quarta-feira, 28 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6268: Bibliografia de uma guerra (56): A Propósito de Até Hoje (Memória de Cão) (José Brás)

1. Mensagem de José Brás* (ex-Fur Mil, CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68), com com data de 20 de Abril de 2010:

A Propósito de Álamo de Oliveira
"Até Hoje (Memória de Cão)"**


A MEMÓRIA DO RIO

A leitura do poste de Beja Santos... trouxe-me à memória (de homem) baldões que dei e dou e damos todos pela vida fora.

Diz-se que o rio não passa nunca duas vezes no mesmo sítio, e a mim me parece ignorância de quem não leu Lavoisier e nem alcança um suspiro de pensamento sobre as voltas que água dá nos seus múltiplos estados, de líquido a gasoso se evapora, ou a sólido se congela; se eleva nos ares quando o calor a faz passar do líquido ao vapor, ou se sublimada directamente do gelo e dispensando a fusão; de vapor a líquido de novo, se arrefece o suficiente para condensar, pesar mais que o ar que a sustinha antes, caindo sobre as encostas, engrossando e voltando, quem sabe, ao mesmo rio onde tinha corrido já, antes das passas sofridas no entretanto.

E quem fala de água, fala de gente, por mais que se diga que história não se repete.

Li o que escreveu o Mário sobre o livro do Álamo, abriu-se-me a curiosidade de uma leitura, como quem volta a sítio em que já esteve antes, tentando confirmar que nunca o lugar é o mesmo em cada volta, na medida do cenário, nas falas das gentes, nos cheiros, nos sons, nas crenças.

Li cruzado mas li de novo.

Quase garanto que não foram as mesmas emoções que vivi agora na passagem desta água já nadada em tempos, desconfirmando o que eu creio sobre o correr dos rios.

O prazer de voltar ao mergulho e de sentir na pele de dentro o fresco das imagens e as palavras com que Álamo as constrói, foi outro talvez, maior, acho eu, do que da primeira vez.

A guerra. A gente da guerra. As imagens que se vêm da gente na e da guerra e as que não se vêm, as que é necessário inventar para que se vejam, tão reais como as outras, porque ser homem, ser gente, não é apenas um corpo, um gesto, um léxico habitual, a respiração, o desejo.

Ser gente é um entendimento muito mais fundo e só quem tem escafandro para mergulhar lhe pode captar as nuances, a multiplicidade dos sonhos, a contracção do ser que a superfície reprime.

O RIO CORRE SEMPRE MUITAS VEZES NO MESMO LEITO

Na sua abordagem ao livro do Álamo de Oliveira, o Mário fez-me recuar no tempo.
Quer dizer, levou o rio às mesmas margens.

Eu explico!

Em 1985 ou 86, acabara eu o "Vindimas no Capim", alguns amigos diziam que a coisa estava gira, a mim me parecia isso algumas vezes e, outras, o contrário, interrogando-me sobre se não estaria parvo na pretensão.
Tanto me disseram que me atrevi a duas ou três editoras, "sim, espere alguns meses para analisarmos, depois lhe diremos alguma coisa". Vocês sabem como é.

Na imprensa tomei conhecimento de um concurso literário da Câmara Municipal do Seixal para autores inéditos e... zás, lá vai a candidatura, cumprindo o regulamento em tudo o que ele dizia.

Passou o tempo do limite para o anúncio dos resultados, esperei um mês ou mais, telefonei e de lá me disseram que ainda não havia decisão, que telefonasse mais tarde.

Novo tempo de espera, e espera não quer dizer aqui, esperança, mas apenas espera mesmo, pelo anúncio da decisão do júri.
Novo telefonema e dizem-me que o vencedor tinha sido... Álamo de Oliveira.

Retorqui um "como?", estranhando, porque o concurso era para autores inéditos e Álamo não o era.

