Caro amigo Carlos Vinhal,
Junto encontrarás mais uma pequena história sobre as minhas memórias lá para os lados da Mata dos Madeiros.
Como sempre fica ao teu dispor fazer com ela o que bem entenderes.
Para ti, para os nossos camaradas, votos de muita saúde e de um bom verão.
Um abraço fraterno,
José
MEMÓRIAS E HISTÓRIAS MINHAS (31)
Operação Sempre Alerta: a morte de um amigo diferente
Era então o dia 25 de Junho de 1971. Os dois grupos de combate da CCaç 3327, que tinham estado a fazer segurança ao acampamento na Mata dos Madeiros, regressaram na manhã daquele dia. Sem o pessoal das transmissões, o que avolumava as suspeitas de que estava eminente uma operação de grande envergadura.
Como acontecia muitas vezes, durante a tarde fui ajudar na Secretaria. Gostava de o fazer. Para além de ser útil, mantinha alguma actividade que me ajudava a passar o tempo.
Ao cair do dia, o Sr. Cap. Rogério Alves entrou na secretaria. Vinha tenso e o seu semblante denotava preocupação. Carregava um punhado de papéis e mapas nas mãos que chapou, esse é o termo, em cima da secretária e à qual se sentou. Colocou os cotovelos no tampo e a cabeça entre as mãos. Era a imagem completa do desalento num homem que, pela sua dinâmica e trato fino, transmitia confiança e algum à-vontade. O que o levara àquele estado tinha que ser muito sério.
Pressentindo que estava ali a mais, levantei-me e dirigi-me para a saída. Ao passar junto da secretária do Capitão Alves, este, com um pequeno gesto, empurrou os mapas na minha direção.
Estaquei! Durante semanas andara com eles na Mata dos Madeiros. A diferença, a grande diferença, eram as linhas vermelhas estampadas nos mapas, que partiam em paralelo do nosso último acampamento da Mata dos Madeiros até ao fundo da Mata do Balenguerez.
Ali, pela confiança depositada em mim por aquele homem bom, tomei conhecimento antecipado da enormidade e dos perigos que aquela operação acarretava. Estava em marcha a operação “Sempre Alerta”.
Senti um calafrio enorme. Não pela operação que já todos esperávamos, mas pela forma como ia ser executada, para um sítio que desconhecíamos completamente. Com a duração de cerca de nove horas, seria executada por toda a Companhia, dividida em dois bigrupos em progressão paralela, com as duas linhas de penetração muito perto uma da outra. Não me recordo de alguma vez termos praticado esse tipo de progressão, daí a minha grande apreensão.
Conjeturando com os meus próprios pensamentos, decidi dar uma volta pelos arredores. Na parada, encontrei o Fur Mil André Manuel Lourenço Fernandes, do 3.° GComb, em amena brincadeira com o seu amigo predileto, o Piriquito. Este, um tecelão amarelo ainda jovem, tinha sido apanhado pelo André, que o alimentou e matou a sede. Enquanto um corria o outro voava. Ao chamamento do André, lá vinha o passarito que pousava no seu ombro e aguardava pacientemente que o André lhe reconfortasse o bico com algum acepipe. Eram inseparáveis! Aquela cena enternecedora contrastava com o turbilhão de desencontros que me ia na alma.
Os meus passos levaram-me até à porta de armas, subi a avenida principal de Teixeira Pinto e entrei num bar muito frequentado pelas nossas tropas. Era a primeira vez que ali ia. Não dei pelo fumo dos cigarros, tão pouco pelo cheiro do álcool e muito menos pelo barulho ensurdecedor que se fazia ouvir. Tudo isso era-me indiferente. Estava ali para beber uns copos, eu que não conseguia beber duas cervejas seguidas.
Foi então que aquela voz chegou até mim, melhor, estalou no meu cérebro, de tal forma que ainda hoje não esqueci:
- Eh Furriel, manga de ronco no Balenguerez!
Na penumbra do estabelecimento tentei descobrir quem era aquele guineense alto, vestido à civil, que já sabia do que me ia na alma. Talvez devido à surpresa do momento, saí muito mais lesto daquele estabelecimento do que quando entrei. Fui para o meu quarto que, entretanto, tinha sido distribuído. O dia acabava repleto de emoções.
A Senhora que nunca nos abandonou
Três dias depois, na madrugada do dia 28 de Junho, cerca das três da manhã, estavam em pleno os últimos preparativos para o começo da Operação. Dada a ordem de partida, a coluna deixou Teixeira Pinto em direção ao nosso último acampamento na Mata dos Madeiros. Ainda era noite quando lá chegámos.
Como previamente ficara estabelecido, os 1.° e 2.° Grupos de Combate sob o comando dos Alferes Ferraz e Neves, respetivamente, seguiriam a linha da esquerda. Os 3.° e 4.° Grupos de combate sob o comando dos Alferes Almeida e Magalhães seguiriam a linha da direita. O nosso Cap. Alves iria integrado no 4.° Grupo.
