segunda-feira, 10 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6361: Notas de leitura (105): Guiné, Sempre!, de Piçarra Mourão (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Maio de 2010:

Queridos amigos,
Desiludam-se se pensam que estou no defeso. Para a semana há mais.
Correndo o risco de parecer obsessivo, apelo a que me indiquem obras de todo o tipo de escrita sobre a Guiné entre os anos 80 e 90.
Como é público e notório, o inventário deste princípio de século está praticamente feito. Arrisco a propor aos autores de várias listas de publicações que cotejem os seus inventários, acho que já chegou a hora do blogue constituir a sua relação bibliográfica, ao dispor de todos.

Um abraço do
Mário


Um caderno de recordações para lá de Mansoa e Bissorã, entre 1965 e 1967

Beja Santos

Chama-se Piçarra Mourão, é coronel, foi mobilizado, ainda como alferes, para a Guiné, em Julho de 1965. Comandou a CART n.º 1525, ainda como tenente. O seu punhado de recordações intitula-se “Guiné, Sempre! (Testemunho de uma Guerra)”, publicado pela Quarteto Editora, 2001. É um documento singelo da sua experiência, sem floreados nem atavios, deliberadamente na primeira pessoa, uma história de um jovem oficial com 23 anos. Interessa-nos pela sinceridade: “Jovem e desprevenido em quase tudo, a missão que me impunham era superior às minhas capacidades e disponibilidades. A minha preocupação maior ia mais no sentido de me ser facultado adequado aconselhamento, acompanhamento, treino operacional efectivo. Promovido a tenente, marchei para Oeiras, para uma unidade de artilharia de costa, acolhimento da minha futura companhia. A unidade, na ocasião, não estava organizada nem dispunha de meios humanos e materiais que pudessem sustentar as tarefas de que havia sido incumbida. O comando e os quadros, susceptíveis de nos ajudarem, manifestavam um grande distanciamento em relação às nossas preocupações e necessidades de toda a ordem”.

O pessoal vai-se apresentando, assim surge a CART n.º 1525, informa-se que o destino é a Guiné, segue-se a viagem do Uige. Piçarra Mourão sublinha a manifesta impreparação da tropa que lhe destinaram. O corrupio de histórias avulsas começa com uma operação no Queré em que inesperadamente apareceu o adjunto do adido militar norte-americano em Lisboa. O autor explica-nos o que era o Queré: uma zona de transição para o inimigo, fazendo a ligação entre sectores importantes do seu dispositivo Norte/Oeste: Morés, Biambe, Encheia, Bissum, Tiligi, etc. Graças a esta posição, o PAIGC controlava os movimentos das tropas portuguesas, tinha em primeira mão um manancial de informações sobre os movimentos das tropas, recortadas em tabancas estrategicamente posicionadas. Lá houve um fortíssimo contacto com forças do PAIGC no Queré, o oficial norte-americano, impávido e sereno, filmou e fotografou o que lhe apeteceu. Só quando viu alguns feridos é que confessou estar convencido da autenticidade do fogo, julgara tratar-se de um exercício simulado, para americano ver... A companhia de Piçarra Mourão ficou adida ao batalhão de Mansoa, começam aqui as visitas ao Morés, com mais insucessos que sucessos. Descreve-as minuciosamente, incluindo as forças especializada nelas envolvidas. Retêm-se com algum sabor peripécias como aquela noite de saída em que uma equipa de foto-cine exibia o filme “O Comboio Apitou Três Vezes”, em que na altura crucial do filme rebentou intenso foguetório, cada um tomou posição enquanto a máquina de projectar continuou a passar o filme, só mais tarde é que se desligou o gerador.

Lêem-se com agrado as suas recordações da colaboração das milícias e carregadores, a quem o autor presta uma comovida homenagem. Nesse ano de 1966, Mansoa provara várias flagelações, a situação militar tornou-se inquietante, a CART n.º 1525 foi lançada em várias batidas nas regiões de Jugudul e Bindoro. As baixas foram elevadas de ambos os lados. O inimigo acusou o desgaste e finalmente recuou depois de ter sido desbaratado em Ponta Bará. Igualmente comoventes são os episódios de dor, vários foram os mortos em combate, tanto da companhia como milícias e carregadores.

