terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 – P5675: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (28): Baptismo de fogo - Parte 2



1. O nosso Camarada José Eduardo Reis de Oliveira (JERO), foi Fur Mil da CCAÇ 675 (Binta, 1964/66), enviou-nos uma mensagem (a 28ª), com a 2ª parte do seu baptismo de fogo, com data de 16 de Janeiro de 2010:

«Baptismo de fogo» - Parte 2

Rescaldo da operação «Lenquetó»

6 de Julho de 1964

Com a Companhia reunida foram lidos pelo nosso Capitão dois “rádios” com louvores à Companhia pelo êxito da operação de Lenquetó, que a seguir transcrevemos:

«PARA CMDT C. CAÇ. 675
DE CMDT B. CAV. 490
64815JUL64
N.º 2 1/0
ESTE COMANDO TEM MUITA SATISFAÇÃO EM TRANSCREVER
(MENSAGEM N.° 2532/CP 333. 1 DO CHEFE DO ESTADO MAIOR
DE 51155JUL64):
QUEIRA TRANSMITIR C. CAÇ. 675 MUITO APREÇO SATISFAÇÃO
SEXA COMILITAR ÊXITO ACTUAÇÃO LENQUETÓ MERECEDOR
CONFIANÇA COMANDO DEMONSTRATIVO NOTÀVEL ESPÍRITO
MILITAR COM VOTOS CONTRIBUA MODIFICAÇÃO SITUAÇÃO SECTOR.»

COMANDO TERRITORIAL INDEPENDENTE DA GUINÉ
NOTA N.° 42 P.° 103.6
BISSAU, 6 DE JULHO DE 1964
AO SR. COMANDANTE DO B. CAV. 490.
ASSUNTO: - SAUDAÇÕES
GOSTOSAMENTE ENDEREÇO A ESSE COMANDO PEDINDO PARA TRANSMITIR
A TODOS OS OFICIAIS, SARGENTOS E PRAÇAS DA COMPANHIA 675 QUE
TOMARAM PARTE NA ACÇÃO SEU SITREP N.° 193 (LENQUETÓ); AS MINHAS
MELHORES SAUDAÇÕES E FELICITAÇÕES PELO ÊXITO OBTIDO.
O CMDT DO AGR 16
AS) J. A. PINTO SOARES
COR. DE INF.ª

À distância no tempo parece-nos de particular relevância transcrever as memórias na “primeira pessoa” do então Capitão Tomé Pinto (FREIRE Antunes, José. A Guerra de África (1961-1974), "Tomé Pinto - Capitão do Quadrado"; Vol. II; p.819;Lisboa; Círculo de Leitores):

(...) "Uma vez estive cercado e para sair do cerco foi complicado. Foi logo das primeiras vezes. Eu vinha com o tal “quadrado” mas eles eram em maior número porque tinham vindo reforços e tinham uma companhia muito boa. Tenho de elogiar os meus adversários porque eles eram, de facto, muito bons.

Eram os chamados bigrupos, muito bem treinados. Fiz um ataque numa determinada zona e quando vinha a caminho, depois de ter colocado postos de recolha e de reforço a caminho, e de empenhar todo o efectivo, comecei a ter tiros de todo o lado, já muito próximo do primeiro posto de reforço.

Pensei que estava cercado. Os homens do PAIGC fizeram bem: sentiram o meu dispositivo, viram que ali não iriam só por um dos lados e decidiram provocar ali qualquer coisa, esperando, deitados. Houve logo uns feridos, alguns com uma certa gravidade, e aí começou o drama.

Comecei aos gritos: «Alarga, alarga, alarga.» Isto para alargarem o quadrado. Eles tentaram romper o quadrado mas não conseguiram.

A certa altura, eu disse para um soldado: «Cuidado com os tiros, estás quase a dar-me um tiro.» E ele disse-me: «Meu capitão, não sou eu, é um que está ali à frente.»

Eu saí dali para ir dar outras indicações e, passado um bocado, veio ter comigo esse soldado, com uma arma ao lado, e disse-me: «Era esta a arma que estava a fazer fogo contra si.»

Eu nem lhe disse nada.

(Nota do “cronista”:Está claro que o nosso Capitão não de esqueceu de mais tarde louvar o Soldado Chita Godinho pelo seu acto de bravura).

Então, pedi o apoio da Força Aérea e vieram dois T-6.

O meu batalhão era o do tenente-coronel Fernando Cavaleiro, que aparecia sempre no meu estacionamento nos momentos mais difíceis, e que pensou: «É desta que o Tomé Pinto não se safa.»

