domingo, 28 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5906: José Corceiro na CCAÇ 5 (5): Primeiro ataque a Canjadude, o meu baptismo de fogo

1. Mensagem de José Corceiro (ex-1.º Cabo TRMS, CCaç 5 - Gatos Pretos -, Canjadude, 1969/71), com data de 25 de Fevereiro de 2010:

Caros camaradas, Luís Graça, Carlos Vinhal, J. Magalhães,

É com agrado que redigi alguns dos momentos passados, em Canjadude, quando do primeiro flagelo à CCAÇ 5.
Deixo ao vosso critério.
Um Abraço
José Corceiro

2. Caros Tertulianos
É com satisfação, que a vós me dirijo a relatar algumas das emoções que vivi, quando tinha um mês de Guiné e sofri o baptismo de fogo, no Aquartelamento de Canjadude, CCAÇ 5.


PRIMEIRO ATAQUE A CANJADUDE

Paira uma aura de receio e insegurança nos Gatos Pretos, do Aquartelamento de Canjadude, a movimentação e agitação operacional têm sido excessivas em função do que é habitual, os ventos que sopram não são de feição, não se aproxima bonança! Há desconfiança e cautelas redobradas com os passos que se dão na CCAÇ 5.

Dia 28 de Junho 1969, os Gatos Pretos, numa operação no mato, tiveram um contacto, ainda que fugaz, com o IN, foram vistos pouco mais de meia dúzia de elementos, que ao serem detectados e perseguidos pelas NT, se dissiparam e esfumaram no matagal deixando ténues vestígios da sua presença; um boné, algumas munições e pouco mais! A valentia e coragem dos Gatos Pretos, comandados pelo Capitão José Manuel Pacífico dos Reis, foi posta à prova demonstrando moral elevada, destemor, galhardia, audácia, ao perseguir o IN a peito aberto, sem fazer fogo e sempre a gritar, Gato Preto Agarra à Mão… Foi uma prova de fogo que deu para aferir que há avidez de guerrilha neste grupo, que quer vingar os seus irmãos de sangue, vá-se lá saber o quê e porquê, que só a ubiquidade e desígnio de Deus conhece.

No Posto de Rádio têm-se captado algumas comunicações em Espanhol atípico e manhoso, outras em língua irregular (mistura de idiomas), comunicações curtas, tipo flashs, ficando-se com a sensação de que um dos interlocutores estará por aqui muito perto, pois a intensidade do sinal da recepção, nos nossos equipamentos, é fortíssimo e um dos intervenientes fala quase sempre em surdina, mais parece estar retraído a falar baixo para não ser ouvido. Há uma certa impaciência que é evidente no pessoal, ninguém se atreve a fazer prognósticos.

A actividade operacional de saídas para o mato tem sido a ritmo alucinante, não tem havido tempo para pausa.

Dia 26 de Junho de 1969, coluna a Nova Lamego; dia 27, operação para o mato, a nível de Companhia, dois dias; dia 28, contacto com o IN; dia 29, coluna a Nova Lamego e saída para o mato à noite (nestas saídas para o mato, à noite, saía-se por volta das 20.00h e regressava-se por volta da 24.00h); dia 30, saída para o mato à noite; dia 1 de Julho, saída para o mato à noite; dia 2, operação para o mato, com dois pelotões, eu também fui, durante o dia progredimos, no terreno, praticamente sempre debaixo de chuva e a caminhar com os pés dentro de água. Acampamos, para pernoitar, todos encharcados e enlameados, durante a noite quase sempre a chover e os mosquitos a atacar, pela manhã levantamo-nos a tiritar com frio.

Regressámos ao aquartelamento dia 3, na parte da tarde. Dia 5, saiu um pelotão para o mato, regressou às 23.30h. Dia 6, saiu pelotão para o mato à noite; dia 7, choveu torrencialmente, ao ponto de inundar o abrigo dos graduados, houve estragos em objectos pessoais. Dia 8 de Julho, era para ter havido saída para o mato, com 3 pelotões, mas as condições atmosféricas não o permitiram, neste dia veio um capelão para a CCAÇ 5. Dia 9, coluna a Nova Lamego; dia 11 de Julho de 1969, sai toda a companhia, juntamente com grupos de Pára-quedistas, para uma operação de três dias no mato. Eu fiquei no aquartelamento, não era a minha vez de sair e estava de serviço ao Posto de Rádio, das 12.00h às 15.00h e das 00.00h às 03.00h do dia seguinte. No aquartelamento ficou o grupo da formação, pessoal que não está distribuído por pelotões, juntamente com um pelotão, que veio de outro destacamento para fazer segurança a Canjadude.