A companhia muda-se para Bula, segue para Tiligi, a Noroeste de Bissorã, seguem-se operações com intenso contacto e apreensão de material. Piçarra Mourão regista aspectos pícaros que ultrapassavam a compreensão militar: os balantas a roubar vacas nos acampamentos do Morés; o transporte de um caixote pesado, hermeticamente fechado, foi trazido como um provável troféu de guerra, afinal eram barras de sabão; os prisioneiros que aparentemente vinham de boa vontade e que subitamente desapareciam; aquele dia 13 de Maio de 1967 em que o Papa Paulo VI veio a Fátima e o PAIGC comemorou com fogachos por toda a região, entre outras.

Mais tocante ainda é o elogio que faz às milícias de Bissorã, dois pelotões que pertenciam a uma companhia sediada em Mansoa, homens impregnados de sentimentos verdadeiramente impares de coragem, vontade indomável de combater, gente inesquecível. Postura crítica é também manifestada relativamente ao comportamento da PIDE que fazia desaparecer todos aqueles sobre quem impendia a suspeita de jogo duplo. Como hoje está historicamente comprovado, a PIDE cometeu as maiores arbitrariedades na Guiné até à chegada de Spínola. O autor despede-se muito afectivamente de Bissorã, “uma terra onde se respirava saúde, confiança, progresso. No remanso do seu casario sentíamos uma reconfortante tranquilidade de espírito e de corpo. A sua hospitalidade era de tal modo afirmativa, que todos avaliávamos que muito do nosso sucesso operacional e institucional se devia à bonomia da terra e das gentes que em boa hora nos receberam, durante vintes indetermináveis meses”.

Piçarra Mourão regressou à Guiné trinta anos mais tarde e voltou a Bissorã. Pediu para falar com o administrador, viram o monumento que ali tinha ficado dedicado aos mortos. Descobriu que o seu interlocutor era nem mais nem menos que o chefe da então casa de mato de Biambe. O mesmo chefe que fora ferido numa operação dirigida por Piçarra Mourão: “caímos abruptamente nos braços um do outro, numa emoção e num envolvimento incontidos”.

É importante repertoriar todos estes testemunhos, tijolo a tijolo ergue-se uma parede e depois um edifício, a história da Guiné. Devemos procurar fazer convergir para o blogue todos estes documentos, seguramente dispersos. Os historiadores deverão contar connosco como uma indispensável fonte histórica.
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de Guiné 63/74 - P6353: Notas de leitura (104): Vindimas no Capim, do nosso camarada e tertuliano José Brás (2) (Mário Beja Santos)

3 comentários:

Anónimo disse...

Jorge Mourão!

"Putos", brincando nos quintais e jogando no rossio.

"Gandulos", Festas e patifarias em tempo de férias, petiscos no quintal de tuas tias. Apreparação para a Academia.

Vila Fernando, aldeia linda da Planície!

"Guerra" O Alferes do CICA 3 e o cabo miliciano do BC8 em Elvas.
O ultimo abraço, n minha saída do HM em Bissau e tua partida para Bissorã.

Já não estás cá para vermos isto juntos.

Reserva-me um lugar junto de ti porque te conheci e sei que estás em bom lugar.

Mário neto do ti João Fitas

JD disse...

Camaradas,
Temos a tendência para esquecer o amadorismo da nossa preparação para a guerra. Devia referir a irresponsabilidade do sistema.
Este militar retrata dificuldades na formação da sua C.Art. Se o livro tivesse sido editado antes do termo da guerra seria um alerta.
Também pode revelar a subserviência displicente, de quem não teve tomates para chamar a atenção para o deficit de preparação ministrada.
Chegávamos à guerra como uns passarinhos, ingénuos.
Continuávamos ingénuos, sem reclamar das muitas faltas (refiro-me à alimentação, à escassez de viaturas e outros meios), e assim, co-responsáveis pela má capacidade e maior exposição para enfrentar o IN.
Mas nós éramos meninos generosos e milicianos, sempre tementes à cadeia punitiva de comando.
Abraços
JD

Anónimo disse...

Caro José Manuel,

Desculpa mas neste caso estás a ser bastante injusto com a "subserviência displicente"

Conheceste o Coronel Tirocinado Jorge Mourão?

Leste "Guiné Sempre" e "Da Guiné a Angola"?

Se o fizeste calo-me é a tua opinião e respeito.

Se não o conheceste ou não leste, respeita!

Eu conhecio bem, joguei com ele com uma bola de trapos.

Fiquemos assim!

Um abraço,

Mário Fitas