O Alferes Magalhães, comandante do meu grupo, aproximou-se de mim e entregou-me o Mapa da Operação e a bússola. Era um gesto normal. Acontecera tantas vezes antes. Já não foi normal quando o Cap. Alves nos informou que ia integrado na minha Secção. Tentámos, eu e o Alferes Magalhães, dissuadi-lo, sem o conseguirmos. Mais uma vez admirei a sua coragem e compreensão ao permitir-me dar-lhe uma posição na Secção, que também me obrigou a mudar o dispositivo que normalmente usava. Não tanto por ele, mas por causa do homem das Transmissões, que queria suficientemente perto de mim, sem ficar muito longe do Capitão e não perder potencial de reação. A nossa missão, reconhecer o terreno, encontrar e destruir o inimigo, independentemente dos imponderáveis, só poderia ser bem sucedida à custa de muita disciplina, sacrifício, alguma inteligência e, acima de tudo, muita proteção divina. O inimigo, os guerrilheiros do PAIGC, estava à nossa espera algures na Mata do Balenguerez. Para isso se espalhou a notícia desta operação com três dias de antecedência.
Com os primeiros alvores do dia, partimos rumo ao nosso destino! Para trás ficava o acampamento e a Mata dos Madeiros. Atravessámos a estrada antiga que ligava o Bachile a Cacheu e entramos naquele mundo desconhecido, a Mata do Balenguerez. Esta não tinha sofrido queimadas durante os últimos tempos e não recebera visita de tropas há alguns meses.
Apanhada que foi a ponta do trilho marcado no mapa, de imediato mandei obliquar à direita, saindo por completo daquele. Assim fomos progredindo em ziguezague à ilharga do trilho. Apercebi-me que o avanço seria muito penoso e mais lento do que o calculado. O arvoredo e palmeiral muito denso e baixo impediam o avanço rápido, obrigando-nos, muitas vezes, quase a rastejar em alguns sítios. Mas o trilho, prometera a mim mesmo, não seria acariciado pelas solas das nossas botas. Com cerca de três horas de progressão, deparámos com a primeira grande clareira. Apenas capim de altura média Por ventura um antigo terreno de cultivo. Dividia-se pelos dois lados do trilho. Um campo de morte com cerca de oitenta metros, local ideal para uma emboscada.
José Câmara bem protegido pelo soldado Alberto Teixeira Dutra
Estávamos afastados do trilho. Numa breve análise visual ao terreno à nossa volta e pelo mapa, pressenti que a melhor solução seria mesmo atravessar a clareira, até porque a partir daí iríamos encontrar situações muito semelhantes. Mandei avançar. O meu homem de ponta, carregando a HK21, olhou para mim. O seu olhar pareceu-me angustiado. Aquele não era o local para hesitações, coloquei-me ao seu lado, atravessámos a clareira rapidamente. Os outros seguiram-nos.
Do outro lado da clareira, embrenhados no arvoredo, fomos ao encontro do trilho. Não me enganara. Ali tinha estado gente e as suas intenções não seriam certamente dar-nos as boas vindas com foguetes, como era costume fazermos aos forasteiros ilustres que chegavam às nossas terrinhas açorianas. A prová-lo estava um pequeno jarro de barro partido, a água empapando o trilho, alguns rastos de pegadas de calçado.
Foi dada ordem para ninguém pisar o trilho ou tocar nos estilhaços.
Rapidamente, afastámo-nos daquele local e do trilho. Minutos depois, uma avioneta transportando o comandante do CAOP 1, Sr. Ten. Cor. Paraquedista Durão, fazia algumas passagens sobre o local onde tínhamos estado antes. De lá de cima não nos via, bom sinal. Perante a insistência de contacto, demos-lhe a nossa indicação.
Segundos depois passava à nossa perpendicular.
Na sua passagem indicou-nos que estávamos a afastar-nos do nosso objetivo. Foi informado do nosso contacto visual com o jarro, sinal irrefutável da presença do inimigo e que não era aconselhável a nossa progressão nas imediações do trilho. Aos poucos, o barulho dos motores da avioneta foi desaparecendo.
Cerca das onze horas da manhã estávamos nós a atingir o nosso objetivo. Mais uma vez a avioneta a sobrevoar-nos. Desta vez com uma boa notícia, regressar ao acampamento. Cansados, algo esfarrapados, famintos, mas não podíamos descurar a disciplina e os cuidados no nosso regresso. A nossa missão ainda não tinha terminado.
Só começamos a sentir algum alívio quando finalmente atravessámos a antiga estrada e voltámos a pisar a Mata dos Madeiros. Aqui tínhamos feito grandes amigos ao longo dos dias, das semanas, dos meses. Conhecíamos as formigas pelos seus nomes próprios e aprendemos a cantar canções de amor com os pombos verdes. Os mosquitos, nos seus voos picantes, lembravam-nos constantemente do zumbido dos aviões que vindo das Américas passavam pelas nossas terrinhas açorianas. Os tecelões, lindos que eram, davam-se ao luxo de gozarem connosco, chamando-se a si próprios canários de peito amarelo, avezinhas que um dia se enamoraram dos rochedos plantados entre a Europa e as Américas e por ali ficaram. Tudo isso ficava ali, cada passo nosso uma recordação.
