terça-feira, 23 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10559: Do Ninho D'Águia até África (20): Ida à capital da Província (Tony Borié)

1. Mais um episódio da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (20)

Ida à capital da Província

O trajecto entre a capital da província e o aquartelamento, onde o Cifra está estacionado, são mais ou menos setenta quilómetros de estrada. Pelo menos até à data, não houve minas, ou qualquer ataque às forças militares, dizem que não interessa aos guerrilheiros, pois esta via, é um forte meio de circulação e abastecimento, durante a noite, para as suas bases no interior, pelo menos, é o boato que por aqui corre.

Esta estrada atravessa um grande rio, com uma ponte em cimento, mais seis pântanos, com duas pontes em madeira, e nos restantes, transita-se com alguma água, na época das chuvas, e quase seco na época quente. Todos estes lugares estratégicos, estão mais ou menos guardados por militares durante o dia. De noite, dizem que a circulação é livre.

O Cifra está no seu dia de folga. Levanta-se, vai tomar banho à parte sul do aquartelamento, onde se fizeram três furos de água, que vem quente, muito quente, a cheirar a enxofre ou coisa parecida. Há uma fila de bidons, com água do dia anterior, que está morna. Toma banho, nú, veste roupa lavada, incluindo umas meias rotas na ponta, mas que dobrava e ficavam perfeitas, calça as botas de pano, já um pouco coçadas.

Vem ao refeitório, levanta a mão, em sinal de olá ao “Arroz com pão”, que é o cabo do rancho, que lhe estende uma caneca de café negro, sem açúcar, e lhe diz:
- Toma lá, para ver se a podes “curtir” mais depressa.

O Cifra, nem lhe responde, mas o “Arroz com pão” devia se referir a algum excesso de álcool, mas adiante, não vamos perder mais tempo com pormenores, pois se os aprofundarmos, de certeza que vão envergonhar um pouco o Cifra, bebe a caneca do café e coloca um cigarro “três vintes” na boca. Era uma sexta-feira, levanta a cabeça, olha em frente, vê o carro dos doentes, abre mais um pouco os olhos, em sinal de alguma alegria, e logo pensa:
- Que bom passeio à capital.

Se melhor pensou, melhor o fez. Dirige-se ao cabo enfermeiro, e pergunta:
- Ouve lá, oh “Pastilhas”, há lugar no carro dos doentes?

“Pastilhas”, era o nome com que baptizaram o cabo enfermeiro, pois muitas vezes fazia de doutor, e só receitava pastilhas. Qualquer militar que fosse à enfermaria, com dores numa perna, num braço, na barriga, na cabeça, nos dentes, ou qualquer outra enxaqueca, o curativo era o mesmo, e dizia:
- Toma estas pastilhas, de quatro em quatro horas, com água, e deixa de beber álcool, por uns dias, se não morres.

Bem, mas em resposta ao Cifra, ele, conhecedor da tramóia, responde-lhe:
- Eu não sei nada, até nem sou de cá.

O Cifra, salta para a viatura, onde já se encontrava o Setúbal, na mesma situação. Ruma à capital.

O carro dos doentes fica no hospital que está situado quase à entrada da cidade, para quem vem do interior da província, e regressa às cinco da tarde.

No hospital, o Cifra e o Setúbal, arranjam boleia em qualquer viatura militar que os leva até à avenida principal, onde ao fundo havia o palácio do governador, (foto ao lado), e que era o ponto de referência e de encontro, quando alguém se perdia, ou por qualquer circunstância se separava do grupo, era ali que se encontravam de novo, para regressarem às suas unidades militares. A polícia militar, que estava estacionada no forte da “Amura”, andava sempre por ali, mas quando via militares de farda amarela, grandes bigodes, com alguns embrulhos nas mãos ou debaixo dos braços, sabiam que eram militares que estavam de passagem e tinham vindo do interior da província, e faziam “vista grossa”.

