1. Segundo episódio da nova série do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), a que ele deu o título de Bom ou mau tempo na bolanha.
O Tó d’Agar, como é conhecido neste texto, regressou ao
convívio da sua família, ao seu vale do Ninho d’Aguia, onde
passa o comboio das seis e meia, aos seus amigos do grupo de
folclore, à sua vila de pessoas importantes, como aquela a quem
a mãe Joana pediu dinheiro para comprar um porco bebé na feira
dos vinte e quatro, que incutem aos seus filhos, também
protegidos pelo regime, uma certa cultura que o combatente
Cifra, que agora se chama de novo o Tó d’Agar, que depois de
passar dois anos em cenário de guerra, não vai aceitar nunca.
É outra pessoa. Mais frio, um pouco desconfiado, quando
alguém fala com ele, ouve, mas fica a pensar o que essa pessoa
vai querer dele no futuro. Assume situações de responsabilidade,
não procura conflitos, mas não foge deles se por acaso aparecem,
normalmente fala olhos nos olhos e confronta as pessoas, se
entende que não é justo o que fazem ou dizem. Revolta-se e
enfrenta qualquer situação de injustiça, onde antes, nem sequer
reparava que existia.
Quando estava ao serviço de Portugal, na província
ultramarina, o comandante, por mais de uma vez lhe disse que
devia ir para o corpo da Polícia de Viação e Trânsito, quando
terminado o serviço militar, que o ajudava a ser incorporado,
que era um bom futuro. O Tó d’Agar, não tinha vocação para
polícia, não tinha coragem de passar uma multa a uma pessoa que
usava uma bicicleta como meio de transporte. Não, isso nunca,
iria ser um mau polícia do regime, arranjou emprego numa oficina
gráfica da vila.
Entre umas tantas raparigas com quem convivia, decidiu-se
por uma madrinha de guerra, que lhe escrevia cartas
encorajadoras quando estava em cenário de guerra. Começou por
visitá-la, aí começou o namoro que durou algum tempo, entendiam-se.
No conjunto de sentimentos, havia os mesmos ideais, ambos
estavam fartos da grande diferença que existia no tratamento das
pessoas, viviam amargurados pelas lidas na lavoura, depois do
trabalho na vila e sempre sem um tostão
furado para uma roupa mais catita, pois
nessa altura os filhos trabalhavam e
entregavam o dinheiro do salário aos pais,
que lhe davam algum dinheiro, controlado,
para as suas extravagâncias, que mal dava
para um copo de vinho na taverna, no fim
do baile ao sábado à noite, no terreiro do
lugarejo. A diferença entre ricos e
pobres era grande e nada podiam fazer
para modificar o sistema. Queriam
construir um lar onde houvesse igualdade, justiça e amor.
Casaram em Setembro, numa igreja ao norte do vale do Ninho
d’Aguia, com alguns amigos e banquete a preceito, na casa dos
pais da Margarida.
.
A esposa Margarida também trabalhava na vila, podiam viver,
mas casa própria, futuro e educação dos filhos, nunca haveria
meios para isso, pois a maneira como estava condicionado o
regime de protecção, as pessoas que tinham algum património, ou
seja os ricos, esses eram ricos e soberbos e como era natural,
seguindo a lei da protecção, protegiam-se e
aos seus filhos, tirando o máximo partido
do trabalho e esforço das pessoas com menos
recursos, que eram os pobres, era assim,
não havia maneira de modificar o sistema.
Entretanto a Margarida fica grávida e a
criança, uma menina, nasce morta nas mãos
do médico que a assistia. Não existe explicação para situações
destas. Se a Margarida foi com a criança viva dentro da barriga para ser internada e ter a bebé na presença do doutor,
porque carga de água morre a bebé na presença do mesmo?
Nunca lhe deram uma explicação para esta
situação. O Tó d’Agar só encontra uma
explicação, de facto “era do contra”, quase
todos na vila sabiam isso e portanto houve
falta de interesse por um parto que era
de pessoas pobres e ainda por cima “eram do
contra”.
Nesse parto, a Margarida ficou bastante maltratada.
Posteriormente foi submetida a melindrosa operação cirúrgica
dessas mazelas derivadas do parto, esta operação, assim como
todos os custos de estadia num hospital do regime, foram a
expensas do casal, embora ambos fossem
beneficiários da então Caixa de Previdência,
que ninguém sabia, mas só beneficiava alguns
eleitos pelo regime de protecção que então
existia.
O Tó d’Agar lembra-se de que no momento
em que se dirigiu à secretaria do hospital do
regime para o internamento da esposa, para essa melindrosa
operação cirúrgica, o zeloso empregado, que era seu conhecido,
lhe disse:
-
Dá-me os teus cartões de identificação da Caixa de
Previdência, pois não tens que pagar nada.
Umas semanas depois, esse mesmo zeloso
empregado, lhe disse, um pouco abatido:
- Eles, na gerência, dizem que tens que
pagar todas as expensas, o doutor que fez a
operação, esse, quer o seu dinheiro
o mais rápido que puderes, e entre outras
coisas, dizem que “és do contra”, e andas de noite por aí a pôr
panfletos, que fazes lá na gráfica onde trabalhas, e dizem que
até lá estão a imprimir um livro de um autor que está na
clandestinidade, e que quanto mais mal te sentires aqui, mais
depressa te vais embora.
