domingo, 14 de abril de 2013

Guiné 63/74 - P11391: Bom ou mau tempo na bolanha (2): Regresso a Portugal e matrimónio (Tony Borié)

1. Segundo episódio da nova série do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), a que ele deu o título de Bom ou mau tempo na bolanha.



O Tó d’Agar, como é conhecido neste texto, regressou ao convívio da sua família, ao seu vale do Ninho d’Aguia, onde passa o comboio das seis e meia, aos seus amigos do grupo de folclore, à sua vila de pessoas importantes, como aquela a quem a mãe Joana pediu dinheiro para comprar um porco bebé na feira dos vinte e quatro, que incutem aos seus filhos, também protegidos pelo regime, uma certa cultura que o combatente Cifra, que agora se chama de novo o Tó d’Agar, que depois de passar dois anos em cenário de guerra, não vai aceitar nunca.

É outra pessoa. Mais frio, um pouco desconfiado, quando alguém fala com ele, ouve, mas fica a pensar o que essa pessoa vai querer dele no futuro. Assume situações de responsabilidade, não procura conflitos, mas não foge deles se por acaso aparecem, normalmente fala olhos nos olhos e confronta as pessoas, se entende que não é justo o que fazem ou dizem. Revolta-se e enfrenta qualquer situação de injustiça, onde antes, nem sequer reparava que existia.

Quando estava ao serviço de Portugal, na província ultramarina, o comandante, por mais de uma vez lhe disse que devia ir para o corpo da Polícia de Viação e Trânsito, quando terminado o serviço militar, que o ajudava a ser incorporado, que era um bom futuro. O Tó d’Agar, não tinha vocação para polícia, não tinha coragem de passar uma multa a uma pessoa que usava uma bicicleta como meio de transporte. Não, isso nunca, iria ser um mau polícia do regime, arranjou emprego numa oficina gráfica da vila.

Entre umas tantas raparigas com quem convivia, decidiu-se por uma madrinha de guerra, que lhe escrevia cartas encorajadoras quando estava em cenário de guerra. Começou por visitá-la, aí começou o namoro que durou algum tempo, entendiam-se. No conjunto de sentimentos, havia os mesmos ideais, ambos estavam fartos da grande diferença que existia no tratamento das pessoas, viviam amargurados pelas lidas na lavoura, depois do trabalho na vila e sempre sem um tostão furado para uma roupa mais catita, pois nessa altura os filhos trabalhavam e entregavam o dinheiro do salário aos pais, que lhe davam algum dinheiro, controlado, para as suas extravagâncias, que mal dava para um copo de vinho na taverna, no fim do baile ao sábado à noite, no terreiro do lugarejo. A diferença entre ricos e pobres era grande e nada podiam fazer para modificar o sistema. Queriam construir um lar onde houvesse igualdade, justiça e amor. Casaram em Setembro, numa igreja ao norte do vale do Ninho d’Aguia, com alguns amigos e banquete a preceito, na casa dos pais da Margarida.
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A esposa Margarida também trabalhava na vila, podiam viver, mas casa própria, futuro e educação dos filhos, nunca haveria meios para isso, pois a maneira como estava condicionado o regime de protecção, as pessoas que tinham algum património, ou seja os ricos, esses eram ricos e soberbos e como era natural, seguindo a lei da protecção, protegiam-se e aos seus filhos, tirando o máximo partido do trabalho e esforço das pessoas com menos recursos, que eram os pobres, era assim, não havia maneira de modificar o sistema.

Entretanto a Margarida fica grávida e a criança, uma menina, nasce morta nas mãos do médico que a assistia. Não existe explicação para situações destas. Se a Margarida foi com a criança viva dentro da barriga para ser internada e ter a bebé na presença do doutor, porque carga de água morre a bebé na presença do mesmo?
Nunca lhe deram uma explicação para esta situação. O Tó d’Agar só encontra uma explicação, de facto “era do contra”, quase todos na vila sabiam isso e portanto houve falta de interesse por um parto que era de pessoas pobres e ainda por cima “eram do contra”.

Nesse parto, a Margarida ficou bastante maltratada. Posteriormente foi submetida a melindrosa operação cirúrgica dessas mazelas derivadas do parto, esta operação, assim como todos os custos de estadia num hospital do regime, foram a expensas do casal, embora ambos fossem beneficiários da então Caixa de Previdência, que ninguém sabia, mas só beneficiava alguns eleitos pelo regime de protecção que então existia.

O Tó d’Agar lembra-se de que no momento em que se dirigiu à secretaria do hospital do regime para o internamento da esposa, para essa melindrosa operação cirúrgica, o zeloso empregado, que era seu conhecido, lhe disse: -
Dá-me os teus cartões de identificação da Caixa de Previdência, pois não tens que pagar nada.

Umas semanas depois, esse mesmo zeloso empregado, lhe disse, um pouco abatido:
- Eles, na gerência, dizem que tens que pagar todas as expensas, o doutor que fez a operação, esse, quer o seu dinheiro o mais rápido que puderes, e entre outras coisas, dizem que “és do contra”, e andas de noite por aí a pôr panfletos, que fazes lá na gráfica onde trabalhas, e dizem que até lá estão a imprimir um livro de um autor que está na clandestinidade, e que quanto mais mal te sentires aqui, mais depressa te vais embora.

