Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sexta-feira, 11 de maio de 2012
Guiné 63/74 – P9887: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (18): O primeiro "ataque" a Bissorã
1. Mensagem do nosso camarada Rui Silva (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67), com data de 7 de Maio de 2012:
Caríssimos Luís, Vinhal e M. Ribeiro:
Daqui de Santa Maria da Feira aí vai um grande abraço para vocês a que junto um “Salpico” para blogar.
Rui Silva
Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os camaradas ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.
Das minhas memórias “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa”
- Um salpico! -
Primeiro “ataque” a Bissorã, Uf!
Sabíamos que a nossa missão ali na Guiné e enquanto Companhia de Caçadores passava principalmente por dois tipos de atuação bélica. Uma, era ir ao encontro do inimigo, mato dentro, através de golpes-de-mão aos seus refúgios (as chamadas “casas-de-mato”) e o outro era defendermos o aquartelamento e a população civil ali adjacente e (ou) conivente, de eventuais, mas muito prováveis, ataques. Outras missões passavam por patrulhas à área envolvente do aquartelamento, segurança a colunas de reabastecimentos e à pista da aviação; fazer emboscadas intercetando o inimigo através de informações chegadas de fresco, ou então feitas de rotina; capinagens para uma visibilidade mais abrangente nas faixas laterais e o inimigo mais afastado, pelo menos nas estradas mais utilizadas principalmente, e as rondas noturnas de Bissorã, esta das operações mais temidas ali feitas na Guiné pelo menos na minha Companhia: um jeep com “olhos-de-gato” com uma guarnição de 4 homens, picadas adentro e bastante, (para Olossato, Mansabá, Mansoa, Barro e “Outra banda” ), e nas altas horas da noite. Também as operações Psico (recolha de populações para junto de nós, nos aquartelamentos), e as operações-Vaca (parecia o far-west), estas bem mais rentáveis pois punha-nos a comer bifes invariavelmente, sem esquecer os miolos fritos bem regados a cerveja ao meio da manhã (dos tais salpicos-dos bons mesmo).
Bom, estávamos então era mais centrados nos golpes-de-mão e na defesa dos ataques ao aquartelamento se bem que, estes ali em Bissorã, nós sabíamos que eram cirúrgicos. No meu tempo, Bissorã não era muito atacada e concluía-se que no maralhal que pululava a povoação havia de tudo: informadores (vulgo bufos), pró-turras e até turras mesmo; “carteiros” que levavam notícias frescas e também de transporte de arroz e outros alimentos e com alguma informaçãozinha à mistura. Quando a tropa estava a alinhar para partir para o mato dizia-se que ia “correio” à frente (um aviso que logo nos foi feito pelos companheiros de quartel os “Águias Negras” da 643). Portanto, qualquer ataque a Bissorã, quando era feito, era-o de modo muito seletivo e de alvo bem definido, mais sobre as moranças ou até tabancas com pessoal não pró-PAIGC o que por ali parecia haver pouco. Na “Outra banda”, logo depois de se atravessar o rio Armada, havia mais chinfrim. Só que chegar lá tinha-se de vencer algumas centenas de metros. Julgo que o problema ali era mais de guerra entre etnias se bem que subjacente estava sempre a guerra pela “independência”.
Tínhamos assim de conviver com eles, passar por eles na rua e até conversar, mas, também a presença deles nos servia de carapaça aos ataques. Mas de vez em quando havia refrega principalmente como retaliação aos estragos que lhe infligíamos mormente na véspera imediata. Quando lhe destruíamos os refúgios e não só.
No rudimentar mercado em Bissorã vendiam-se muitos apetrechos elétricos, também de som, vindos ao que se dizia do vizinho Senegal. O ir lá buscá-los era também um bom pretexto para troca de informações e não só. O pessoal “contrabandista” era vigiado e, por vezes, à mínima suspeita, havia interrogatório do duro. Pronto, o estar ali há pouco tempo e ter receio de tudo que mexesse (síndrome de “Periquito”) e com o espectro de um ataque, o dormir tinha os seus pesadelos. Também dependia também da cerveja que se bebesse nas cartas. Havia quem dormisse pianinho e havia quem sonhasse alto ou tivesse insónias, isto numa espécie de casa assombrada até porque o status psico-guerra era latente.