Paralelamente a toda esta actividade e movimentação operacional para o mato, no Posto de Rádio tem havido um persistente vai e vem de troca de mensagens, algumas com prioridade Zulu (relâmpago).

A noite estava serena, tudo muito sossegado, ninguém quis folia, eu encontrava-me no abrigo Norte, deitado em cima da minha cama a ler o livro - 2455 Cela da Morte, de Caryl Chessmann - pois ia entrar à meia-noite de serviço, no Posto de Transmissões.

Eram 22.48h, do dia 11 de Julho de 1969, quando se precipitou inusitado ribombar, em que eu, o primeiro estrondo que ouvi, quis-me convencer que fosse um trovão, mas em milésimos de segundo, acordei o espírito e consciencializei-me que era o meu baptismo de fogo que estava em urdidura, estava a perder a virgindade de fogo no flagelo ao Aquartelamento de Canjadude. Saltei da cama para o chão, da parte superior do beliche, quis encontrar uma G3, pois eu não tinha arma distribuída. A lei da necessidade primária, sobrevivência, impôs que eu agisse e procurasse instrumento para me defender. Nestas décimas de segundo o gerador de energia eléctrica foi-se abaixo e ficou tudo às escuras, eu corro de mãos vazias para a saída do abrigo, saio e meto-me numa das valas, que me poderá conduzir ao abrigo do Posto de Transmissões. Cá fora, os rebentamentos eram constantes e afiguravam-se ser mesmo por cima de mim, ouvindo-se um ruído sibilo a cruzar a atmosfera em todas as direcções.

Eu fiquei perplexo e pensei:
- Que festival de fogachal tão bem orquestrado é fogo de guerra mesmo para matar, parece que os deuses estão contra mim?!

O bramir do ribombar, era incessante e havia ecos de explosões de proveniência indeterminada, vinham de todos os lados! Eu cogitava, que razões assistem a estes seres para despoletar tamanha barbárie? Fiquei cismado, confuso, embora não estivesse nervoso, mas estava um pouco amedrontado! Sempre me imaginei a reagir, numa situação destas, com conduta bem pior do que esta que estava a revelar, ao defrontar-me perante uma bagunçada com esta factual perigosidade, para a minha integridade física. Foi uma grande surpresa, para mim, esta minha atitude comportamental, diante de ameaça tão iminente, concreta e real. O fogo continuava violento e insistente, desconcertante, indistinguível, não conseguia percepcionar, nem ajuizar qual a proveniência dos disparos, era uma barafunda de silvos no espaço por cima da minha cabeça que me deixava baralhado. Os roncos dos rebentamentos são no ar, na frente, por trás e dos lados, isto é aterrorizador. Da nossa parte a reacção é nula, não se fazem sentir esboços de defesa!

Nisto ouço uma voz aflitiva e ofegante, minha conhecida, gritar:
- Os cabrões do caralho estão a atacar detrás das rochas!

Eu, hesitante e precavido, pensei logo:
- Sendo assim, tinham que matar as sentinelas dos postos de vigia, passar o arame farpado e colocaram-se atrás das rochas? Se isto foi possível, estamos perdidos, vai ser batalha campal!

Logo de seguida, ouço outra voz conhecida gritar apavoradamente:
- Os filhos da puta já andam cá dentro…

Eu, incrédulo e receoso, pensei:
- Isto está tudo numa mixórdia e eu não tenho arma para me defender, oh! Minha mãe como posso proteger a pele? Nisto avancei um pouco na vala, atónito, abandonado à intuição e à sorte, para ver se compreendia tamanha balbúrdia, para melhor me proteger e defender da embrulhada…

Em seguida, vejo a sair do seu abrigo, o 2.º Sargento Fernando dos Santos Rodrigues, com desembaraço, peito nu a descoberto, todo destemido, a gritar em altos berros:
- Despachem-se seus merdas, façam fogo, senão somos todos aqui apanhados à mão.

O Sargento Rodrigues correu para abrigo da metralhadora pesada, pegou nela e deslocou-a para cima do abrigo dos graduados onde a posicionou e começou a disparar na direcção da pista de aviação. Aparece também, creio ter sido, o Furriel Gil que andava meio empanado, dirigindo-se para o abrigo do morteiro 81 e começou a clamar por ajuda e a incentivar o pessoal que ocupassem outros abrigos de morteiro 81. (Nesta altura ainda não havia em Canjadude a Secção de Morteiros, que veio no ano de 1970, de uma Companhia de Nova Lamego, cujos elementos, Ferra, Viana… ainda que, na CCAÇ 5, houvesse Africanos muito bons a fazer fogo com os morteiros, neste momento estavam no mato.)

