quinta-feira, 28 de abril de 2011

Guiné 63/74 - P8176: Notas de leitura (234): O Meu Testemunho, uma luta, um partido, dois países, por Aristides Pereira (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Abril de 2011:

Queridos amigos,


Vale a pena insistir na importância da panóplia de entrevistas incluídas em “O Meu Testemunho” de Aristides Pereira*, bem como o apenso documental, textos do maior relevo para a compreensão da história do PAIGC e também, por tabela, da política portuguesa.


A narrativa do secretário-geral do PAIGC é frustrante, há momentos em que nos questionamos quanto à péssima estruturação dos dados, a gravidade das omissões, a extensão dos silêncios. Não é difícil concluir que vamos esperar muito tempo até aparecer uma história do PAIGC suficientemente abrangente e elucidativa e que não seja alvo de uma contestação fundamentada.


Um abraço do
Mário


O testemunho de Aristides Pereira (2)

Beja Santos

Não devo esconder que sempre considerei este documento público como uma decepção. Um político que teve as elevadas funções como Aristides Pereira, sempre ao lado de Amílcar Cabral a partir de 1960, secretário-geral adjunto do PAIGC desde 1964, eleito secretário-geral em 1973, é obrigatoriamente conhecedor de eventos que a historiografia deste movimento independentista da Guiné tem omitido.

Em 2003, data da publicação desta obra, Aristides Pereira já dispunha de um distanciamento que lhe permitia ir muito mais além do que a elaboração de um modesto relatório de prestação de contas, com uns pozinhos apologéticos e a compreensiva admiração por Amílcar Cabral. O seu testemunho é tímido, está pejado de silêncios e até de omissões graves. Não consegue ter o voo a que se permitiu Luís Cabral que escreveu o seu depoimento numa prisão e certamente sem documentos para consultar. Vai escrevendo recorrendo a outros plumitivos, testemunhado com outros testemunhos. Incapaz de dar substância à doutrina então vigente da unidade Guiné-Cabo Verde, recorre a um texto inverosímil sobre o sistema colonial português em Cabo Verde, que é um verdadeiro tiro no pé, parece estar ao serviço de todos aqueles que sempre contestaram o projecto da união orgânica dos povos da Guiné e das ilhas de Cabo Verde.

Por absurdo que pareça, o seu testemunho passa a ser importante pela variedade das entrevistas recolhidas por Leopoldo Amado e o enriquecimento que traz o apenso documental. É por isso que recomendo a leitura de “O Meu Testemunho, versão documentada”, por Aristides Pereira, Editorial Notícias, 2003 (insisto que se trata da versão documentada, com quase 1000 páginas).

Retomando o fio da narrativa, entra-se na luta clandestina da Guiné, o autor dá-nos o ambiente das independências nos territórios limítrofes e a emergência de diferentes grupos norteados pelo espírito libertador: Movimento de Libertação dos Territórios Sob a Dominação Portuguesa, criado em 1959 na República da Guiné, com o enquadramento do médico são-tomense Hugo Azancot de Menezes, que estava em contacto com Rafael Barbosa, ainda muito activo em Bissau. Recorde-se que o PAI (Partido Africano da Independência) fora fundado em Setembro de 1956, na Guiné, e passara a dispor de células em Bissau, Bolama e Bafatá. Rafael Barbosa foi um dos impulsionadores do MLG – Movimento de Libertação da Guiné a que aderiram Inácio Semedo e Fernando Fortes.

É um período de grande mobilização e de grande turbulência ideológica, a situação só começou a clarificar-se quando o MLG e o PAI aceitaram a liderança de Cabral e de Barbosa, diferentes dissidentes tornaram-se acérrimos adversários do PAIGC ou aderiram a novos grupos, sediados em Dakar e Conacri. Em 1961, acontece uma grande vaga de prisões, os militantes foram desterrados para o Tarrafal, outros foram sujeitos a medidas administrativas de fixação de residência por 4 anos, uns na Ilha das Galinhas, outros no campo de São Nicolau, no deserto de Moçâmedes. A prisão de Barbosa leva a que a actividade política que todos aqueles que hostilizavam o PAIGC se tivessem transferido para o Senegal e para a República da Guiné. É em Conacri que Cabral é forçado a uma campanha de esclarecimento junto das autoridades para explicar a diferença de atitudes entre os movimentos de libertação, revelando mesmo os cadastros de alguns dirigentes como gente que tinha colaborado com administração colonial portuguesa, ladrões, fugitivos à justiça, provocadores a trabalhar para a PIDE, etc. Trata-se de um documento inédito depositado no arquivo do PAIGC, é digno de reflexão.