No acampamento desmanchavam-se as antenas de transmissões, o morteiro 107 e carregavam-se as viaturas que já estavam à nossa espera. A tarde avançava e havia que chegar a Teixeira Pinto antes do anoitecer.
Finalmente foi dada a ordem de partida e um último olhar ao acampamento que tinha sido a nossa casa durante oitenta e três dias. Pelo caminho passámos junto ao local onde o nosso Manuel Veríssimo Oliveira sofreu o acidente que o vitimou. Muitos braços estendidos naquela direção. Nas circunstâncias era o único gesto possível de homenagem ao nosso amigo e companheiro de luta.
Outros continuariam a estrada que deixamos aberta até ao cruzamento com a estrada antiga
Para trás ficava a Mata dos Madeiros e uma estrada que outros continuariam e concluiriam. Ali, a história foi escrita no barro vermelho com o sangue de muitos combatentes e o suor de muitos mais. De nativos também. Para os guineenses, em paz, ficou uma excelente obra alcatroada para que um dia pudessem ter uma vida melhor. Finalmente chegámos a Teixeira Pinto. Em paz. Missão cumprida. Dirigimo-nos aos nossos quartos. Ali, uma desagradável surpresa nos esperava.
O Fur Mil André Fernandes, com as lágrimas nos olhos e o seu amigo entre mãos, balbuciou:
- O Piriquito morreu!
A avezinha, que ficara fechada no quarto, sucumbira ao calor, sede e saudade. Também ela fora uma vítima de uma guerra que cada um sentia à sua maneira. Naquele momento o André era o espelho de um desses sentimentos. Para ele, depois de uma operação com aquele perigo e envergadura, ainda houve tempo para chorar a morte de um amigo especial, certo que diferente dos demais, mas amigo da mesma maneira.
No dia seguinte, 29 de Junho de 1971, a CCaç3327 seguiria para os Destacamentos de Teixeira Pinto.
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Notas soltas:
Nos 72 dias que a CCaç 3327 esteve toda na Mata dos Madeiros, diariamente saíam dois grupos que permaneciam fora do acampamento por 24 horas a fazer a segurança afastada da estrada e do acampamento.
Dos outros dois grupos um fazia a picagem do traçado da estrada e a segurança próxima às máquinas e capinadores durante 12 horas diárias.
O Outro mantinha a segurança do destacamento e realizava as escoltas ao Bachile para abastecimento de pão, água e correio. A segurança imediata noturna do acampamento era garantida por estes dois grupos. Cada posto de sentinela era reforçado por 3 elementos.
Cada Secção, na ausência de imprevistos, tinha um descanso de 12 horas a cada 13 dias.
Acções: 72
Emboscadas: 72
Escoltas a Teixeira Pinto e Bissau: 24
Operações a nível de Companhia: 1 (Sempre Alerta)
Mortos: Manuel Veríssimo de Oliveira, Sold At. Inf. NM 09624870, natural da Ilha de São Miguel.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 26 de Fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9537: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (30): Velhice, uma aprendizagem dos sinais dos homens e da guerra
4 comentários:
Amigo José da Câmara
Bem reaparecido, com uma descrição destas onde,como a mais das vezes, não deixa de transparecer a humanidade, o sentimento.
De novo voltei a pisar aquelas matas do Balanguerez,traiçoeiras e movimentadas,com aquelas clareiras que podiam ser, como muito bem dizes,verdadeiros "campos de morte", mas também com a sua beleza e locais paradisíacos .
Um abraço
Luis Faria
Meu amigo José da Câmara
Ao ler o teu texto, pareceu-me estar a ver um dos filmes em que eu era uma das personagens. Mapas, trilhos, avioneta a sobrevoar...e a dar indicações de que nos estávamos a afastar do objectivo...
Foi esse, precisamente, o cenário de uma das últimas operações que fiz nas matas do Balanguerez.
Um grande e saudoso abraço
B. Parreira
Meu amigo Zé Câmara,
Em duas pinceladas mostras como na Guiné, a vida operacional gerava angústias e ansiedades, afectos improváveis, e a transformação de gente boa em guerreiros, capazes de matar para sua salvação.
Talvez tivesse valido a pena aumentares os detalhes sobre a mata dos Madeireiros, e a arte de ali passar o tempo. Dos "campos de morte", naturalmente, a tensão que se vivia não permitia o olhar extasiado para a grandeza e pujança natural. Mas gostei da relação com as aves, que nos garantiam a cada voo a existência de muitas vidas na sombra das copas largas e densas, no entrelaçar de capim, arbustos e lianas.
Daquela vez correu tudo bem, como da maior parte das vezes, afinal, ou as nossas recordações seriam só infernais.
Um abraço
JD
Meu caro amigo José da Câmara
Um relato/história/recordação pleno de força, de autenticidade.
Nele estão retratados a angústia, a disciplina, a determinação, a amizade (em alguma situações, improváveis, como já foi também referido).
Não sei que efeito poderá fazer em quem ler sem ter vivido 'o clima', como conseguirá entrar, ou não, no ambiente próprio, mas para mim foi lido com grande emoção.
Abraço
Hélder S.
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