quarta-feira, 17 de abril de 2013

Guiné 63/74 - P11413: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (12): A morte se fez visita estrondosa

1. Em mensagem do dia 14 de Abril de 2013, o nosso camarada  Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, BissauBissorã e Mansabá, 1965/67), enviou-nos a sua décima segunda "Carta de Amor e Guerra". 


CARTAS DE AMOR E GUERRA

12 - A Morte se fez visita estrondosa

Quantos de nós, na Guiné, não passámos por dias e dias seguidos sem o “cheiro” da Morte, em que esta parecia ter ido de férias, esquecendo-nos da sua ameaça de regressar ao “trabalho” a qualquer momento? Às vezes até a podíamos sentir a pairar sobre nós, qual abutre sereno e vigilante, à espera de atacar a sua refeição mas, com o correr do tempo e à falta de ataque, o “abutre” chegava a convencer alguns que estava em “greve de fome”.

Fora da área de guerra, nada é diferente a não ser haver a consciência de que a morte andará mais ou muito mais arredia. Pensa-se menos nela, alguns vivem como se ela estivesse “em greve” por tempo indeterminado.

Nas cartas abaixo transcritas vêm à tona os “caprichos” da Morte. Num período de 17 dias, ela atacou nos nossos espaços vivenciais, nos meus e nos da minha namorada*, com resultados inesperados. Nos dela, onde se presumia não haver perigo de maior, as vítimas mortais foram 41 e nos meus, a priori considerados locais de residência da morte, esta só agarrou quatro. E quanto a resultados anímicos, não sei quais os mais duros, se foram os meus por ter perdido alguns amigos e camaradas se os dela, no imediato a lidar com as angustiantes emoções dos familiares dos mortos e depois, durante muito tempo e presencialmente, com as dos feridos graves e suas sequelas físicas, psíquicas e económicas.

*Trabalhava na área jurídica e de contencioso da C.P. Todos os processos subsequentes, relativos a vítimas dos acidentes ferroviários, passavam por aqueles serviços.

Detalhe de cartas: Lisboa (22/12/1965) e Bissorã (6/1/66).


Lisboa, 22-Dez. 1965
(… … …)
(…) sinto hoje uma enorme vontade de viver! Uma imperiosa necessidade de mostrar quanto valho! A vida é uma maravilhosa caixinha de surpresas onde os bons e os maus momentos se alteram com espantosa facilidade.
Ontem, ainda, encontrava-me tão desalentada, melancólica e até revoltada. E contra quem? Incógnita, não sei especificamente. Mas revoltada contra tudo e contra todos, até. Porém hoje sinto uma enorme vontade de viver, de acreditar.
(… … …)
Este fim de ano parece estar a ser manipulado por mãos criminosas, diabólicas, entretidas em espalhar a dor e a angústia por tantos lares onde falta um ente querido que já os não acompanhará na noite de consoada. No passado dia 18, em Vilar de los Álamos, localidade próxima de Salamanca, deu-se um violento embate entre o Sud-Expresso que rodava rumo a Lisboa e um comboio-correio. (…)resultou a morte de 13 portugueses e mais 17 feridos, emigrantes que regressavam da Alemanha e da França.
Ontem, (…) outro desastre (…). Este, na linha de Sintra, entre uma composição eléctrica e um comboio de mercadorias que avançou desordenadamente sobre o primeiro. Do sinistro há a lamentar a morte de 23 passageiros e dezenas de feridos com gravidade. O maquinista do comboio responsável pelo acidente é teu conhecido. É o (…) de Pombal (…).
Nesse mesmo dia, na Praia do Ribatejo, um outro comboio (…) destinado a trazer emigrantes de França e Alemanha, chocou com uma automotora. Felizmente não há mortes a registar, apenas alguns feridos.

Detalhe de “O Triunfo da Morte” de Jan Brueghel, o Jovem, uma cópia com o mesmo nome de um quadro de seu pai, Pieter Brueghel, o Velho.
Biblioteca Nacional de Paris

Esperemos que fique por aqui. O público pagante e muitos dos componentes do grupo administrativo da C.P. não se cansam de terçar armas (…) no sentido de haver uma maior segurança no material (…) e que o pessoal tenha tempo suficiente para descanso e uma habilitação prévia para desempenhar cargos de tão graves responsabilidades. Mas … nada feito. (…).
(…) muito grata pelas amáveis cartas que recebi. Foram logo cinco de uma vez. Que alegria, meu querido!… As tuas palavras são um estímulo, um incentivo precioso para o meu sentido de viver. (…)
(… … …).
Sempre tua, N.



