quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5877: Notas de leitura (70): Os Sinos de Bafatá, de Joaquim Ribeiro Simões (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Fevereiro de 2010:

Queridos amigos,
Às vezes pergunto-me:

- Para que é que é necessário escrever isto? Por que é que nos castigam a ler coisas verdadeiramente intragáveis?

Isto tem a ver com o livro em causa e muitos outros que naufragaram ou naufragam logo no cais de partida. A literatura sobre a Guiné é também uma amostra das boas intenções que acabam por redundar em desastres literários.

Um abraço do
Mário


Os Sinos de Bafatá

Beja Santos

Os Sinos de Bafatá (por Joaquim Ribeiro Simões, Edição de Autor, Lisboa, 1988) é um livro singular no conjunto de toda a literatura colonial respeitante à Guiné, permite uma vasta e plausível panorâmica da evolução dos acontecimentos do Leste, em meados dos anos 60, a partir da narrativa de um alferes adjunto do comando do batalhão. Como habitualmente, temos o desembarque das tropas no cais do Pidgiquiti, um desembarque um pouco bizarro em que os diálogos se processam numa comunicação impossível no tempo e no espaço. Um exemplo:

“Cruzámo-nos com uma coluna de jipes e unimogues em pé de guerra. Reparei no capitão, sujeito altivo e espalhafatoso, teatral, daqueles homens que gostam de se mirar no espelho.

- É o capitão Sequeira, dos comandos, tipo terrível. Com ele, os turras não fazem farinha. Sempre que se enfia no mato, traz armas e prisioneiros. Se houvesse cinco capitães como este, a guerra acabava-se num mês. O pior é que o maltim vem para aqui mandrionar e enfrascar-se com cervejas e uísque.

O major Monteiro esboçou um sorriso complacente:

- Ouve, rapaz, uma guerrilha não se vence num mês nem num ano, nem mesmo em dez. E sabes porquê? Têm o tempo todo a seu favor. Os capitães Sequeiras não passam de minúsculas peças de uma máquina gigantesca. A questão é outra, e tu, se ficares em Bissau, verás como eu tenho razão, já ouviste falar no massacre do cais do Pdgiquiti, há uns anos atrás? Quem ganhou com a morte de dezenas de trabalhadores portuários? Portugal não foi, com certeza. Essa acção estúpida apenas serviu para que o Amílcar Cabral acelerasse a organização do PAIGC”.

