terça-feira, 12 de agosto de 2014

Guiné 63/74 - P13486: Os nossos seres, saberes e lazeres (72): Nas noites de Agosto recordando a minha aldeia (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

1. Texto do nosso camarada Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), enviado em mensagem com data de 7 de Agosto de 2014:

Árvores estranhas, onde todos os seus ramos se erguem na vertical, como que a rezar a um deus desconhecido. Mais altas, outro andar, acima do prédio de 5 andares, perto do qual foram plantadas, num pequeno espaço ajardinado no topo sul. Sentado na varanda da minha casa, na procura de algum ar noturno mais fresco, observo a dança suave que a aragem marítima, o mar está a um quilómetro, provoca nos dois ramos centrais, tão iguais que parecem gémeos, que o vento vai unindo e separando. As árvores são duas, bastante próximas, com a mesma altura, com os mesmos dois ramos fortes que se formam do tronco principal que se divide, a dois metros de altura depois de emergir do solo.

Noite quente que aquece o corpo e relaxa o cérebro e dispersa o pensamento e a memória. Estas árvores, que à frente e atrás rodeiam o prédio onde moro, árvores que não conheço, tal como as da maioria da cidade e das quais ninguém me sabe dizer um nome. Dão tanta sombra e tanta vida à cidade mas a maioria são tratadas como coisas de cimento e tijolo sem o nome que todos os seres vivos que nascem, crescem, vivem e morrem, têm e merecem..

 Brunhoso - Foto: Brunhoso Mogadouto, com a devida vénia

Na pequena aldeia onde nasci e onde me criaram, todas as árvores, arbustos, animais, pessoas, montes, vales, planícies, campos de cultivo, florestas, plantações, tudo tinha nome e à medida que íamos crescendo, íamo-nos familiarizando com esses nomes.

Aprendíamos a conhecer todo esse mundo que nos rodeava e éramos também, desde cedo, conhecidos por todos.

Há muitos anos, sendo eu já adulto, a viver na cidade grande, uma amiga da cidade, disse-me que gostaria de ter uma aldeia como eu. Talvez essa amiga se tenha apercebido do aconchego que nos dá uma aldeia onde há uma tão grande comunhão entre a natureza e os seus habitantes, onde todos se conhecem, se respeitam e onde a maioria se trata por tu.

Das grandes penas que trouxe e conservo da minha passagem por terras da Guiné é não ter conhecido melhor os seus povos e as suas árvores. Neste mês quente de Agosto em que parece que a solidão e o passado nos assombram mais, parece-me sentir ecoar pelos montes da minha aldeia e das próximas o som do Tango dos Barbudos, que transmitido do alto daqueles altifalantes parecidos grandes funis, abria sempre os arraiais das festas populares.

Tango que abre com rajadas de metralhadora que causam arrepios, alertam para o perigo mas também despertam o instinto guerreiro que existe mais adormecido ou desperto em todo o homem.

Mais tarde já com alguns conhecimentos de música clássica imaginei esses montes a repercutir os sons da Abertura 1812 de Tchaikovsky, a ecoar por montes e vales as badaladas dos sinos de Moscovo, o hino da marselhesa e os canhões do exército de Napoleão.



Imaginava eu que seria uma música mais adequada à beleza e à imponência dos montes onde fui criado. Os meus olhos foram educados na visão desses montes altos, baixos. arredondadados, aguçados e vales mais largos ou mais profundos, nessa paisagem tão agitada que parece um mar ondulado. O resto do mundo que vim conhecer foi sempre no confronto com aquele pequeno mundo que a mim sempre me pareceu tão grande. Teve já alguns grandes escritores que o souberam retratar. Nunca teve um grande poeta que o soubesse cantar, nem nunca teve um grande pintor que lhe soubesse transmitir a forma e o caracter que a minha sensibilidade artistica exige, sem que a saiba exprimir. Não sou poeta, não sou pintor, mas reconheceria esse poema e essa pintura se alguém soubesse reproduzir o que eu sinto.

Um grande abraço a todos os camaradas
Francisco Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de Junho de 2014 > Guiné 63/74 - P13223: Os nossos seres, saberes e lazeres (71): O Núcleo de Matosinhos da Liga dos Combatentes visitou o Comando da Zona Marítima do Norte, instalado em Leça da Palmeira (Carlos Vinhal)

5 comentários:

Anónimo disse...

Meu caro Francisco,

...e porque precisamos de poetas e escritores para cantar e contar o teu Brunhoso, quando os corações e as mãos calejadas das suas gentes o fazem tão bem?

Para ti, alma límpida do Sabor,um abraço.
José Câmara

José Botelho Colaço disse...

Francisco Baptista ou Xico Baptista nome popular, mas o camarada Francisco com uns conhecimentos extras quer pela via popular e erudita envolve-nos com uma prosa de grande valor que se lê e relê com prazer. Como quem cheio de sede bebe um copo de agua.

Um abraço
Colaço.

Anónimo disse...

Caro Francisco e caros camarigos:
É curioso este destaque que o Francisco, uma vez mais, dá ao seu Brunhoso, superlativando os saberes das suas gentes no domínio da natureza, em contraste com a relativa indiferença com que os citadinos olham este mesmo mundo. Vai mais longe o Francisco quando nos traz aqui, ao blog, as suas nostálgicas evocações do Brunhoso da sua meninice que ele só largará com a morte. Eu bem o compreendo, mesmo não tendo por lá as minhas origens pois, volta e meia, ando por lá a peregrinar, por montes e vales. Há alguns dias, em Sendim, apreciei o festival Intercéltico, com destaque para os Galandum Galundaina . Não sei se a música celta, com aquelas gaitas de foles e pandeiros se ajusta mais ou menos àquelas vivências do que a 1812 de Thaikovski. Depende do momento, do nosso momento. A obra, exibida pela primeira vez, em 1882,que muito aprecio,feita por encomenda do Czar russo para comemorar a vitória do exército desta grande nação sobre as tropas de Napoleão em 1812, começa por um hino e vai por ali adiante enfatizando primeiro a vitória dos franceses em Borodino, quando se ouvem acordes da Marselhesa e termina com a representação do toque dos sinos das Igrejas de Moscovo assinalando a vitória dos russos.Confesso que ouvir esta obra, no silêncio daqueles montes,com uma grande orquestra, sinos e canhões em vez dos habituais carrilhões de tubos e tambores,seria um momento absolutamente divinal.Deus nos dê muito e nos contente com pouco.
Um abração
Carvalho de Mampatá.

JD disse...

Caro Francisco,
Outra narrativa de descrição emotiva, que os comentários anteriores já consagraram.
No entanto, quero pegar no do Colaço, para sublinhar que erudição, pode consubstanciar a observação das coisas simples, e saber descrevê-las de maneira sistematizada, coerente e interessante.
Quando se lhe aplica tanto vigor na expressão, ainda mais se fecunda a irrigação do cérebro.
Parabéns.
JD

Anónimo disse...



Os "Mbeere" uma antiga tribo africana crê que as árvores são homens imperfeitos, a chorar eternamente a sua prisão - as raízes que os mantêm sempre no mesmo sitio.
Citação feita, no meio duma floresta de sequoias, pelo protagonista do filme "Relatório Kinsey", que vi anteontem num canal da TV.
Opinião do mesmo protagonista:
"Mas eu nunca vi uma árvore que parecesse insatisfeita"
A todos um grande abraço

Francisco Baptista