Ganha interesse e deve ser lido a par do depoimento de Luís Cabral o capítulo sobre a mobilização, acção directa e o início da luta armada na Guiné-Bissau. O massacre do Pindjiguiti fora assumido como uma lição, tal como disse Amílcar Cabral, “Nós fizemos asneira aqui. Fomos mexer onde o inimigo é mais forte, na cidade. Vamos sair daqui, vamos mobilizar os camponeses, lá o inimigo tem pouca força. Em Conacri é criado o lar dos combatentes, que acolhia voluntários, vinham receber explicações sobre os objectivos da luta. Rafael Barbosa ufanava-se de ter mandado para lá mais de 500 pessoas. Finda a preparação ideológica e política em Conacri, uns passaram directamente à mobilização dos camponeses, outros foram doutrinados em Nanquim, na China, caso de Nino Vieira. O PAIGC começa a ser pressionado de várias direcções: o MLG de François Mendy ataca no norte da Guiné e em Agosto de 1961 Amílcar Cabral anunciou a passagem à acção directa, a par de ter desencadeado uma ofensiva de sensibilização junto das Nações Unidas.

O capítulo sobre a mobilização e as perspectivas da luta armada em Cabo Verde tem utilidade para se entender o trabalho desenvolvido por Cabral e perceber como a rede clandestina do PAIGC em Cabo Verde foi sendo desmantelada e, com o tempo, houve o entendimento não haver condições para a luta armada em Cabo Verde. Aristides Pereira refere-se sumariamente à batalha de Como e ao congresso de Cassacá.

Vale a pena citar aqui um parágrafo para se perceber como o autor recusa aprofundar as situações de tensão e como estas eram totalmente desconhecidas pela direcção do PAIGC: “Numa digressão que Luís Cabral fez a Quitafine, no sul da Guiné, houve gente que se encheu de coragem e lhe deu conhecimento de comportamentos condenáveis da parte de certos sectores responsáveis que cometiam desmandos e abusos de poder, que iam desde o consumo exagerado de bebidas alcoólicas e castigos corporais até ao abuso sexual e fuzilamento de populares. Esses crimes estavam a provocar uma desconfiança cada vez maior das populações em relação ao PAIGC e à sua direcção”. Não deixa de inquietar a serenidade do escrito, há cerca de um ano, pelo menos, que se lutava e vivia em acampamentos, como é que era possível a direcção do PAIGC desconhecer estes desmandos.

A luta político-diplomática do PAIGC foi ganhando solidez, certificou o reconhecimento de uma luta cada vez mais intensa que logo em 1963 obteve posições muito fortes no sul, no leste e na região do Morés. Saltando para a chegada de Spínola, que introduziu um quadro novo de acções sociais e económicas com o chamamento das populações fiéis através dos chamados Congressos do Povo, o PAIGC viu-se obrigado a responder a uma acção psicológica devastadora intensificando os seus ataques.

E assim se chegou à proclamação da independência do Estado da Guiné-Bissau que Amílcar Cabral começara a anunciar desde 1965. Esta proclamação, escreve Aristides Pereira, só veio a revelar-se aceitável quando, a partir de 1969, o PAIGC reforçou a sua acção diplomática, com resultados nitidamente desfavoráveis a Portugal. Nesta fase, do ponto de vista militar, a situação ainda era estacionária. A missão especial das Nações Unidas à Guiné, de 1 a 8 de Abril de 1972, deu às Nações Unidas uma base concreta para conceder ao PAIGC novas formas de ajuda, aos poucos passou a ter acolhimento, mesmo com o estatuto de observador, junto de certas agências da Nações Unidas. Em 1971 Cabral produziu um documento intitulado “Para a criação da Assembleia Nacional Popular”, que serviu de guia ao referendo que levou à constituição da Assembleia Nacional e dos órgãos do Estado, iniciativas que Aristides Pereira descreve com algum pormenor.