Aliás, trata-se de um batalhão muito especial, em que os oficiais superiores são oposicionistas e não escondem, têm discursos premonitórios sobre a evolução da guerra, falam todos entre si com elegante fraseado. Rodrigo é o narrador, conhece Luzia, a filha de um rico comerciante, ela é uma simpatizante do PAIGC, fica logo num derriço por este narrador superculto que se vira obrigado a abandonar o ensino para se prantar à beira do rio Geba. O major João Monteiro, segundo comandante, tem longas tiradas sobre o destino daquela guerra, é um livro aberto em ciências políticas, etnografia, etnologia e muito especialmente sobre a história da Guiné em que ele disserta como se fosse o comandante Teixeira da Mota. Lá vão para Bafatá, onde os problemas se chamam Banjara e o Caresse, isto na hora da chegada. Para que o leitor não entre em especulações e nunca se esqueça que está no meio de gente culta, descreve-se Geba, depois Sarebacar, viaja-se Cantacunda, Camamudo. Chegou a hora das operações, começa-se pela região do Caresse, liberta-se a estrada de abatizes, avança-se até Sare Dico, sempre acompanhado de um esquadrão de reconhecimento. Ao novo batalhão de Bafatá chegam notícias que no sector de Nova Lamego as coisas estão feias em Beli e Madina do Boé. Interrompendo a narrativa bélica, Rodrigo vem de férias, reencontra Luzia, fazem sexo desalmadamente. Ela aproveita para lhe relembrar que se sente atraída pelo PAIGC e convida-o a desertar. Acaba tudo em zanga e, por artes mágicas, Rodrigo volta a Bafatá. Ficamos a saber que há três batalhões no Leste da Guiné, há uma companhia em Fá Mandinga, bastante guerra no Xime e até no Xitole. Rodrigo retoma a relação afectiva que estabelecera com Irene, antes de ir para a guerra, por essas cartas (ou aerogramas) vamos ficando a saber que a situação de deteriora entre Cambaju e Sarebacar. Nas horas de ócio, o major Monteiro continua a desancar sobre o colonialismo, os oficiais do Estado-Maior, recorda com saudade os apoios que deu às candidaturas de Norton de Matos e Humberto Delgado. As visitas de Rodrigo aos quartéis da região prosseguem: Fajonquito, Ualicunda e outros pontos outrora calmos. Depois ocupa-se Banjar, o que vai aliviar a vida do batalhão de Mansoa. Rodrigo viaja até Pirada e Paiunca, passando por Sonaco, ao tempo tudo parece estar calmo. Volta-se novamente ao Caresse, uma terra de ninguém de onde o inimigo foge e depois regressa calmamente. De quando em vez, o autor confunde-se abertamente com Rodrigo, não sabemos quem é o alter-ego do outro, chovem permanentemente críticas: “Os brancos radicados na Guiné, talvez pela sua escassez, não alardeiam o ardor bélico dos angolanos, sempre prontos a pegar em armas e a defender as suas fazendas. Sejam do continente ou do Líbano, vivem alheados desta meia-guerra que os transcende. Verdade seja dita, a guerrilha de Amílcar Cabral evita molestá-los, demonstrando neste ponto inteligência: no futuro poderão ser úteis à economia do país... dentro da legião de especuladores, sobressaem os libaneses. Sovinas, metidos na sua casca, indiferentes ao sofrimento alheio, estes descendentes dos fenícios vão atulhando os seus cofres com as notas esbulhadas àqueles que labutam milhos e mancarra ou aos que sacrificam saúde e vida para que os mercadores continuem a deglutir tranquilamente o seu bolo”. Luzia aparece de surpresa em Bafatá, ela propõe-lhe casamento, ele difere, mas a vida sexual dos dois é imparável. Depois chega a época das chuvas, Rodrigo continua a escrever a Irene, fala sobre os cabo-verdianos, a intensidade da guerra. Novas férias de Rodrigo, ele descobre que ama Irene, Luzia entretanto fugiu com outro. De novo em Bafatá, Rodrigo retoma as suas conversas com o major Monteiro, este está cada vez mais irado com a sua geração, a situação em Madina de Boé agrava-se, as destruições do PAIGC aparecem como incompreensíveis a estes intelectuais, já que as populações nativas são massacradas. Chegou a vez de criticar os negócios de Miguel Santos, o comerciante de Pirada que o autor considera um personagem digno da “Peregrinação”. Rodrigo vai registando o agravamento da guerra e diz aonde: Xitole, Ponta do Inglês, Xime, Enxalé, Porto Gole e Jabadá. E um dia, depois de um Natal tristonho, anuncia-se o regresso do batalhão, Irene está pronta para casar com Rodrigo, o major Monteiro profere as derradeiras catilinárias. E ficamos a saber que as Igrejas de Bafatá não têm sinos, cada um tire as conclusões que quiser do título da obra.

Assim termina o livro de um coronel de cavalaria, licenciado em ciências históricas e filosóficas. Às vezes, interrogo-me o que impele um veterano da guerra a escrever sobre memórias numa frente de combate, introduzindo-lhe diferentes doses de ficção. O irreal dos discursos é o que mais me choca em livros do tipo “Os Sinos de Bafatá”: a impossibilidade de ter acontecido, a verdade retorcida com alegados primores literários, a incapacidade de comunicar os sentimentos genuínos de cada um, seja ao nível de pelotão, companhia ou batalhão, burilando caracteres ao sabor do desejo insaciável de um autor que perdeu todas as amarras ao tempo e ao espaço. No fundo, uma incomunicação de alguém que tem o poder de escrever e não se questiona se os outros viveram estes ou aqueles acontecimentos que tornam a ficção incompatível com as alegrias e as dores que todos, sem excepção, ali viveram. E estes autores persistem, autistas, indiferentes à falta de público, ao ridículo, à escuridão literária para onde se remetem. Neste caso, valha-nos, ao menos, saber o que aconteceu em Bafatá, em meados dos anos 60.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 22 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5864: Notas de leitura (69): Guerra Colonial - Angola - Guiné - Moçambique, Edição Diário de Notícias (Beja Santos)

1 comentário:

Unknown disse...

Fui militar em Bafatá (Guiné) na década de setenta. Depois de aqui ler o comentário do senhor Beja Santos, ex-Alf Mil, Respeitável senhor de toda a ciência do mundo, capaz de pôr o globo em rotação apenas com meia dúzia de palavras, quero dizer-lhe apenas estas palavras: eu, ainda não li “Os Sinos de Bafatá”, não conheço o autor, nem sei onde adquirir esse livro que gostaria de ler. Contudo, ninguém me verá ou ouvirá, fazer crítica a um livro, por não saber destrinçar ficção de realidade, como acontece com o referido senhor. Este País está cheio de sábios superiores.

Bem-haja,
Carmindo Pereira Bento