Mas eu consegui entrar em contacto com os T-6 e disse-lhes que tinha um ferido muito grave que teria que ser evacuado em helicóptero. Eles disseram-me: «Nós estamos a ver o teu dispositivo mas à volta há muita gente.»

E iam levando uns tiros nos aviões. Eu respondi-lhes: «Tem que ser, não há outra hipótese. Eu vou identificar o nosso dispositivo.»

Consegui identificar o nosso dispositivo, levantando um e depois outro, e depois fiz um tiro à nossa volta, para que o helicóptero pudesse aterrar no meio do quadrado, que eu fui alargando.

O piloto foi excepcional, conseguiu aterrar no meio do quadrado, eu meti dois soldados feridos, um deles muito grave, e o helicóptero levantou.

Aí pensei: «A partir de agora é connosco.»

Contactei os T-6 e disse-lhes: «Eu tenho um grupo que está em tal lado. Vocês vão até ao meu estacionamento e vejam se está um grupo aqui e outro ali.» «Sim, estão identificados», disseram eles. «Então, ninguém mexa porque eu estou em ligações com eles. Agora, vais bombardear esta zona entre aquela árvore e aquela árvore, para abrir um caminho», pedi-lhes.

Eles perguntaram: «E se acertamos em vocês?»

Respondi que eles tinham mesmo de bombardear e eles usaram só tiros de metralhadora.

Então alertei o pessoal e saímos imediatamente atrás dos tiros de metralhadora.

Nessa altura, o piloto, entusiasmado, dizia-me: «Já percebi o que querias!» Consegui fazer o torneamento. Depois, saímos de lá com algumas dificuldades, fomos até ao primeiro posto de recolha, que tinha ficado a assegurar-nos a retaguarda, chegaram viaturas e fomos para o estacionamento. Foi um desgaste físico, um cansaço muito grande. Foram muitas horas... das duas da madrugada até perto da uma da tarde.

Quarenta e alguns anos depois...

O «baptismo de fogo» é um dos momentos mais marcantes da vida de um militar.

Ninguém sabe como irá reagir.

Alguns «heróis» das paradas dos quartéis agarram-se ao chão que nem lapas e outros, até ali mais discretos, conseguem dominar o medo e portam-se como Homens.

Há um momento decisivo.

Ou fazemos o que é o nosso dever ou perdemos o respeito dos outros.

E passamos a (con)viver mal com nós próprios...

Na operação Lenquetó, no norte da Guiné nos primeiros dias de Julho de 1964, fomos emboscados e tivemos vários feridos. O mais grave foi o 1º. Cabo Marques, que foi atingido no baixo-ventre.

Aguentou as dores que nem um valente.

Nos seus poucos queixumes julgo que só lhe ouvimos dizer... «Meu furriel, estou feito. Não vou voltar ser um homem normal...»!

«Está claro que vais, Marques. Aguenta só mais um bocado.»

Quando o helicóptero chegou para o evacuar estávamos cercados e debaixo de fogo.

O Alferes Tavares aproximou-se para levar ao colo o Marques.

Antecipei-me. Era eu o Enfermeiro.

Era eu que o tinha de levar até ao helicóptero.

O capitão Tomé Pinto e o Alferes Tavares deram-me protecção.

Os metros que percorri com o Marques ao colo, até ao helicóptero, foram bem compridos.

Só me recordo de ouvir as pás do helicóptero e... as batidas do meu coração.

Não mais esquecerei aqueles minutos. Foram 5 minutos muito coooompriiidoos!

Mais de 20 anos depois... conheci numa reunião de ex-combatentes... as filhas do Marques.

A maneira como me abraçaram deu para entender que sabiam “alguma coisa “do papel que eu teria tido em relação ao seu nascimento...

Foram minutos de intensa emoção.

A expressão do seu afecto foi uma «medalha»... para toda a vida. Uma recompensa... eterna.

E já estive com o Marques e uma sua neta em 2008!
(foto da esquerda)

Um abraço,
JERO
Fur Mil Enf da CCAÇ 675


Fotos: © Jero (2009). Direitos reservados.

___________
Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

1 comentário:

Hélder Valério disse...

Caro JERO

Já antes tinha tido a oportunidade de te ler e através dos teus relatos conhecer melhor a actividade altamente meritória dos enfermeiros.
Esta é mais uma e sem dúvida também com final feliz. Ainda bem!
Por outro lado, o relato das acções militares propriamente ditas também está bem feito, proporcionando um clima que nos faz entender como se viveram esses momentos.
Um abraço
Hélder S.