quinta-feira, 15 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6160: O Spínola que eu conheci (12): Missirá, Dezembro de 1970, vésperas de Natal: Quando Sexa, o Caco, ia perdendo o dito... (Jorge Cabral)

1. Já há tempos demos aqui a (boa) notícía de que as famosas estórias cabralianas, nascidas da veia humorística do Jorge Cabral, o mais lídimo representante da corrente literário-filosófico da guerra do absurdo (possivelmente só a par do nosso saudoso Raul Solnado), vão ser publicadas em suporte de papel, isto é, em livro... 

Pelo menos ele já me encomendou o prefácio, e garante que já tem editor, faltando-lhe apenas um bar de alterne, de preferência triste e rasca, como local condigno e mentalmente saudável para lançar a obra com as aventuras e desventuras do Nosso Alfero lá pelo chão fula...

Como humor com humor se paga,  eu fui ao arquivo repescar esta estória que não pode nem deve ser entendida como sinal de menos respeito pelo nosso antigo Com-Chefe, agora subido ao Olimpo dos Deuses e dos Heróis...

Em contrapartida, e porque não há favores (nem almoços) de borla, o Jorge cravou-me para lhe fazer a conferência mensal, lá no seu estaminé, na Universidade Lusófona... Vai ser a 28 de Maio próximo...E o tema adequa-se ao perfil do Nosso Alfero: A guerra colonial e as suas repercussões na sociedade portuguesa: um enfoque sócio-antropológico... LG


2. Quando SEXA o CACO, em Missirá, ia perdendo o dito (1)

por Jorge Cabral

O protótipo do Nosso Alfero, ou melhor, ex-Alferes Miliciano de Artilharia, filho de militar, com avoengos ilustres, estudante universitário, menino-boémio das Avenidas Novas, amador do Teatro do Absurdo, ... comandante, no TO da Guiné,  do Pel Caç Nat 63, destacado em Fá Mandinga e depois em Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71; hoje, advogado e professor universitário. "Trata-me bem deste homem, porque já não há disto" - foi a recomendação do Branquinho, há dias, em Coruche, no convívio do pessoal da CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) e subunidades adidas...

A mensagem, lacónica como sempre,  que o Jorge me mandou, rezava assim: "Luis Amigo e Companheiro, aí vai o relato da visita do Caco. Infelizmente não foi filmada... Um grande abraço, Jorge"....

O episódio passa-se em Dezembro de 1970... E já foi publicado na série Estórias cabralianas, na I Série do blogue, de mais difícil pesquisa e acesso (*)


Poucos dias faltavam para o Natal, e a tarde estava quente. Todo nu no meu abrigo, fazia a sesta, quando sou despertado por enorme algazarra misturada com os ruídos do helicóptero.
-Alfero, Alfero, é Spínola! - gritam os meus soldados (2).

(Estou tramado, o quartel está uma merda. Que visto? Apresento-me em estado de nudez? Não há tempo a perder. O pássaro já poisou e o General avança. Enfio uns calções antigamente verdes, umas chinelas, e claro uma boina, para poder fazer a devida continência).

Eis-me assim, garboso Comandante, apresentando a tropa, e os milícias, todos eles mal fardados, como era habitual. Sua Excelência, pede um intérprete, pois vai botar discurso. E começa:
- Debaixo desta bandeira… - e aponta o braço na direcção onde pensava que a mesma existia. Fica-lhe o braço no ar, mas continua:
- ... A Pátria… - , e notando a atrapalhação do tradutor, pergunta-lhe:
- Sabes o que é a Pátria?
- Não - responde aquele.

(Lixei-me! Vou ser despromovido, talvez preso. Dentro de mim um turbilhão de maus presságios começa a fervilhar. Mentalmente preparo réplicas. Não é necessária bandeira, pois a Pátria está dentro de nós, e por isso, meu General, é indefinível, responderei).

Mas o Caco nada me pergunta. Vem acompanhado de três majores e um capitão. Querem ver tudo. Primeiro a Escola. Onde funciona?

(Escola? Qual Escola? Pensa rápido, Jorge! Inventa!)

- Sabe, meu Major, estas crianças também frequentam o ensino corânico, que decorre ao ar livre. Por isso considerei que a nossa escola não devia ser enclausurada, pois tal podia traumatizá-las.
- Ainda assim…- começou o Major, impedido de continuar por um olhar do Com-Chefe.
- E o Heliporto? - indagou um outro Major - Parece muito atrasado.
- É que, meu Major, faltam os materiais e também operários especializados.
- Operários especializados? Então e os seus soldados?!
- Todos homens de Fé, meu Major. Tirando a actividade operacional, dedicam-se à reflexão.

Nem respondeu este Major. Logo outro se adiantou, interrogando o Amaral (3), sobre as povoações mais próximas. Em sentido, sério, calmo, respondeu o Amaral:
- Mato a Norte, mato a sul, mato a leste, mato a oeste, meu Major.

(Ah! Grande Amaral, vais fazer-me companhia na porrada!)

Mas o pior estava para vir! Sua Excelência queria testar o plano de defesa:
- Qual o sinal, nosso Alferes?
- Uma granada - improvisei eu.

Tendo-me dirigido à arrecadação não encontrei nenhuma granada ofensiva. Peguei então numa defensiva, e zás, lancei-a. Tudo tremeu! Manteve-se de pé o General, mas o caco caiu.

