terça-feira, 3 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10109: Cartas do meu avô (11): Nona carta: uma família feliz, em Azurva, Aveiro (J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66)


A. Continuação da publicação da série Cartas do meu avô, da autoria do nosso camarigo J. L. Mendes Gomes, membro do nosso blogue, jurista, reformado da Caixa Geral de Depósitos, ex-Alf Mil da , que esteve na região de Tombali (Cachil e Catió) e em Bissau, nos anos de 1964/66. [, Foto à direita, com os netos].


As cartas, num total de 13, foram escritas em Berlim, onde vivem os netos, entre 5 de março e 5 de abril de 2012.


B. NONA CARTA > Em Aveiro > I - Azurva


Externamente à Caixa [Geral de Depósitos], vivia-se numa incerteza política total. Os partidos disputavam, sob a tutela do MFA, o rumo que o país seguiria: se à esquerda comunista, ou à normalidade democrática. O verão de 1975 foi mesmo escaldante. Com focos de violência generalizada por todo país. Esteve-se muito perto duma guerra civil.


A vida em Lisboa atravessara crises de toda a ordem. Desde a segurança ao abastecimento de alimentos. Ficou claro que Lisboa é a cidade mais dependente do país. Vive à custa do resto. Cheguei a ver os balcões dos mercados, por exemplo, o da Ribeira, completamente vazios de géneros. Tínhamos dinheiro mas não havia onde comprar.


A falta de policiamento nas ruas era assustadora. Ninguém se aventurava a girar pelo rua, a partir do anoitecer. A vontade de fugir era muito forte. Só não se fugia, se não fosse possível. Cheguei a tentar emigrar para o Canadá. Já com três filhos. Tratamos de tudo na embaixada do Canadá. Aceitavam-nos de braços abertos. No final as autoridades portuguesas recusaram-nos a autorização.
- Porque éramos ambos quadros técnicos - disseram…


Por isso, aproveitar a descentralização de crédito era a única e oportuna saída. A classificação que tinha deu-me a liberdade de escolher a filial que eu quisesse. Estava muito difícil decidir. Por um lado, tínhamos comprado em 1970, o nosso apartamento em Almada com empréstimo da CGA. Este empréstimo era muito rigoroso e condicionado na sua alienação, antes de dez anos sobre o contrato de compra. Para além duma autorização especial, discricionária, os lucros derivados da venda reverteriam a favor da CGA.

Por outro, a saída para a província implicava a separação, minha, da minha mulher e dos filhos,  dos meus sogros. Já reformados e radicados em Lisboa. Eu, porque conhecia as duas realidades, tinha a certeza de que a vida numa cidade de província teria uma qualidade muito superior à de Lisboa ou Almada. Tudo mais barato. Tudo mais sossegado. A educação dos filhos seria mais fácil. Nasci e cresci na província.

Para a minha mulher foi um caso sério. Seria a primeira vez que saíria de Lisboa onde cresceu. Longe dos pais.  O que facilitou um pouco foi o facto de, tempos atrás, ambos termos concordado na nossa emigração para o Canadá. Por causa da precariedade e insegurança reais, sentidas em Lisboa, nos tempos de crise política.

Havia pouco tempo para resolver. O prazo de escolha da respectiva filial estava marcado. Longas horas de conversa e discussão se seguiram. A A.T. trabalhava no Instituto de Biologia Marítima, em Algés. Tínhamos de escolher um sítio que possibilitasse a sua continuação ao serviço e manutenção do emprego. Algarve, Aveiro ou Porto eram as únicas que se coadunavam. Porque tinham dependências locais daquele organismo.

Algarve e Porto não eram nada do nosso agrado. Aveiro era praticamente desconhecida de ambos. Mas reunia certas vantagens. Mais perto de Lisboa e uma zona bastante rica, economicamente. Com muitos recursos. Era preciso que a direcção do Instituto permitisse a sua transferência.

Em Aveiro, havia apenas um posto de recolha de amostras de pescado, instalado na capitania de Aveiro. De comum acordo, assentamos em que, se fosse autorizada, então, seria por lá que deveria passar a nossa vida, custasse o que custasse… Se não, ficaríamos em Almada.


Foi assim que entendemos. As sortes estavam lançadas. Quis o destino que fosse aprovada a transferência. Ficavam por resolver a consecução de casa em Aveiro e a venda, em tempo, do apartamento de Almada.

Tudo correu bem. A CGA permitiu a venda e manutenção do empréstimo, com sujeição da nova casa ao mesmo regime. Seria uma substituição da casa conservando o empréstimo, como estava.

Em princípios de Setembro de 1977, estávamos a viver em Aveiro. Em Azurva, nos arredores. À mistura com inúmeras peripécias. A primeira foi ver toda a nossa mobília ser encaixada num cam
ião da Galamas para seguir na madrugada para Aveiro. Enquanto nós seguiríamos todos os cinco, no nosso Sunbeam, encarnado, a estrear [, um modelo talvez parecido com o da foto acima: Chrysler Europe - Talbot Sunbeam, 1977-1981]

Chegados a Aveiro, a empresa construtora e vendedora, vinculada por um simples contrato-promessa, não tinha o apartamento habitável, como se comprometera.  Quando chegou o camião, todos os móveis foram encastelados e metidos pela janela, na sala comum, a divisão maior.