Passaram quatro ou cinco minutos desde o início do pandemónio, que mais pareciam uma eternidade, sem que houvesse grande reacção da nossa parte. Eu dirigi-me para o abrigo do morteiro 81 que estava instalado entre as traseiras da secretaria e o campo de futebol, com o intuito de poder ajudar em algo, tinha noções rudimentares de orientação de fogo e disparo do morteiro, embora não percebesse nada das inclinações precisas, que era necessário dar à arma para haver fogo de precisão ao alvo desejado. A minha acção limitou-se a abrir duas ou três caixas das munições do morteiro que estavam nas tocas laterais do abrigo.

Entretanto chegou pessoal que estava habilitado a fazer tiro de morteiro e eu saí dali, porque a minha presença até era perturbadora devido ao exíguo espaço que havia no abrigo do morteiro, além do incómodo para os ouvidos, provocado pelo rebentamento da carga, quando era percutida para dar impulso à munição do morteiro e se direccionar para o alvo pretendido. Da parte do IN, o fogo continuava a ser consistente, com rebentamentos impetuosos, intrincados com rastos de luz amarelada e sibilações indistintas, que rasgavam os céus em todas as direcções. Estava a apreensivo, pois estávamos muito acomodados e amontoados na mesma vala, alguns a fazer rajadas de G3 desordenadamente, sem direcção definida, um pouco ao acaso, que se podiam tornar perigosas para nós.

Passaram dez minutos, ou mais, desde o começo do ataque, quando se começaram a ouvir os disparos do morteiro 81 que estava na Tabanca, lado Sul/Poente. O morteiro da Tabanca foi aferindo e ajustando a eficiência dos seus disparos e a determinada altura as morteiradas começaram a cair no raio de perigosidade onde se instalara o IN. A partir daqui, o fogo IN abrandou e ao fim de aproximadamente meia hora, depois de ter começado a salganhada, o inimigo deixou Canjadude. A posição desta arma na Tabanca era privilegiada, porque tinha um ângulo de visão perfeito da localização onde o IN estava posicionado a fazer o ataque, distante do arame farpado 200 a 300 metros, colocado no limite da desarborização da berma paralela à pista de aviação. No Aquartelamento, para se ter um horizonte de perspectiva de ângulo eficaz para direccionar fogo para o IN, tínhamos que nos ter distribuído nas valas para o lado Norte, quando nós estávamos concentrados no lado oposto.

Estava consumado o meu baptismo de fogo! Felizmente sem ter havido um único ferido, resultado directo da acção inimiga. Prejuízos materiais, só a danificação do gerador, que não foi estrago de muita monta.

Ainda durante a enrascada já tinha ido para o Posto de Transmissões onde estavam em curso comunicações com o pessoal que estava no mato. Pelos relatos que houve, ficamos a saber que já depois de estarem instalados para pernoitar, se aperceberam de barulhos estranhos, não muito longe de onde estavam acampados, que estavam agora a associar que era o IN a deslocar-se para Canjadude. Nesta noite ninguém dormiu com receio de que o inimigo volta-se à carga.

A flagelação IN, excluindo a perturbação psicológica que nos marcou, saldou-se para eles num autêntico fiasco, ou o IN não tinha noção nenhuma da disposição do aquartelamento, ou confundiu as rochas com infra-estruturas deste, ou se não, foram nabos ao seleccionar o local de posicionamento para disparar as armas. Com este tipo de flagelo, Canjadude não podia ser atacado de Norte que tem as rochas a protegê-lo, a Sul tinha a Tabanca e muito arvoredo dentro desta, restam, Nascente do lado da bolanha, e Poente a posição mais vulnerável do Aquartelamento, porque fica todo sem protecção natural, expondo-se, todo à mira do fogo inimigo. Foi deste lado que atacaram, o mais indefeso, só que não souberam alinhar-se para que as estruturas do aquartelamento ficassem na trajectória dos disparos.

Se tivessem tido o cuidado de se deslocarem 50 metros mais a Norte, ficavam as linhas de fogo perpendiculares com a secretaria, a caserna, o refeitório, o depósito de géneros, o bar, a cozinha e os abrigos, e as primeiras roquetadas eram certinhas e podiam fazer muita mossa, pois estavam próximos do arame farpado. Devido à errada disposição, quase todo o fogo foi dirigido para as rochas, razão pela qual ficamos sem gerador de energia eléctrica, logo no início do ataque. O gerador estava protegido por uma rocha de frente, que por sua vez tinha atrás outra rocha mais alta onde rebentou uma roquetada, os estilhaços danificaram o gerador. Foi só o estrago material digno de registo que houve. No pessoal houve algumas escoriações, resultado de algum tombo nas deslocações nas valas, no escuro.