Mas eis que algo de insólito aconteceu numa certa noite e é o motivo deste meu “salpico”. Protagonista principal: o meu querido amigo, Furriel da Companhia, o alentejano e eborense de muita fibra, o Zé Baião. Sempre bem disposto e a dispor bem a malta.
Certa noite, que já ia alta, e quando todos já dormiam em sono pegado, ouve-se gritar bem ali na casa: “Ai, ai”! “Ai o meu braço! Ai o meu braço!...”
A furrielada levantou-se toda à uma, e convergiu para a zona dos gritos de aflição. “Que é isto?” “ Eles aqui dentro?” “Um ataque corpo-a-corpo?”. Todos incrédulos e meio espavoridos fomos dar com o Baião aos gritos já no pequeno corredor que dividia o interior da casa; tinha o braço dormente, pois concerteza tinha estado a dormir com todo o peso sobre ele, e como desconhecia (?) tal estado fisiológico, julgava que estava a perder o braço, e… acordou toda a gente! Aos gritos, gritos de aflição como se o estivessem a matar. Pensamos logo num ataque à casa dos Sargentos. Em breve se recompôs, pois o sangue começou logo a correr normalmente, e então exclama ele ao mesmo tempo que apalpa e ginastica o braço: “Alto que ele já cá está outra vez!”.
Virou-se e foi deitar-se tranquilo e já fisiologicamente perfeito, visto isso, como nada se tivesse passado, nem chamado alguém para o caso. A sua cara parecia até querer perguntar: “ O que é que foi?”
Ficou ele satisfeito, já por ter o braço no seu sítio outra vez, a contrastar com todos os outros, pois não faltou quem ficasse chateado com ele, por tanta lambança por tão pouco e que fez acordar toda a tribo furrielense de forma sobressaltada.
Uns mais exaltados demoraram a calar-se e… a adormecer. Aí o Baião já tinha entrado num sono profundo e com o braço noutra posição naturalmente.
Ai Baião, Baião!!
Eis a nossa casa em Bissorã. Com terraço e tudo. “Periquitos” de pele branca ainda. Ex-casa de colonos com instalações para estabelecimento e tudo. Estávamos com cerca de um mês de Guiné.
O Baião é do meio. De óculos de sol o Furriel açoriano, Vieira, natural da Ilha Terceira, que não fugiu à alcunha de “português de terceira”. O macaquinho aos meus pés morreu mais tarde, já no Olossato, com fratura de crânio num acidente doméstico. À esquerda a tasca do Sr. Maximiano.
Uma vista de Bissorã (foto tirada da net, com a devida vénia ao seu legítimo autor, se reproduz). A seta vermelha indica a casa dos Furriéis da 816 (Jun/Set 1965)
************
P.S. - O nosso muito estimado e querido amigo José Baião morreu já há alguns anos na sua adorada Évora. Muita consternação na malta (que o soube) e a saudade que sempre perdurará. Que descanse em paz e no reino de Deus.
____________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 15 de Fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 – P9487: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (17): O Regresso (muita sorte!)
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
6 comentários:
Caro Rui Silva
Pelo que contas, o teu e nosso camarada Baião, protagonista desta tua memória, já 'partiu'. Pois que descanse em paz!
No que se refere à tua história e tendo em conta as recentes revelações do J. Cabral sobre a forma linguística de ressonar, fiquei com curiosidade de saber se te lembras se ressonava em português, fula, ou outro idioma.
Abraço.
Hélder S.
Rui Silva.
Camarada.
Essa também foi a minha casa desde Setembro/69 a Dezembro /70. Ao lado da casa contruímos o nosso bar. Se não sabe, fica a curiosidade, hoje o "bar" é o posto da polícia de Bissorã, os nossos quartos são os quartos dos polícias.
Resta-me uma pergunta:
O destacamento da Outra Banda já lá estava quando chegaram, foi contruído pela vossa companhia, ou deixaram a obra para quem veio a seguir?.
Abraços.