Tivemos de arranjar alojamento por uns dias. Onde? Informaram-nos que as” Zitas” talvez nos pudessem alojar. A superiora, quando viu a nossa situação, foi exemplar. Benditas sejam as “Zitas” para sempre. Lá ficamos muito bem, até ao culminar do apartamento. Enquanto esperávamos com os miúdos a brincar no baldio de mato e feno que havia frente à casa nova, o meu filho mais velho, com oito anos, era um ignorante sobre as coisas da vida rural. Quando viu um bando de galinhas debicando à solta pelo monte, exclamou entusiasticamente:
- Hei tantas vacas a pastar!...

Num instante ficava ali demonstrada a vantagem e acerto da nossa decisão…

A casa era um rés do chão elevado, com dois quartos,uma sala e uma garagem. O prédio tinha dois andares e duas habitações por piso. Azurva estava a começar como zona de habitação periférica para quem trabalhava em Aveiro. Tudo ali estava no começo. A centralização em Lisboa e Porto eram asfixiantes do resto do país. Por culpa central mas também por interesses de gente particular. Dali.


"Vila Africana", Ílhavo, sita na Estrada Nacional 109, nº 135... Quando a viajem de Lisboa ao Porto, levava um dia... Hoje a EN nº 109 tem motivos de interesse para o turista sem pressa e com sensiblidade estética e cuttural: tem vários exemplares de casas de "arte nova"... Como, por exemplo, esta casa tradicionalmente conhecida como a "Vila Africana"... Segundo o portal de Aveiro, "o seu interesse reside na fachada profusamente decorada com azulejos. O tratamento da fachada revela um equilíbrio entre os diversos planos e a sua decoração, como salienta Amaro Neves que destaca ainda os gradeados de ferro pela sua delicadeza"...

A distância de Aveiro ao Porto, só de comboio. Por estrada, gastava-se um dia para se ir e vir...pela sinuosa e encharcada estrada 109. A rede de auto-estradas nacional era uma miragem. O interior era mesmo interior. Tudo era longe. Para se ir a Viseu, pelo vale do Vouga, era uma aventura. Uma linda viagem, por entre escarpas e arvoredo frondoso.

Tive de me deslocar lá várias vezes em serviço. Tinha de sair de madrugada, para chegar a tempo. A alternativa seria ir na véspera e pernoitar. Este era o pobre quadro geral no intercâmbio económico do país. Por isso, proliferavam os representantes das empresas, ambulantes e as escolas públicas, superiores ou não estavam circunscritas a um curto raio de influência.

Na Caixa, quem punha e dispunha era a administração de Lisboa. Os gerentes das suas agências e filiais eram os seus representantes. Omnipotentes, melhor, prepotentes, sobre os seus empregados. Uns dóceis cordeirinhos para qualquer instrução que viesse de Lisboa. Nem que fosse dum contínuo. Era Lisboa...

Por isso, a entrada dum técnico superior, imposta por Lisboa, foi um duro golpe no reino dos gerentes. Habituados a pôr e dispôr, à sua vontade. Apenas havia que acautelar muito cuidadosamente, as vindas das brigadas de inspectores. Podiam aparecer, em qualquer dia. De preferência ao acabar do dia. Aí, tremiam as pernas dos gerentes, desfeitos em sorrisos. Mal viravam as costas, tudo voltava ao mesmo.

Quando entrei a primeira vez na filial, fui apresentar-me ao Sr. L... Já me tinha informado sobre ele. Sabia que ele era um dos tais. Um expoente de subserviência para cima e despotismo para baixo. Recebeu-me, disfarçadamente, fora do gabinete. Começou à procura duma secretária onde me colocar. Calhou num canto, atrás duns armários. Como que a esconder-me, o mais possível.
- O senhor vai ficar aqui. Vai preparar este e aquele para o serviço que vem fazer.

De material, - meteu a mão no bolso da camisa, e tirou de lá um lápis viarco, que já ia a meio...e uma esferográfica. E desapareceu.

Era o primeiro embate. Estava declarada a guerra. Ele fizera toda a sua carreira na Caixa desde grumete, aos dezassete anos em Lisboa. Tornou-se amigo do administrador- geral, naquele tempo, era quase um cargo vitalício, tudo gente da confiança do Salazar ou dos seus amigos.

Os saneamentos operados no período do vinte e cinco de abril vibraram duros goles nesse statu quo. O Sr. L... esteve mesmo para ser saneado pelos trabalhadores da filial. Valeu-lhe o facto de ali, em Aveiro, as células comunistas estarem muito rarefeitas. O resto do pessoal era cordato,  avesso a vinganças.

Escapou. Dois anos depois, quando entrei para lá, ele tinha revestido a capa do poder. Só que eu tinha ja os meus conhecimentos em Lisboa. Dum modo geral gozava dum certo respeito. Fora dos primeiros trabalhadores a guindar-me a um curso superior. A maioria se começava, desistia. Trocava tudo pela boémia de Lisboa.