Na cidade, dão uma volta pelo mercado. Cheira a tabaco seco, carne fresca e coca. Há mangos e papaia, fruta de caju, amendoim verde, a que chamam mancarra, bananas, batata doce, peixe seco, mandioca, balaios de arroz, aguardente de palma vendida ao púcaro, macacos, periquitos e outras aves exóticas, pano de diferentes cores vendido à peça, colares e bujigangas, figuras em madeira representando animais, há alguns gatos empoleirados no muro do mercado, assim com alguns cães que circulam por ali, com o rabo entre as pernas, e outros deitados próximo das bancas onde se vende carne fresca, que de vez em quando dão ao rabo sacudindo as moscas e outros insectos, moscas e insectos esses, que saltam dos cães para cima da carne fresca, e mais um amalganhado de coisas sem fim. Saem do mercado meio tontos.


Descem a avenida e passeiam à beira do rio, é altura da maré baixa, é só lama, mesmo assim alguns barcos em madeira, pintados com cores garridas, baloiçam numa parte do rio, onde há alguma água, dizem que é o cais de embarque Pigiguiti, ou coisa parecida, e é daí, que partem barcos para as ilhas de Bolama, também vêm a fortaleza de S. José da Amura, (foto acima) que próximo, tem uma estátua de alguém que se notabilizou, por atravessar mares nunca antes navegados, frase esta que o Cifra aprendeu na escola primária da vila, onde pertencia a sua aldeia do Ninho d’Águia, lá ao fundo vêm o ilhéu do Rei, assim como o cais de embarque, onde alguns navios pequenos conseguem atracar na maré cheia. Há alguma azáfama de pessoas indo e vindo de um barco, que neste momento está atracado, mas pela água que existe em redor do cais, concerteza que o seu casco está em contacto com a lama. Uma garotita africana, quase nua, só com um trapito a cobrir-lhe parte do corpo, com a cara suja, o dedo na boca, movendo os lábios, dando a impressão que estava a comer baba e ranho, que lhe vinha do nariz, aproxima-se com a mão estendida e diz mais ou menos isto:
- Patacão pra comprá bianda.

Levou algumas moedas, e começou a correr em direcção, a quem possívelmente era a mãe, que estava um pouco distante, em frente a um balaio de mancarra torrada, que vendia ao púcaro. Mas voltando à beira do rio, alguns africanos procuram qualquer coisa na lama, que logo apanham e põem numa saca, que trazem à cinta. Não sabem o que é, mas também não interessa.

A brisa é boa, e o lugar até se torna agradável.

Passam duas raparigas africanas, com um vestido às flores, que lhe cobre quase o corpo todo, não parece um vestido, parece mais uma peça de pano inteira em que vão enroladas, mas muito justa ao corpo, com outra tira de pano cor de rosa, amarrado à cinta, na cabeça também levam um pano amarrado, da mesma cor da cinta, duas argolas de um metal com algum brilho caiem das suas orelhas, os braços vão descobertos, tendo algumas pulseiras feitas de missangas com diversas cores, ao pescoço também levam uns colares de missanga que lhe fazem sobressair o rosto, que tem uma cor preta com a tonalidade do chocolate, mas muito brilhante, onde sobressaiem uns olhos que denunciam qualquer coisa como um mistério, e nos pés levam umas sandálias rasas, de plástico, brancas. Caminham, bamboleando o corpo, talvez sabendo que são observadas, que ao passarem pelo Cifra e o Setubal, olham de lado, com um olhar algo comprometedor.

O Cifra assobia, um assobio um pouco provocativo. Elas voltam-se e sorriem, provocativas, também. O Setúbal, segura por um braço o Cifra, que tentava avançar para as raparigas e diz-lhe, como se fosse uma ordem:
- Tem juízo homem, não te chegou o problema com as guerrilheiras, lembra-te que andas na guerra!

Sobem a rua que vem do rio, entram numa transversal e páram em frente a um estabelecimento, que era a casa Gouveia, que tinha na montra vários objectos, entre os quais uma máquina fotográfica que ficou nos olhos do Cifra. Entram, perguntam o preço, o Cifra não tinha dinheiro suficiente, mas o Setúbal, vendo a cara do Cifra, diz-lhe:
- O nosso dinheiro junto, tirando este para comer, ainda sobra para a tua máquina, portanto compra.

O Cifra comprou, parecendo um miúdo a quem dão o seu primeiro brinquedo. Continuam caminhando e entram numa pequena rua também transversal, que vai dar à taverna do Transmontano, pois é assim que lhe chamam.

