domingo, 1 de julho de 2012

Guiné 63/74 – P10100: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (19): A Serração de Joboiá - a destruição de um mito

1. Mensagem do nosso camarada Rui Silva (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67), com data de 25 de Junho de 2012:

Caros Luís Graça e Vinhal, sem esquecer o meu grande amigo M. Ribeiro:
Recebam as maiores felicitações e mais uma folha “arrancada” das minhas memórias.

Rui Silva



Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os camaradas ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.

Do meu livro de memórias “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa”

A SERRAÇÃO DE JOBOIÁ – A destruição de um mito

16 de Dezembro de 1965

Julgo que toda a Companhia ou Grupo militar operacional, tinha, em menor ou maior grau, o seu “calcanhar de Aquiles” na guerra, isto é, algo que a estigmatizou em dado momento, através de um grande revés ou infelicidade, (refiro-me principalmente de mortos em combate ou de fortemente estropiados) na estrada, no mato, no aquartelamento, ali ou acolá, e que a marcou. A 816 não era exceção. Passar depois por esse mesmo sítio havia sempre um nervoso miudinho na malta.

A 643 dos Águias Negras (grande Companhia operacional) em Bissorã e a 566 (não menos grande Companhia) no Olossato, para falar das Companhias com que tivemos o privilégio de atuar, muitas vezes em conjunto, pareciam também ter o seu.

A 643 falava muito na “carreira de tiro”, um percurso em balcada com uma centena de metros, na estrada de Bissorã para Olossato antes de Maqué e do grande poilão.

A 566, no dizer de alguns dos seus operacionais, preferia uma operação a Morés do que entrar na estrada (então interdita) que ligava Olossato a Farim.

No entanto, não esqueço aquele Cabo da 566 que de Dryse na mão, em cima do capot do motor de uma GMC, a peito descoberto, ajudou a resolver uma grande e violenta emboscada feita a toda a Companhia 816, naquela estrada, que entretanto tinha pedido ajuda no Olossato, pois as munições estavam a acabar à coluna da 816 no célebre e traumatizante dia 1 de Agosto de 1965. Começamos aos tiros de manhã cedo e até ao princípio da noite e já depois de os dois T6 nos deixarem, por razões óbvias (obscuridade e já falta de bombas), de operar.

A serração de que falo ficava a poucos quilómetros de Olossato na estrada para Farim (e K3) mais propriamente em Joboiá, metida um pouco dentro no mato e do lado esquerdo.

Era um dos santuários do inimigo ali no Oio. A 566 tivera ali um revés que os marcou.

Até que um dia chegou a ordem de alinharmos para destruirmos a famigerada Serração de Joboiá, a célebre serração, ou melhor, o que restava do que outrora foi uma serração e isto não passava apenas das paredes ao alto (o que bastava para o IN se emboscar e era tido como um ponto de encontro) e dos caibros da armação que outrora sustentava o telhado. A serração de Joboiá distava do Olossato cerca de 4 a 5 quilómetros na estrada para Farim. Ficava isolada e longe de qualquer meio povoado. Olossato era o mais próximo, porventura. A “casa-de-mato” de Cansambo não muito longe dali também.

Chamo-lhe de célebre pois muito cedo começamos a ouvir falar dela. Logo que se falava de Olossato falava-se fatalmente da serração e de uma maneira temível e então esta tinha as suas histórias de guerra para contar. Ao que se sabia, os terroristas aproveitavam-se das suas ruínas, ou melhor das paredes, para fazerem emboscadas, assim bem abrigados e num ponto bem estratégico. Ali, naquele sítio, uma emboscada era uma constante sempre que a tropa passasse na estrada de Farim, estrada que distava da serração aí a uns 40 metros.

Lembro que esta estrada no meu tempo era dada como interdita a colunas auto.

O acesso a Farim era feito pela estrada que vinha de Mansabá até ao K3 onde entroncava com a estrada Olossato-Farim e, principalmente, pela via fluvial, através do Cacheu.

Assim, sempre que passávamos ao lado da serração havia o receio de eles estarem por ali.

Então o Capitão resolveu acabar com aquilo, o que, e no dizer dele, era mais um mito que outra coisa, o que nós concordamos.

O dispositivo para tal operação foi, prévia e obviamente, muito bem concebido pelo Cap. Riquito.