A direcção das filiais e agências de quem dependia o gerente eram-me totalmente favoráveis. No primeiro encontro que tive com a direção ficaram a saber como fui recebido e tratado pelo Sr. L... Só contei a verdade.


A ria de Aveiro e os seus moliceiros - Aveiro > 25 de Agosto de 2008 > Um tradicional barco moliceiro, hoje transformado em meio de transporte de turistas... Tradicionalmente, os moliceiro têm (ou tinham...) dois paineis de proa e dois de popa, de pintura naïve... Cada painel consta de um desenho policromado, com uma cena mais ou menos pícara, relacionada com o quotidiano dos pescadores ou dos camponeses da ria, enquadrada por cercaduras de flores ou figuras geométricas. Há sempre, na base, uma legenda-comentário, escrita às vezes em mau português, e com um segundo sentido (como no caso da imagem acima: "Mete as batatas no rego"...). [, Foto de Luís Graça, 2008].

Regressado à filial, foi fácil perceber que tudo mudara. Não que ele se corrigisse, mas deixou de me fazer guerra. Pura e simplesmente ignorava. Fiquei a trabalhar livremente. Apenas dava conta à direcção e ao chefe do contencioso.

Foram uma meia dúzia de anos. Ele trabalhou até ao último dia. à quele em que fez setenta anos. A reforma levou-o para sempre.E agora? Quem virá substitui-lo? Era o problema.

Um dia, em visita à direcção de filiais e agências, fui directamente abordado por um dos sub-directores, o senhor B... Se eu estava interessado em passar para o quadro de gerentes e tomar conta da filial. Nunca tinha pensado nessa hipótese. Mas foi-me fácil responder. Eu não sentia a mais pequena necessidade e pendor para ser gerente. Era uma função que não queria. Agradeci e declinei.
- Então, de todos os gerentes das agências de Aveiro que conhece, qual escolheria?
- Aí, não tive dúvidas.
- O de Espinho. O dr. L...C....

Não que eu tivesse muita confiança com ele. Mas parecia-me a pessoa indicada. Tinha-se licenciado em Económicas, no Porto, há pouco tempo. A indicação estava dada.

Quando regressei a Aveiro, desloquei-me a Espinho, para falar com o gerente, depois de lhe ter ligado. Encontramo-nos na sua casa. Contei-lhe o que se tinha passado. Ele ficou muito surpreendido. Com a minha lembrança e com a grata hipótese que se poderia pôr, a curto prazo. E assim foi. Passados poucos dias, o Dr. C... dava entrada com gerente da filial.

E, não me enganei na pessoa dele como ele da minha. Sempre nos respeitamos um ao outro. Cada um na sua função. A partir daí, passei a sentir-me um príncipe quase perfeito...Foram cerca de vinte anos de serviço em Aveiro.

Tenho a consciência de que pude fazer muito bem a muitas pessoas do distrito. Aquelas que, obtidos os empréstimos, se viam em dificuldades para recuperar os atrasos de pagamento. Por força das frequentes subidas das taxas dos empréstimos motivadas pela instabilidade política em que se vivia. Vi correr muita lágrima no rosto de homens e mulheres no meu gabinete, à frente da minha secretária. A quantos dramas pude acudir...porque podia fazê-lo.

E os meus filhos? Esses, em Aveiro, sentiam-se nas sete quintas. Eram três, muito bem entregues ao centro social de bem-estar de São Bernardo. Uma obra pioneira na região e arredores. Óptimas condições, materiais e humanas. De excelência, à volta da pessoa dum insígne e exemplar sacerdote - o Sr. Padre Félix. [Imagem à direita, cortesia da Fundação Padre Félix].

Desde a creche ao primeiro ciclo, ali cresceram e se desenvolveram alegremente. Hoje, muito do que são, devem-no aos tempos ali vividos. São todos licenciados. Um, o Paulo Alexandre, é sacerdote jesuíta, o mais velho. Outra, a Leonor, tradutora Intérprete de Inglês e Alemão, outra, a Sandra, Engenheira Química e o quarto, que estava para nascer, o Luís Daniel, foi tirar o doutoramento de Engenharia Aero-Espacial, em Manchester.

Todos são unânimes em afirmar e testemunhar o acerto na decisão que um dia tomamos. O de vir viver em Aveiro. Nunca mais voltaram a confundir as galinhas com as vacas...

Reichelt, 30 de Março de 2012- sexta-feira

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Nota do editor:

Último poste da série > 25 de junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10069: Cartas do meu avô (10): Oitava carta: finalmente, jurista da CGD (J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66)

1 comentário:

Anónimo disse...

Mensagem enviada pelo J.L. Mendes Gomes ás 7h41 de hoje;

Obrigado Caro Luís. Pelo vosso trabalho e dedicação ao blogue. Tudo o que sai de Vós vem enriquecido. E na hora certa. Parabéns. Assim, vale a pena. Muita força. Um grande abraço a todos os Editores.

Joaquim L. Mendes Gomes