quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Guiné 63/74 - P13491: Biblioteca em férias (Mário Beja Santos) (3): A literatura de Mickey Spillane

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Julho de 2014:

Queridos amigos,
Aprecio a literatura desopilante, bem urdida, com boa trama e que me agarre de principio ao fim.
Leio Mickey Spillane desde a adolescência, sempre que possível banho-me nesta prosa de mestre, onde se mesclam o policiário, as aventuras e a espionagem e delicio-me à brava, confesso. É possível encontrar Spillane nas Edições Livro do Brasil, uma editora que está no ocaso e que já foi uma referência incontornável no panorama português, lembrem-se da Coleção Miniatura, da Coleção Vampiro, da Coleção Argonauta, de grandes autores e de grandes obras universais, teve gráficos espantosos como Cândido da Costa Pinto, Lima de Freitas, Bernardo Marques e Infante do Carmo. Procurem Spillane e terão férias ainda mais retemperadoras.

Um abraço do
Mário


Biblioteca em férias (3)

O meu nome é Mike Hammer

Beja Santos

Estamos em 1947, os EUA são assumidamente uma superpotência, a sua influência política, económica e financeira é incontestável, em nome do Ocidente declarou Guerra Fria ao bloco soviético. Os EUA exportam mercadorias que todo o mundo cobiça, incluindo literatura. Nesse ano, irá despontar um escritor que trará certezas à superpotência, certezas de que o império americano está na vanguarda do progresso e é o facho das liberdades. Falamos de Mickey Spillane e o do seu herói Mike Hammer. Tratou-se de um sucesso que nunca foi ultrapassado. Este herói encarnou o espírito da época. O primeiro livro intitulava-se “I the jury”, venderam-se seis milhões de cópias. Seguir-se-ão seis títulos até 1952 (nesse ano, os sete livros de Spillane figuravam na lista das dez maiores vendas de livros do século XX, nos EUA), nenhum outro escritor irá conseguir este impressionante número de vendas. Spillane só concorreu com o Spillane.

Acontece que Mickey Spillane [foto à direita] caiu de paraquedas no mundo literário, não tinha os pergaminhos de um Scott Fitzgerald, John Steinbeck ou William Faulkner. Nascido em Brooklyn em 1918, Spillane passou a sua infância nos bairros pobres de uma pequena cidade da Nova Jérsia. Enquanto estudava, vendeu colaboração ao Capitão Marvel e ao Capitão América. Veio a guerra e Spillane combateu na Força Aérea. Trabalhou também para o FBI.

O que carateriza Mike Hammer, o herói de Spillane? É um duro, um arquétipo, o ideal do individualismo norte-americano. É justiceiro por conta própria, executa os chefes das máfias, os espiões do Kremlin, os narcotraficantes, e até os mandantes dos chefes. Editado em Portugal por Livros do Brasil, tanto na coleção Vampiro como numa coleção dedicada a Spillane, ganhou as simpatias do público mas nunca esteve na lista dos escritores mais populares do policiário, da literatura de aventuras e de espionagem, no fundo os três géneros interpolados em que se movimentam estas obras de um Mike Hammer corajoso, patriota, fiel aos seus amigos e às suas convicções de ética, é o eterno apaixonado de Velda, a sua secretária, será assim durante mais de cinquenta anos…

Hammer é um detetive particular, é amigo do capitão Pat Chambers, da polícia de Nova Iorque. É chamado quando começam a aparecer cadáveres, escapa sempre milagrosamente em todos os tiroteios e atentados à bomba, tem um faro especial para descobrir que o seu automóvel está ligado a explosivos. Por vezes, Hammer vai convalescer de certos ferimentos e reaparece imprevistamente. Spillane notabilizou-se pelas atmosferas de borrasca iminente, maneja os parágrafos curtos, possui uma linguagem sensorial onde as cores, os sons (que podem ser gritos, passos, interjeições), a pregnância das atmosferas, a brutalidade com pancadaria e estampidos das armas, tudo se equilibra numa trama turbilhonante, sem tempos mortos. E o fato é que as dezenas de milhões de exemplares vendidos em todo o mundo não podem esconder o fato de Spillane escrever bem a ponto de ter criado uma elevada confiança nos leitores neste duro um tanto romântico, e na tradição da linhagem dos grandes detetives.