Entretanto os meus soldados, querendo mostrar heroicidade, encostaram-se ao arame, de peito descoberto, alguns mesmo sem arma.

(Agora sim, está tudo perdido! Que vergonha! E logo eu, neto de um herói de Chaimite).

Recomposto o Caco, olhou-me uma última vez e disse:
-Já vi tudo!.

Ao encaminhar-se para o helicóptero, ainda lhe ouvi comentar para a comitiva:
-Porra, que não é só o Alferes! Estão todos apanhados!

Deve porém ter ficado impressionado, pois três dias depois voltou. Eu não estava. Tinha ido a Fá, buscar uma garrafa de whisky, prenda mensal do Capitão João Bacar Djaló (4). Contou-me o Branquinho (5) que, quando o informaram da minha ausência, Sua Excelência exclamou:
- Ainda bem!

© Jorge Cabral (2006). Direitos reservados






Guiné > Natal de 1970 > RTP: Mensagem natalícia do Com-Chefe, Gen António Spínola. Vídeo da RTP (com a devida vénia...)

Vídeo (1' 39''): Alojado no You Tube > Nhabijoes  (conta do nosso blogue)

_____________

Notas de L.G.

(1) Caco (ou Caco Baldé) era a a alcunha, afectuosa,  por que era mais conhecido o General Spínola entre os seus soldados. Os seus pares chamavam-lhe o Velho, termo mais depreciativo.  O termo Caco queria referir-se ao vidrinho ou monóculo que ele usava, na vista direita... Baldé, por seu turno,  era um dos apelidos mais vulgares entre os fulas, aliados de Spínola...

(2) Este tipo de visita-surpresa, na quadra festiva (Natal e Ano Novo), por parte do Com-Chefe, António de Spínola, era frequente... Ia a todos os recantos da Guiné. O homem, já com 60 anos feitos, aparentava uma energia, física e mental, que pedia meças aos seus colaboradores mais próximos.

(3) Furriel Miliciano do Pel Caç Nat 63 (1969/71).

(4) Capitão graduado comando da 1º Companhia de Comandos Africanos, na altura sediada em Fá Mandinga.

(5) Furriel  Miliciano do Pel Caç Nat 63 (1969/71), irmão do nosso camarada Alberto Branquinho.

(*) 13 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXIV: Estórias cabralianas (6): SEXA o CACO em Missirá

8 comentários:

Torcato Mendonca disse...

Depois de ler este relato da Visita do Com-Chefe;depois de limpar os olhos, um homem também chora quando ri - porra; passo por cima do video/mensagem e, sem mais ler, quero dar-te um abraço meu Caro Jorge Cabral pelo escrito e pelo momento vivido, durante e após a leitura. Ao L Graça outro por o ter desencantado. Gaita isto merece "moldura"...
Ab do TM

Tabanca Grande Luís Graça disse...

José, gostaste... Eu também achei que era uma pequena obra-prima... Estás convidado para vir do Fundão ao bar de alterne, triste e rasca como a Pátria que temos... (Ah!, porra, nada de lamúrias, heróis do mar, nobre povo, nação valente e imortal, mesmo quando um homem tem fraquezas e vacila...)

PS - Dou-te guarida lá em casa. Jorge, marca o dia. O José, grande Viriato, virá lá do Covão da Beira.

Jorge Narciso disse...

doutro Jorge

Faço ideia a preocupação que o "nosso homem" levava para a sua segunda visita !
Respirou fundo, enfim... com a tua ausencia.

Que seria do "senso" sem estes aparentes "non sense"

Grande abraço e venha lá rapidamente o livro.

Jorge Narciso

Anónimo disse...

De antologia, realmente. Só ficamos na dúvida é se o Alfero ficou "apanhado" para sempre!
Belíssimo texto.
Um abraço,
Carlos Cordeiro

Anónimo disse...

Camaradas
Este texto é simplesmente espectacular.
Se o "Caco Baldé" tivesse ido ao Destacamento da Ponte de Rio Caium a seguir, de certeza que lhe dava um "xilique".
Ab
Luís Borrega

JD disse...

Muito bem, Alfero!
Se o Caco, hoje, tivesse lido o texto, seguramente havia de gostar, tal como eu, porque não só revela um alfero desenrascado, mas, um pelotão solidário, disciplinado, e... capaz de tudo. Pelo menos parecia.
Vamos lá para o alternanço, com elas, que se faz tarde.
Um abraço
JD

Hélder Valério disse...

Caros amigos
Sem dúvida aqui está um belo pedaço de prosa (e não só).
Será que aqueles que não passaram por lá conseguem 'entrar' no clima descrito? Será que o conseguem visualizar? Espero bem que sim, pois só dessa forma podem absorver todo o 'non sense' da situação.
Já agora, também vi o vídeo.
E não é que o CMDT Chefe estava já a fazer campanha e não percebíamos? Não é clara a intenção de buscar apoios e simpatias entre os ex-combatentes da Guiné (naquela data)?
Um abraço
Hélder S.

JD disse...

Helder, buenas!
Eu cheguei a casa nos princípios de 1972, e fiquei sob tutela paternal até Maio daquele ano.
Namorava e via os telejornais.
Lembro-me de o ver em cima de um jipe durante a inauguração do posto fronteiriço em Pirada. Mas, invariavelmente, a figura do General e as notícias da Guiné preenchiam uma boa parte do noticiário.
Ele tinha a máquina montada e estava a preparar caminho. Disso dei-me conta.
Um abraço
JD