Passado uns meses, o To d’Agar foi por duas vezes visitado
pela Polícia do Estado, fizeram-lhe perguntas, mostraram-lhe
alguns panfletos que lhe eram familiares e a cópia do
interrogatório que tinha sofrido na então província da Guiné,
quando andava na companhia da Cumba e sua
irmã, que uma delas era a sua lavadeira.
Da última vez que o visitaram, os
polícias, vendo a sinceridade com que o Tó
d’Agar falava, vendo os papeis do hospital
para pagar, sendo ele e a esposa
beneficiários da então Caixa de
Previdência, tinham-lhe matado a filha
bebé, vendo os sacrifícios e a vida
miserável que levava para poder pagar ao
hospital todos os meses, entre outras coisas disseram-lhe, mais
ou menos assim:
- Pelo menos nós não te visitamos mais, vamos arquivar e
esquecer a tua ficha, mas tens que nos prometer que não te metes
em mais confusões, e se é verdade que andas por aí a pôr
panfletos durante a noite, tal como este, a dizer mal de Sua
Excelência o Senhor Presidente do Conselho de Ministros, que a nós nos merece o
maior respeito, pois é ele o salvador desta nação, a dizer entre
outras coisas para não irem mais militares jovens para o
Ultramar e a dizer coisas não muito abonatórias de pessoas
importantes da administração local, pára imediatamente, parece
que não gostaste de lá andar, mas se continuas assim e te
voltarmos a visitar, vais lá parar de novo, disso temos a firme
certeza, lembra-te que ainda temos a tua caderneta militar,
portanto ainda és militar, isto é uma ordem final.
E o mais novo, ao despedir-se, olhou-o nos olhos e até lhe
apertou a mão, mas confirmando as palavras do seu colega
polícia.
____________
Nota do editor:
Último poste da série de 9 DE ABRIL DE 2013 > Guiné 63/74 - P11364: Bom ou mau tempo na bolanha (1): Uma foto que fala por si (Tony Borié)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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4 comentários:
Camarigo Tony Borié
Li e até guardei em pasta própria todos os teus escritos de MANSOA, pois também sou veterano mansoanca, ainda que posterior a ti naquela terra, mas julgo que mais velho em idade.
Nunca fiz qualquer comentário, apesar de admirar a forma e o conteúdo dos teus escritos.
Porém agora, que não se trata de assunto directamente daquela guerra, mas já da tua vida pessoal pós-combatente, não posso deixar de manifestar o meu desconforto pelo tratamento que te deram.
Eu, que não sofri "na carne" esse "mau tempo na bolanha", não esqueço esses "maus tempos" neste País.
Recebe um abraço de um filho de combatente na 1.ª Guerra Mundial em França, que depois do seu regresso, também teve de abalar para os USA a fim de procurar melhores meios para sustentar a Família que tinha constituído.
JPicado
Amigo, igual a ti muitos de nós passámos pelo mesmo e até parece que esta discrição poderia eu fazer e era igual à tua. Pobre sofria mesmo mas na verdade não nos vergávamos. Um abraço para ti e o teu novo neto com está?
De Veríssimo Ferreira
Caro camarada Tony
Como muitos outros, segui com atenção e interesse todos os teus escritos anteriores. Fiz um ou outro comentário. Gostei do que escreveste, da forma como apresentaste as peripécias que te sucederam, os teus 'estados de alma', o enquadramento entre o 'antes', o 'durante' e temos agora o 'depois'.
Pois é, houve quem escrevesse que era um 'País rigorosamente vigiado' mas isso era um exagero (quanto ao 'rigor'), pois havia sempre uma maneira de tornear os 'vigilantes'. No entanto, para ti, parece que as coisas foram mesmo 'rigorosas', com todo o rasto de iniquidades próprias desses tempos.
Pode-se pensar que os tempos que relataste já não têm a ver com a tua 'passagem pela guerra', mas isso é apenas relativo pois a condição de 'combatente' veio a projectar-se no futuro e na verdade ainda hoje há quem esteja a 'viver' esses tempos e as suas consequências.
Abraço
Hélder S.
Eis como, num pequeno e simples texto, está um grande retrato social dum cantinho deste país numa época ainda não muito distante! Retrato que se podia replicar por quase todo o território nacional pois eram assim mesmo as relações político-sociais, as relações entre o poder político-económico e os seus beneficiados e a grande massa da população residente.
Seria bom, acho, distraídos que possamos andar, não nos replicarmos hoje como "distraídos" iguais aos daquela época e, assim, arrepiarmos caminho enquanto é tempo.
Muito obrigado, meu caro Tony, por este texto.
Estou quase como o Jorge Picado, parafraseando:
"Eu que (não sofri) sofri "na carne" esse "mau tempo na bolanha", não esqueço esses ("maus tempos") maus tempos neste País."
Um grande abraço,
Manuel Joaquim
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