A foto na Serração (houve tempo para uma foto de circunstância): Pessoal da 816 que colaborou na destruição da serração de Joboiá – Veem-se em pé: o Alferes Costa (com a G3 à caçador), Furriéis Rui (eu com a mão no cinto) e Coelho; Flores, Alferes Esteves (de capacete) e o “Pelé”; e em baixo o Clarimundo simulando carregar o morteiro e o “Chaves” com a sua “bazooka” a “fazer foto” da estrada Farim-Olossato. Do lado direito pode-se ver ainda parte da estrutura da serração.

Cerca das 3 horas da madrugada sai então do aquartelamento o 1.º Grupo de combate comandado pelo Alferes Costa, na ausência do Alferes Barros o titular daquele Grupo. A missão deste Grupo é fazer um reconhecimento e instalar-se em redor da serração, em dispositivo de segurança, de forma que, já pelo alvorecer, a chegada do meu Grupo de combate àquele sítio e mais tarde o grupo das viaturas seja feito a coberto de qualquer surpresa, pois, uma vez já ali instalado o 1.º Grupo, não seríamos surpreendidos pelo inimigo, que podia muito bem já estar ali acoitado. Portanto, quer dizer, o 1.º Grupo assegurava a não presença inimiga ali na altura que nós chegássemos pela alvorada, e mantinha a segurança ao 3.º GC (o meu Grupo) que com o material adequado procedia à completa destruição do que ainda então restava da antiga serração. Mas, logo no começo da operação, traçou o destino, ia haver contacto com o inimigo. Assisti ao partir do 1.º Grupo de Combate, que, silenciosa e cuidadosamente, saiu em fila indiana, e como já se disse, à volta da 3 da madrugada, rumo ao objetivo. Primeiro eles iam por a estrada até à ponte do rio Olossato - o costume - que ficava a cerca de um quilómetro do Quartel, e, ultrapassada a ponte, meter-se-iam então pelo mato, para melhor segurança na progressão e evitarem serem detetados.

Quando os últimos homens da coluna estavam a sair do aquartelamento contornando o cavalo-de-frisa na saída para a estrada para Farim, e como já era um pouco tarde e eu tinha que me levantar cedo, fui-me deitar. Quando me aprestava para adormecer, e já todos nós deitados, eis que ecoa um metralhar contínuo e forte que mais forte parecia no silêncio da noite. Uma rajada breve. Parecia fogo de uma metralhadora pesada. “É nosso?” “É deles?” - interrogamo-nos, surpresos. Era eles com certeza; naquela altura já tínhamos o ouvido bem sintonizado para o tipo de estampido e a sua cor. Era ali perto, pelo nítido ouvir da metralhadora e a julgar por só terem passados breves minutos após a saída do Grupo. Como que impelidos pela mesma mola logo saltamos da cama e procuramos saber o que se passava. Tinha sido ali pertinho, precisamente logo ao sair da ponte e à entrada para o mato. “Foram eles, e parece que há feridos” - alguém disse apavoradamente. Estranhamos como aconteceu já ali perto e para mais saídos de surpresa (?) como era habitual. Logo o Capitão e dois soldados armados se introduziram num ”jeep” e para lá se deslocaram ao saber-se pelo rádio do local exato e de que haviam feridos. Pouco tempo depois regressa o “Jeep” rumo à Enfermaria e então constatou-se ter sido o Andrade atingido com um tiro numa coxa. O preto Seidi tinha levado também um tiro que lhe esfacelou um dedo dum pé. Os feridos, claro, ficaram no quartel, mas o Grupo continuou para o objetivo: Garantir a segurança em redor da serração, para o outro Grupo, que iria chegar pelo alvorecer, para proceder ao seu desmantelamento.

Viemos a saber que os tiros de metralhadora e ao que parecia ser pesada, tinham sido feitos por presumíveis sentinelas que o inimigo tinha ali instalado em permanente vigilância à tropa do Olossato. Porém, estes sentinelas, com certeza que só à noite ali estavam, pois era também sempre de noite que nós saíamos para operações de “Golpes-de-mão” e não só. As sentinelas descarregaram então o que puderam e logo fugiram através do emaranhado do mato e a coberto da escuridão. Acontecia muitas vezes isto: sentinela detetado, despejar a arma e fugir. O alarido dos tiros avisava o seu grupo e podia ainda sobrar alguma coisa. Não seriam mais que dois, como alguém bem perto da cena calculou. Do pelotão nem chegou a haver reação. Apanhados de surpresa, em plena escuridão da noite e praticamente à porta de casa, limitaram-se a deitarem-se para o chão e como ficaram aos magotes, ninguém respondeu ao fogo inimigo até com o receio de se ferirem uns aos outros. A coisa foi também muito rápida pois eles fizeram a rajada e debandaram logo. “Só se via a chama à boca da metralhadora” -  alguém acrescentou depois. “Eles estavam atrás de uma árvore muito grossa” - alguém ajuntou também.