Nas minhas incursões pela Feira da Ladra, de vez em quando compro um Spillane para matar saudades. Por 50 cêntimos, comprei o Beco Negro, número 598 da coleção Vampiro, pasme-se escrito em 1996, tempo em que Spillane já era um nome bastante esquecido e tentava desesperadamente dar um novo fôlego a Hammer. Fiquei satisfeito, embora a arquitetura da obra fosse a mesma de há décadas, continuava a ser fulgente, saída de um grande mestre:
“O telefone tocou.
Era uma coisa que tinha estado ali, preta e silenciosa como uma arma de fogo no coldre, não vinha na lista, desconhecida de toda a gente, utilizada apenas para fazer chamadas, e, quando ativada, tinha o som suave, abafado, de uma automática com silenciador. O primeiro toque foi com um som de advertência. O segundo seria um telefonema de Morte.
Oito meses atrás, eu chegara à Florida para morrer. As duas balas que recebera durante a troca de tiros no West Side Drive haviam-se introduzido em áreas do corpo que não existiam para ser violadas assim, e o sangue que brotara de mim fora excessivo. Pelo que os outros – o ferido que ainda andava e o reparável – mereceram a primazia dos poucos médicos que acudiram ao campo de batalha mais cedo. Os mortos e moribundos foram afastados para o lado ou isolados na seção sem regresso.
A temperatura era de seis graus abaixo de zero e impediu-me de morrer ali mesmo porque o sangue coagulou em áreas hediondas de roupa e pele e as dores ainda não tinham começado, pelo que, quando o homenzinho viu os meus olhos abertos e ainda brilhantes me afastou da carnificina quase mergulhou no estado de choque de que eu me aproximava. Mas ninguém ligava. Estava bêbado. E eu quase morto”.
É quase uma ressurreição. O médico, Ralph Morgan, também vai ressurgir. São dois quase mortos que regressam à vida. Aparece Pat Chambers para lhe comunicar que um amigo está nas vascas da agonia e quer fazer uma confidência a Hammer. E que confidência! Milhares de milhões de dólares estão escondidos, um mafioso arguto montou uma marosca, os bandos desconfiam, mas ninguém sabe o paradeiro daquela fortuna. São sete cães a um osso. O amigo de Mike Hammer morreu dizendo-lhe que ele podia descobrir o local onde se encontrava a mega fortuna. Começa aqui a caça ao tesouro, o detetive umas vezes expõe-se claramente quando necessita de falar com os mafiosos, outras vezes trabalha na sombra, esgueira-se como uma enguia.

O amor eterno por Velda, que conheço desde os romances dos anos 40, vem também aqui à baila, é poção que nunca se perde:
“Sorriu e levantou-se, deixando o roupão oscilar à sua volta, enquanto eu refletia que, um dia, tudo aquilo me pertenceria:
- Que destino tencionas dar-me? - Tens duas opções, boneca. Vou proporcionar uma noite de repouso ao ferimento que ainda não sarou totalmente. Por conseguinte, escolhe: ou te vestes e regressas a casa ou dormes no sofá. Sem companhia. 
- Estás mesmo empenhado em destruir a tua reputação, hem?
Proferiu as palavras como uma afirmação solene, mas o sorriso privou-as de agressividade”.

Lá anda Mike Hammer cheio de dores à traulitada, e a sua excitação cresce, como se lê: “Apesar de não ter sido disparado qualquer tiro, a excitação nervosa resultante do fato de Ugo e Howie Drago quase me terem abatido iniciara uma reação nas minhas entranhas, e sentia as agulhas da dor a começarem a atuar em lugares sensíveis, até que terminariam por se converter em espigões de ferro em brasa”.

Numa atmosfera de astúcia, prossegue a caça ao tesouro, mais emboscadas, até ao confronto final com Ugo Ponti. Importa não esquecer Mike Hammer é um cavaleiro irrepreensível. Tudo termina em bem Mike e Velda tecem juras de amor, ele vai-se tratar, continua muito ferido, a seu tempo casarão. Como é que é possível resistir a estas histórias tão bem contadas, a esta narrativa que não nos concede pausas, tão luminosa?
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13468: Biblioteca em férias (Mário Beja Santos) (2): "Poesia africana di rivolta!", por Giuseppe Tavani - Poesia de revolta dos tempos anticoloniais, em português

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