura de aqui desvendar um pouco mais de não nos conhecermos. É verdade!
Mas conheço-o. Há muito! Como? Explico:
Era seguidor atento dos artigos da «Soberania do Povo» - Águeda, para onde mandava os escritos (importantes) sobre consumidores e quejandos.
Depois aqui o vim encontrar.
Fui eu que dei a nefasta notícia do falecimento da tua filha à «Soberania do Povo». E eles publicaram. Era o mínimo que podiam fazer...
E foi neste jornal que o Armor Pires Mota trabalhou durante muito tempo. Foi meu companheiro de trabalho. Andámos juntos, ele levou-me para a «Soberania» para fazer uns «bitaites» para o Jornal.
Tenho ido a alguns lançamentos dos seus livros. Que não tenho todos.
Foi para mim uma surpresa ver aqui a menção a esse combatente, que regressou comigo da Guiné no «Niassa». Sem sabermos um do outro!
O Carlos Vinhal já o contactou para fazer parte desta comunidade de uma «Tabanca muito grande».
Ele ainda não apareceu e eu não sei porquê. Não moramos muito longe um do outro, mas raramente passo ou vou à terra onde reside.
Já lhe telefonei por causa da nossa Tertúlia, mas ele não deu cavaco às tropas.
Não sou pessoa de muita fluência, não passo de um «zé-ninguém», mas não deixamos de ser amigos.
E sei o quanto me valeu nuns dos momentos dolorosos da minha vida.

Um abraço,

José Marques Ferreira
j_m_ferreira@sapo.pt