Armando Pires
Tens razão amigo Rui, nós Cart.643-AGUIAS NEGRAS, quando das saidas optámus por andar uns Km. a mais, só para despistar os tais correios do Paigc. Se iamos para os lados de Morés, a saida era para o lado de Barro. Se fosse para os lados de Barro, o despiste era para a outra banda, ou seja Encheia, etc.
As rondas noturnas eram de respeito, muitas estradas e encruzilhadas, sempre de
jepp com uma perna de fora, para o rápido salto. A nossa caserna era do lado contrário do vosso, era uma casa modesta, só com e divisões e uma casa de banho.
Um abraço amigo Rui.
Uma resposta para os meus amigos dos comentários anteriores:
- Caro amigo Hélder:
Não sei se o Baião era um dos roncadores; se o era, devia ser com entoação alentejana (região de que ele muito se orgulhava),isto é, de pôr as bolotas todas no chão em pouco tempo.Paz à sua alma!
- Caro amigo A. Pires:
As voltas que o mundo dá! Então agora a casa é da Polícia de Bissorã? Nós fomos inaugurá-la. Queriam pôr-nos numa casa, embora de alvenaria, mas com o chão de terra e as paredes muito estragadas. Ali perto do mercado. Pouco melhor que uma pocilga, mas houve compreensão e os tarecos foram logo mudados para a dita casa. Na "Outra banda" não havia nem houve destacamento, isto no meu tempo,mas não me admira que lá fizessem um, pois era um ponto nevrálgico no terreno da guerra.
- Caro amigo Rogério, meu amigo de Bissorã:
É verdade, ficamos a ganhar com as instalações, pois foi um achado aquela nossa casa. As vossas instalações eram um pouco rudes de facto; ficamos na altura admirados por a casa não ser grande coisa mas que quem lá morava era gente de grande nível, aí não tenho dúvidas.
Gente que eu recordo com muita simpatia e saudade como o Graça, o Hipólito e outros mais.
Um grande abraço para os três.
Rui Silva
Rui Silva
Obrigado, tens sempre palavras de grande simpatia para com os camaradas da Cart643.
Isto é prova que entre as tropas na Guiné não houve quesilias de maior, ao contrário nde um novo tertuliano, que á dias disse raios e coriscos, é um ex-alferes de artª.
Um abraço
Olha o meu "palacete" de Bissorã! Aqui morei durante um ano, de out/65 a out/66.
Quando cheguei e vi a qualidade das instalações, fiquei de boca aberta! No centro da vila, fora do aquartelamento, que é isto? E a messe dos sargentos é o "restaurante"(tasca) do Maximiano?!(Tenho boas memórias da sua paparoca, dos petiscos da D. Maria)
"Onde era a guerra?"
Pouco tempo depois de chegar dei logo de caras com ela, a guerra. Até vomitei quando entrei nos seus domínios! Fui recebido com estardalhaço, trátátá! ... pum! ... (alguém grita: "olhálium!") ... pum! trátátá....
Quem se deve lembrar bem disto é o Rogério Cardoso! O sortudo! Então não é que uma bazooka inimiga, qual taco de bilhar, envia a granada para as "partes baixas" do Rogério mas fazendo tabela numa árvore? Coitada da PANCEROVKA 120mm, ficou tão desorientada com a tabela que não explodiu! Mas causou-lhe mossa, e da grande, partiu-lhe os ossos e mandou-o para o estaleiro do HMP durante longo tempo. Lá o consertaram, de tal modo que felizmente ainda por aqui anda e andará, faço votos que assim seja.
Agora, sem ironia, o Rogério teve mesmo sorte. E eu, que estive com a sua CArt 643 durante mais dois meses e tal, não cheguei a conhecê-lo apesar de termos participado juntos neste combate.
Ninguém satisfez a curiosidade do Armando Pires quanto à data da construção do "Destacamento da Outra Banda". Também não sei responder mas sei que antes de 1967 não foi. Aponto para 1968.
Para os meus caros camaradas Rui Silva, Armando Pires e Rogério Cardoso, ilustres "guerreiros bissoranenses", aqui vai um
grande abraço
Enviar um comentário