Bissorã, 2 Jan 66
(… … …)
Eu, minha querida, palavra que ando um pouco desorientado. Sou uma contínua pilha de nervos. E eu que era tão calmo! (…) tenho o espírito em tal estado de alerta que a mais pequenina coisa me provoca uma tal irritação que dou por mim, muitas vezes, num sofrimento angustiante (…) a tornar-me ainda mais ciente de quanto a juventude portuguesa está a sofrer em África. (…).
E vejo o futuro tão negro, meu amor… Não no que se refere a nós dois mas ao ambiente em que iremos viver, isto se eu chegar a pisar terras da Europa.
No aspecto militar a coisa vai correndo bem para mim. Mas nesta guerra nada se sabe. A calma de hoje não implica a de amanhã. Se, até agora, isto tem corrido de modo a que um indivíduo menos avisado julgue que afinal o papão não existe, de um momento para o outro o desastre pode acontecer. Não menosprezo o poder dos guerrilheiros (…). Olho para 1966 como o ano crítico de toda a minha vida. Conseguirei ultrapassá-lo? (…).


©Manuel Joaquim

Desculpa, (…), se te aflijo. (…). Não julgues também que isto está de corda no pescoço. Não é tanto assim. Mas o perigo é muito grande.
Minha querida, vai escrevendo frequentes vezes, sim? As tuas cartas são o bálsamo para minorar a angústia que me envolve. Custa-me ver-me, por vezes, tão unido a ti. Faço-te sofrer e corres o risco de sofreres inutilmente. (…).
Cubro-te de beijos, (…). E … confiemos na sorte.
Muitas saudades do teu M.


Bissorã, 6 JAN 66
(… … …)
Tivemos cá hoje a visita de algumas senhoras do Movimento Nacional Feminino, entre elas a presidente da delegação da Guiné e a presidente geral, a srª. Cecília Supico Pinto. Muito amáveis e comunicativas; a sua presença veio animar-nos bastante pois ontem, pelas cinco horas da manhã e durante uma operação que fizemos, caímos numa armadilha dos guerrilheiros e tivemos a “linda” soma de quatro mortos e cinco feridos, dois em estado gravíssimo. Foi o primeiro azar da minha companhia. Parece-me que estava a prever isto. Comuniquei-to no último aerograma que te escrevi [2 de janeiro].
(…). Estava a uns três ou quatro metros [do sítio] da explosão. Com o estrondo fiquei com os ouvidos a zunir durante uns tempos mas saí sem a mínima beliscadura. Mais uma vez a sorte me acompanhou. Um cabo, o 2904, ficou desfeito. Só conseguimos encontrar-lhe a cabeça, a alguma distância! [ver, neste blogue, “P10105: Miserere”]

“S/ título”. © Carbar (Carlos A. T. de Barros, pintor guineense)

Coitados dos soldados. Antes do acontecimento pensavam que isto era um divertimento um bocado perigoso, agora exageram com o medo que os enche.
(…), tem calma. Por isto acontecer não é motivo para desesperarmos. (…). Muitos se hão-de safar e eu hei-de ser um deles. Para ser mais verdadeiro, posso ser um deles. Estes azares não acontecem todos os dias.
Às vezes chego a pensar que seria muito melhor não te contar estas coisas. Mas eu quero, embora causando-te alguma dor, que nunca duvides da verdade com que te escrevo.
(…). Fisicamente, estou óptimo. Psiquicamente, não posso dizer o mesmo. (…). Conheces a minha maneira de pensar, os princípios que defendo, (…). Perante o que está acontecendo já sabes quais as minhas reacções.
(…). Pela tua carta vejo que por aí também se morre, e de que maneira! (…). Soube cá do desastre de Sintra e cheguei a temer pelo teu pai [maquinista da CP, naquela altura em serviço na linha de Sintra].
Até sempre, meu amor. Muitos beijos do teu M.