Como se nada tivesse acontecido, ou por outra, como o que aconteceu não era de modo a abortar a operação, esta prosseguiu como se impunha.

Pelo alvorecer já estava o meu Grupo a caminho da serração e de encontro ao 1.º Grupo. Uma vez ali chegados, logo se começou a trabalhar na destruição do esqueleto daquilo que outrora fora uma serração. Começou-se pela remoção dos caibros que sustinham o telhado que provavelmente teria existido, e depois, à picareta, as paredes também foram postas abaixo. Com o barulho das moto-serras, o bater das tábuas ao caírem, e outros inevitáveis barulhos, receávamos pela chegada do inimigo a qualquer momento, embora o dispositivo de segurança entretanto montado pelo 1.º Grupo desse tranquilidade aos que trabalhavam. Assim, havia um grupo empenhado na completa destruição da serração e outro metido no mato formando um anel em volta daquela e a olhar pela segurança do primeiro. Entretanto alguém aproveitou para bater um instantâneo para a posteridade, cuja foto se pode ver atrás. É isso (!), havia sempre quem andasse de máquina fotográfica no seio da guerra; quem não se lembra do saudoso camaradão do Sarrico?

Foram também chegando as viaturas e respetivas guarnições. As viaturas serviriam assim ao transporte da grande quantidade de tábuas resultante da destruição da serração.

As tábuas grandes e espessas fariam bastante jeito em diversas construções no quartel.

As viaturas ficaram na estrada, portanto a cerca de 40 metros da serração, distância esta já referenciada atrás. A serração que ficava do lado esquerdo da estrada de quem ia para o K3 e mais à frente Farim, estava bem metida no mato e apenas havia um carreiro a ligar a dita serração à estrada, o que não permitia o acesso às viaturas. O transporte das tábuas e caibros para as viaturas foi assim muito moroso, pois para além de serem muitas, eram pesadas também.

Houve depois também um vai-e-vem de viaturas para o quartel, até que tudo que tivesse préstimo fosse transportado. Depois, a Companhia, naquela altura já praticamente toda, rumou de regresso ao aquartelamento, metade apeada e outra metade aproveitando as viaturas. Tempos andados teríamos então uma surpresa, ou talvez não… o inimigo! Como tempo para isso não lhes faltou. Montaram uma emboscada a meio caminho Serração-Olossato.

Emboscada forte mas a que a 816 respondeu com a maior determinação.

Na altura a Companhia já denotava muita maturidade e muito calo e então a reação foi espontânea e em potência. O inimigo pôs-se em debandada e o regresso continuou sem mais problemas.

Interrogamo-nos só, como ali tinham passado tantas vezes viaturas isoladas, algumas só o condutor e com um ou outro atirador, aquando do vai-e-vem do transporte da madeira para o quartel, e eles não terem atuado. Imaginamos então que, inclusivamente, eles até com um simples tronco de árvore atravessado na estrada apanhavam à unha o condutor e o seu eventual acompanhante e depois também destruírem a viatura. Mas, ou não acreditavam em tamanha descontração, ou preferiram esperar pelo grosso da coluna, ou seja pelos 2 Grupos de combate, agora já reforçados e assim teriam “caça grossa”. Os condutores que por ali tinham passado um pouco antes até tremiam quando se lembravam do tal.

Mas, isso é o que poderia ter acontecido, mas que de facto não aconteceu. Assim era a filosofia do “segue em frente e não olhes para trás” que melhor se coadunava com quem convivia com a guerra. A Companhia regressou ao Olossato e o mito da Serração deixou de existir, pois esta foi completamente arrasada, e quando por lá passávamos depois, já ninguém se lembrava da Serração, que afinal deu muito que contar sobretudo aos homens da 566.

Houve momentos de satisfação por mais um obstáculo desimpedido: E o mito da serração de Joboiá foi destruído,… de todo.

Segue o extrato do relatório da operação em questão:


"Estrela": local aproximado da Serração (4 a 5Km do Olossato, na estrada para Farim, passando pelo K3)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 11 de Maio de 2012 > Guiné 63/74 – P9887: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (18): O primeiro "ataque" a Bissorã

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