Passado uns meses, o To d’Agar foi por duas vezes visitado pela Polícia do Estado, fizeram-lhe perguntas, mostraram-lhe alguns panfletos que lhe eram familiares e a cópia do interrogatório que tinha sofrido na então província da Guiné, quando andava na companhia da Cumba e sua irmã, que uma delas era a sua lavadeira.

Da última vez que o visitaram, os polícias, vendo a sinceridade com que o Tó d’Agar falava, vendo os papeis do hospital para pagar, sendo ele e a esposa beneficiários da então Caixa de Previdência, tinham-lhe matado a filha bebé, vendo os sacrifícios e a vida miserável que levava para poder pagar ao hospital todos os meses, entre outras coisas disseram-lhe, mais ou menos assim:
- Pelo menos nós não te visitamos mais, vamos arquivar e esquecer a tua ficha, mas tens que nos prometer que não te metes em mais confusões, e se é verdade que andas por aí a pôr panfletos durante a noite, tal como este, a dizer mal de Sua Excelência o Senhor Presidente do Conselho de Ministros, que a nós nos merece o maior respeito, pois é ele o salvador desta nação, a dizer entre outras coisas para não irem mais militares jovens para o Ultramar e a dizer coisas não muito abonatórias de pessoas importantes da administração local, pára imediatamente, parece que não gostaste de lá andar, mas se continuas assim e te voltarmos a visitar, vais lá parar de novo, disso temos a firme certeza, lembra-te que ainda temos a tua caderneta militar, portanto ainda és militar, isto é uma ordem final.

E o mais novo, ao despedir-se, olhou-o nos olhos e até lhe apertou a mão, mas confirmando as palavras do seu colega polícia.
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Nota do editor:

Último poste da série de 9 DE ABRIL DE 2013 > Guiné 63/74 - P11364: Bom ou mau tempo na bolanha (1): Uma foto que fala por si (Tony Borié)

4 comentários:

Anónimo disse...

Camarigo Tony Borié

Li e até guardei em pasta própria todos os teus escritos de MANSOA, pois também sou veterano mansoanca, ainda que posterior a ti naquela terra, mas julgo que mais velho em idade.
Nunca fiz qualquer comentário, apesar de admirar a forma e o conteúdo dos teus escritos.
Porém agora, que não se trata de assunto directamente daquela guerra, mas já da tua vida pessoal pós-combatente, não posso deixar de manifestar o meu desconforto pelo tratamento que te deram.
Eu, que não sofri "na carne" esse "mau tempo na bolanha", não esqueço esses "maus tempos" neste País.

Recebe um abraço de um filho de combatente na 1.ª Guerra Mundial em França, que depois do seu regresso, também teve de abalar para os USA a fim de procurar melhores meios para sustentar a Família que tinha constituído.

JPicado

Anónimo disse...

Amigo, igual a ti muitos de nós passámos pelo mesmo e até parece que esta discrição poderia eu fazer e era igual à tua. Pobre sofria mesmo mas na verdade não nos vergávamos. Um abraço para ti e o teu novo neto com está?
De Veríssimo Ferreira

Hélder Valério disse...

Caro camarada Tony

Como muitos outros, segui com atenção e interesse todos os teus escritos anteriores. Fiz um ou outro comentário. Gostei do que escreveste, da forma como apresentaste as peripécias que te sucederam, os teus 'estados de alma', o enquadramento entre o 'antes', o 'durante' e temos agora o 'depois'.

Pois é, houve quem escrevesse que era um 'País rigorosamente vigiado' mas isso era um exagero (quanto ao 'rigor'), pois havia sempre uma maneira de tornear os 'vigilantes'. No entanto, para ti, parece que as coisas foram mesmo 'rigorosas', com todo o rasto de iniquidades próprias desses tempos.

Pode-se pensar que os tempos que relataste já não têm a ver com a tua 'passagem pela guerra', mas isso é apenas relativo pois a condição de 'combatente' veio a projectar-se no futuro e na verdade ainda hoje há quem esteja a 'viver' esses tempos e as suas consequências.

Abraço
Hélder S.

Bispo1419 disse...

Eis como, num pequeno e simples texto, está um grande retrato social dum cantinho deste país numa época ainda não muito distante! Retrato que se podia replicar por quase todo o território nacional pois eram assim mesmo as relações político-sociais, as relações entre o poder político-económico e os seus beneficiados e a grande massa da população residente.
Seria bom, acho, distraídos que possamos andar, não nos replicarmos hoje como "distraídos" iguais aos daquela época e, assim, arrepiarmos caminho enquanto é tempo.

Muito obrigado, meu caro Tony, por este texto.
Estou quase como o Jorge Picado, parafraseando:
"Eu que (não sofri) sofri "na carne" esse "mau tempo na bolanha", não esqueço esses ("maus tempos") maus tempos neste País."

Um grande abraço,
Manuel Joaquim