Vestígios da presença IN, além dos normais devido à utilização das armas de fogo, ficaram indícios de sangue em três ou quatro lados, que atestavam que pelo menos feridos tiveram.

A companhia regressou do mato dia 12 de Julho 1969. Com a protecção da CCAÇ 5 e a acção dos Pára-quedistas, foi desmantelado um acampamento IN, que antecipadamente foi abandonado. Deste feito, resultou a apreensão de bastantes munições, alguma roupa, pouco armamento e coisas de menor importância.

Para todos os camaradas, um abraço.
José Corceiro

Foto 1 > A minha cama no abrigo Norte, há prateleiras improvisadas onde guardava alguns livros, papeis, máquinas e rádio, sempre à mão. Este rádio que se vê, ainda hoje funciona

Foto 2 > Abrigo de protecção do gerador de energia. O IN atacou de frente, onde a mata começa, um pouco deslocado para o lado direito

Foto 3 > Rocha onde embateu a roquetada que danificou o gerador. Vê-se no lado direito os bidões que o protegiam. O primeiro abrigo que se vê, é o abrigo Norte; a seguir ao monte de terra é o abrigo do morteiro, abrigo do comando e a seguir abrigo dos graduados

Foto 4 > Um DO a levantar na pista de Canjadude. O IN atacou do lado direito

Foto 5 > Como era Canjadude quando houve o primeiro flagelo

Foto 6 > Vê-se o abrigo Norte. O fogo IN foi direccionado aqui para o primeiro plano da foto

Foto 7 > Corceiro a familiarizar-se com uma das armas que está na Tabanca, igual à que utilizou o Sargento Rodrigues no ataque, metralhadora Dreyse

Foto 8 > Corceiro no abrigo do morteiro 81 a simular a introdução de uma munição

Foto 9 > Corceiro com o morteiro 60, em posição de disparo

Foto 10 > Rocha em Canjadude, tendo no topo um posto de vigia. O acesso era feito pelas traseiras. Rocha com cerca de 15 metros de altura
Fotos e legendas: © José Corceiro (2010). Direitos reservados

___________

Nota de C.V:

Vd. último poste da série de 17 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5834: José Corceiro na CCAÇ 5 (4): Recordações do Sargento Enfermeiro Cipriano

4 comentários:

Anónimo disse...

José Corceiro,

É curioso e fazes-me alterar tudo o que eu pensava e até dizia, nos locais por onde passei, Mansoa, Aldeia Formosa e Bolama além de Bissau, não me lembra de ter visto qualquer pedra quanto mais uma rocha.

Estamos sempre a aprender.

Um abraço,
BSardinha

Anónimo disse...

A natureza juntou na tabanca de Canjadude as pedras da região em dois ou três maroiços.

Se a natureza tem feito isso na terra de José Corceiro...juntar as pedrinhas todas em dois maroiços!

Mas quem passou sobre o Curobal a caminho de Aldeia Formosa e de Buba tambem viu as rochas do rio.

Há, na região de Finete, bastantes rochas, à superficie e em profundidade.

São rochas de basalto.

De facto não deve haver rochas noutro lugar qualquer.

Antº Rosinha

Anónimo disse...

A natureza juntou na tabanca de Canjadude as pedras da região em dois ou três maroiços.

Se a natureza tem feito isso na terra de José Corceiro...juntar as pedrinhas todas em dois maroiços!

Mas quem passou sobre o Curobal a caminho de Aldeia Formosa e de Buba tambem viu as rochas do rio.

Há, na região de Finete, bastantes rochas, à superficie e em profundidade.

São rochas de basalto.

De facto não deve haver rochas noutro lugar qualquer.

Antº Rosinha

Anónimo disse...

Camarada BSardinha
As rochas, em Canjadude, têm orientação Nascente/Poente, estando grande parte delas dentro do Aquartelamento na parte Norte junto ao arame farpado. O filão, só se estende para as laterais do Aquartelamento cerca de 500m, para cada lado. Há lá pelo menos duas, com cerca de 20m de altura, tendo una delas acesso por plano inclinado onde eu passei muitas horas com inspiração para escrever. As rochas tão alinhadas que estão, mais parecem cogumelos ali semeados e nascidos, porque na área adjacente não há pedras. Se quiseres ver mais fotos com pedras de Canjadude, vê o poste P5648 e P5686.
Camarada António Rosinha
Na minha terra, de nascença, se juntassem o granito existente, fazia-se um” maroiço” até à lua, a não ser que a base tivesse uma grade área.
Poderei eu estar enganado, mas creio que não, as rochas de Canjadude não são basalto mas sim calcário.
Para os dois um abraço
José Corceiro