É uma casa de um só piso, metade é casa e a outra metade é um grande cabanal, com mesas e cadeiras ao comprido. É aí que os militares, quando vêm à capital, normalmente comem. A cozinha, ao lado do cabanal, coberta com folhas de zinco, formando duas abas, tem três fogões, feitos em adobe, cada um tem um grande buraco em cima, de onde sai forte labareda. Três africanas, bastante fortes na estatura, mexem-se rápido em frente aos fogões. Uma enorme rima de lenha, ao fundo do cabanal, completa o cenário.

O transmontano e a esposa, também bastante forte na estatura, estão ao balcão a dirigir o serviço. Não tiram os olhos das duas filhas, jeitosas e morenas, que andam numa azáfama, a servir nas mesas. Um pequeno pormenor, que não passa despercebido, têm duas espingardas caçadeiras penduradas atrás do balcão. A comida é boa, com sabor português/africano e muito gindungo, a bebida normal é a cerveja, que se bebe à temperatura ambiente.

Lá para o fim da tarde passaram pela “Tasca dos Trovadores”, (a que o Curvas, alto e refilão, na sua reles linguagem, dizia que era a tasca dos paneleiros), pois era assim que chamavam a uma taverna, que ficava para os lados do quartel da Marinha, que vendia a melhor cerveja gelada da capital, onde o “Zé Manel”, um fuzileiro ali estacionado, ajudava no balcão e sabia tirar um “fino” como ninguém. Era quase uma passagem obrigatória de todos os militares que visitavam a capital da província, vindos do interior, onde os militares e não só, que se julgavam cantores, tinham oportunidade de o mostrar, pois havia um palco com microfone ligado e tudo.

No regresso, dizia o Cifra para o Setúbal:
- Parece que não andamos na guerra.

O Setubal, ri-se, levanta os olhos e diz:
- Fuma o cigarro e cala-te, pois daqui a umas horas estás de novo no aquartelamento, circundado de arame farpado.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 20 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10549: Do Ninho D'Águia até África (19): Furriel Roger, o Herói (Tony Borié)

3 comentários:

paulo santiago disse...

Tony

Não conheci a Taberna do Transmontano nem a Tasca dos Trovadores,esses nomes não me dizem nada.Perto da Marinha havia o Solar dos Dez,não sei se já no teu tempo,e quase em frente,havia uma tasca(será uma das que falas?)onde comi muita ostra e camarões.
Gosto da descrição dos atavios das bajudas...tens cá um olho...

Abraço do conterrâneo e camarada
Paulo

Tony Borie disse...

Olá Paulo.
A Taverna do Transmontano, estava localizada numa das transversais da avenida principal que vinha dar ao rio, mais ou menos ao meio da avenida, também para o lado do quartel da marinha, e fazia galinha à cafrial com um sabor, que quando chegava a Mansoa ainda lambia os beiços!. E a Tasca dos Trovadores, era numa pequena rua próximo do quartel da marinha, era de europeus, mas quem servia era soldados da marinha, tinha uma pequena esplanada, e subia-se dois ou três degraus em madeira, para entrar, saindo dessa pequena esplanada, que estava circundada com uma vedação também em madeira, e a um canto um pequeno palanque com microfone e tudo, também servia camarão e ostras, mas a cerveja a copo é que era boa!. O Zé Manel que refiro, mais tarde encontrei-o aqui nos Estados Unidos numa cidade próximo de Nova Iorque, onde vivi muitos anos, encontrei-o em estado bastante lamentável, e para a frente vou contar a sua história, que sempre que me lembro, me dá bastante tristeza. Um abraço o amigo e conterrâneo, Tony Borie.

Rogerio Cardoso disse...

Tony, estás um artista na escrita. O blogue tem a obrigação de te estar grato, pois as tuas histórias têm muito interesse. Quanto a mim, só conheci o Asdrubal, mais conhecido na altura pelo porco sujo, o Café Bento, o Imperio e pouco mais, pois na minha comissão só vim umas 3 vezes a Bissau, e aproveitava para alguma diversão no célebre Pilão, já que as estadias eram sempre de meia duzia de dias.
Rogerio Cardoso-Roger-
Cart.643-Aguias Negras-