"Pois, tem razão, tem de falar com o júri"... "não tenho nada. O dono do concurso é o Município...", "pois é, mas o júri teimou durante muito tempo, dividido entre este livro e um outro e acabou por decidir. O Município tem dificuldades para anular a decisão sem perturbação do objectivo mais alto do concurso. Mas diga, qual era o seu título?" "o meu título é o Vindimas no Capim". "Pois! Não posso deixar de dizer-lhe que o seu título foi à final e dividiu o júri muito para além do tempo regulamentado, daí o atraso. Se quiser fale com os elementos que são fulano, sicrano e beltrano".

Hesitei no receio da figura de parvo que poderia fazer, importunando gente tão importante. Como conhecia um de o ler, ganhei coragem e chamei, tendo ele dito mais ou menos o seguinte:

- o júri era composto por ele, pelo sicrano professor de literatura na Universidade Clássica de Lisboa e conterrâneo do vencedor, e um beltrano que nunca compareceu às reuniões senão para assinar a acta final e receber honorários.

Disse-me mais! Que ele, fulano, achava o meu livro o mais indicado para o prémio, independentemente da questão do inédito, mas que a divisão havia sido interrompida pela comparência final do faltoso que se inclinou para a argumentação do professor.

Que falasse também com o académico, já agora, para entender o porquê da decisão.
E foi o que fiz, esclarecendo, primeiro que o senhor foi muito simpático, que me disse que também havia gostado do Vindimas no Capim, mas que achara que apesar de Álamo não ser inédito, tinha muito valor e que tal valor ainda não lhe havia sido ainda reconhecido pelo que lhe pareceu justa a reparação.

O que é que podia eu dizer contra esta franqueza?
Calei remoendo o azar e desistindo do protesto.
Li o livro vencedor e gostei, acabando mesmo por concordar com o senhor professor.

E ainda bem que não ganhei o prémio do Município do Seixal!
Ainda bem... porque O RIO CORRE SEMPRE MUITAS VEZES NO MESMO LEITO.

Nas negas das editoras, aconselhou-me uma amiga a concorrer ao prémio revelação da APE, concorri e... ganhei, afinal concurso mais importante (se há concursos importantes) que me abriu as portas das editoras.

Diz-se que guardado está o bocado para quem o há-de comer!
Diz-se que deus escreve direito por linhas tortas!
Acho é que deus pôs o rio direito correndo em torto leito.
Ou foi ao contrário?

Na verdade, voltando a ler o Álamo de Oliveira por incumbência involuntária do Mário, ainda hoje me parece que o júri agiu certinho no Seixal.

José Brás
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 26 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6253: O povo e o município de Moura homenagearam, no passado dia 10, os seus 29 mortos na guerra colonial (Parte II) (Luís Graça / José Brás)

(**) Vd. poste de 18 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6181: Notas de leitura (95): Até Hoje (Memória de Cão), de Álamo Oliveira (Beja Santos)

Vd. último poste da série de 14 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5646: Bibliografia de uma guerra (55): Armados Para a Paz, de Albino Silva

3 comentários:

Manuel Reis disse...

Caro José Brás:

Quando me dás o prazer de poder ler o teu livro Vindimas no Capim?
Tinha-se esgotado a edição da última vez que estive contigo.
Quando houver mais, não te esqueças de que gostaria de o ler e possuir.
Um abraço amigo.
Manuel Reis

Juvenal Amado disse...

É assim
Este teu texto faz-me lembrar aquele emprego, sobre o qual se abriu concurso.
Receberam os interessados, apurou-se o que preenchia melhores condições para o lugar e depois ficou o que tinha a melhor "cunha".

Uma maneira tão Portuguesa de resolver escolhas não é?

Um abraço Zé

Juvenal Amado

Ps: Quanto ao Manuel Reis não ter o teu livro é pena, mas não ter lido é ainda pior.
Eu empresto com uma volta na ponta será bem de ver.

Anónimo disse...

Caro José Brás

É assim...Houve,há e haverá sempre "filhos e enteados".
Mas Deus é grande e (acredito)às vezes "Escreve direito por linhas tortas"
Tiveste a prova,certo?!

Um abraço
Luis Faria