E assim se chegou, em termos históricos, ao assassínio de Amílcar Cabral.

(Continua)
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Notas de CV:

(*) vd. poste de 20 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8141: Notas de leitura (230): O Meu Testemunho, uma luta, um partido, dois países, por Aristides Pereira (1) (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 26 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8169: Notas de leitura (233): Triste vida leva a garça, de Álamo Oliveira (Mário Beja Santos)

1 comentário:

JC Abreu dos Santos disse...

... "saclatas velhas", extraídas do arquivo deste blogue.
Em 29Set2007, António Nhaga disse...

http://www.agenciabissau.com/portal.aspx?link=public/viewnews.ascx&menuindex=0&newsid=1074
Noticias
Cultura - Arte
24/05/2006 00:04
HISTORIADOR GUINEENSE CRITICA LIVRO DE ARISTIDES PEREIRA
O Director do Centro de Documentação Histórica de Luta de Libertação Nacional Historiador Mário Cissako considerou o livro ex-Presidente da República Cabo verde Aristides

Pereira de “Saclata”
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O Director do Centro de Documentação Histórica de Luta de Libertação Nacional Historiador Mário Cissako considerou o livro ex-Presidente da República Cabo verde Aristides

Pereira de “Saclata” e prometeu explicar tudo o que aconteceu com o arquivo da luta da libertação nacional no seu livro que brevemente será publicado em Bissau.
O historiador guineense garante, na entrevista a Agência Bissau, que o antigo Secretário-geral do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) pode ter

baseado o conteúdo do seu livro no relatório falso dos serviços secretos da luta de libertação nacional que não reflectiam as versões finais dos assuntos que Aristides Pereira

critica agora no seu livro.
“Ele não teve em todos os locais dos acontecimentos durante a luta armada. Pode ter recebido relatórios falsos dos serviços secretos da luta que não reflectiam as versões finais

dos acontecimentos que ele critica agora no seu livro. Mas, vou explicar tudo no meu livro que deve sair brevemente”, garante Agência Bissau o Historiador guineense que interroga

ainda ao ex-Presidente de Cabo Verde “ onde é que estão aqueles pacotes de documentos que foram tirados de Secretariado do partido em Conacri para Boé antes dos

combatentes virem para Bissau”.
Contudo, Mário Cissako afiança Agência Bissau que ainda até hoje tem na memória tudo o que estava no arquivo morto do PAIGC em Conacri.
Instado a pronunciar sobre o que estava no arquivo morto do PAIGC em Conacri, o historiador guineense asseverou: “há lá muitos problemas relacionados com segredos da luta

armada da libertação nacional”.
Quanto a possível venda do arquivo da luta da libertação nacional, Mário Cissako assevera: “ há filha de alguém que veio a Bissau e levou todo arquivo para fazer uma exposição em

Portugal e até hoje não devolveu nada”.
O historiador guineense não quer apontar dedo a ninguém. Por isso, quando lhe pergunta quem é o pai da tal filha, Mário Cissako remete a questão para aqueles que estavam no

poder na altura: “pergunta aqueles que estavam no poder na altura”.
Para o Historiador guineense, o desvio do património histórico da Guiné-Bissau é uma prova inequívoca de que há alguém que não quer que a história do país seja conhecida no

mundo como ela é. Por isso, está a tentar esconder a verdade.
Considera que se não é verdade que alguém está querer esconder a verdade da história da Guiné-Bissau, por que é que o museu da Guiné-Bissau foi fechado. Será que museu

era um dos obstáculos a unidade Guiné e Cabo Verde?
Ainda de acordo com Mário Cissako, como dizia Amílcar Cabral que a cultura tem o seu papel na libertação de um povo, com certeza a existência de museu na Guiné-Bissau podia

ser uma fonte de incitadora de povo para condenar a unidade Guiné e Cabo Verde.
António Nhaga
E-mail: antonionhaga@hotmail.com
Fuente: Agência Bissau
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