Vale de Figueira, 11 Janeiro 1966
(… … …)
(…), então, o que se passa!? Ânimo, querido! Nenhum esforço será inútil, verás. (…). Será preciso não desanimar mas desanuviar o espírito, olhar sempre mais alto, convencidos de que valemos muitíssimo mais do que aquilo que, no presente, nos é permitido pôr em acção.
Há tanta coisa que nos espera, (…). Tanta coisa a descobrir e que nos pertencerá. (…). Oh meu querido, reage, teima em viver. (…). Na vida nem tudo são rosas mas também, como é natural, nem tudo são espinhos. (…).
Não voltes, (…), a dizer que sofro inutilmente. Nunca se sofre em vão, estou convicta desta verdade. É no sofrimento que se purifica a alma, que se descobrem as virtudes. E, depois de uma grande dor recompensada, a alegria renasce mais espontânea, mais sincera e pura. E a minha possível dor nesta época será sobremaneira recompensada. Depende de ti. Queres dar-me essa alegria? (…). Eu espero-te. Esperam-te a nossa vida em comum e os nossos sonhos, que se hão-de concretizar.
(… … …)
Corações ao alto! Vamos, meu amor. Nunca me lastimes. Isto te peço, encarecidamente. Nunca o esqueças. Amor paga-se com amor. Isso acontece. Estou contente e satisfeita. Estamos, portanto, quites!
Apetecia-me doidamente abraçar-te, beijar-te muito, muito, (…). (… … …)
Sorri um poucochito mais, meu querido … Um sorriso dos que são obra só tua. Ainda guardo nitidamente o teu último sorriso. Essa impressão jamais se apagará na minha memória. Sabes, quanta confiança essa recordação me incute, quantos sonhos ela me leva a idealizar! … Eu quero que não esqueças esse sorriso … Está bem?
(… … …)
Então ainda não recebeste uma encomenda enviada daqui? Deveria ter chegado no dia 31 próximo passado. Hoje segue também a “Seara Nova” do mês corrente.
Adeus, meu amor
N.

Foto de António Silva Pinheiro, sold. Atir. Inf. (CCaç1419) 


Bissorã, 13Jan66
(… … …)
Pelo último aerograma que te enviei adivinhaste com certeza o meu estado de espírito. É claro que tenho de reagir a estes acontecimentos. Olhá-los como acontecimentos normais desta vida, (…), para que os momentos livres que tenho se não transformem em angústia e martírio contínuos.
(…). Sei que é estúpido andar por aqui a vergar-me à ideia de que posso “desaparecer do mapa”. Tento reagir. Mas cá no fundo uma angústia espessa, concentrada, é um peso contínuo.
As tuas cartas têm um condão extraordinário para me aliviarem. (…) são um autêntico esbanjar de ternura, de confiança, de fé, de lucidez apaziguante, de alegria de viver, de calma. (…).
(… … …)
Isto por cá vai indo. Nada mais aconteceu depois da madrugada do dia 5. Esta guerra é assim. Num dia pode acontecer muita coisa. Depois, podem surgir dias e dias sem nada suceder.
Ontem saiu daqui a Companhia 643. (…). Deve regressar à Metrópole lá para o fim do mês. (…). Se tiveres oportunidade de assistir ao desembarque do Batalhão 645 (a que pertence a Comp. 643) poderás certificar-te do bom aspecto que levam, principalmente a malta da 643, aquela que eu conheço.
Já se safaram. (…). Terei a mesma sorte que eles? (…).
Muitos sacrifícios terei ainda de suportar. Mas a esperança, contigo a meu lado, não me abandona.
(…) Até sempre, minha querida.
M.
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Nota do editor:

Último poste da série de 10 DE ABRIL DE 2013 > Guiné 63/74 - P11369: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (11): Poema

1 comentário:

Tony Borie disse...

Olá Manuel Joaquim.
E a tua amada dizia-te, "...há tanta coisa que nos espera...", "...tanta coisa a descobrir, que nos pertence...", essas palavras, lidas, talvez com algumas lágrimas, pisando a terra vermelha, dentro do arame farpado do aquartelamento de Bissorã, deviam de ser talvez o principal "motor", que te ajudou a resistir e a regressar à Europa!.
Também gostei do pormenor, ...na encomenda ia lá a "Seara Nova"!.
Um abraço e continua, Tony Borie.