Queridos amigos,
O historiador Norrie MacQueen traça neste artigo o quadro das divergências que se acentuaram entre a Guiné-Bissau e Cabo Verde após o golpe de Estado de 1980.
Escrito e publicado em 2005, ano em que Nino Vieira teve uma reeleição inédita em África (um ditador eleito democraticamente) e em que Pedro Pires e o PAICV regressam ao poder, o autor justifica o abismo que separa os dois antigos camaradas de guerra, deixa claro que há um país africano à deriva e um outro país, a 500 km, que chega a ser requestado para ingressar ou se associar à União Europeia.
Um abraço do
Mário
Trajetórias Divergentes:
Guiné-Bissau e Cabo Verde desde a Independência
Beja Santos
A revista “Relações Internacionais R:I”, dirigida por Nuno Severiano Teixeira, no seu número 8 (dezembro de 2005) publicou uma elaborada e judiciosa análise de Norrie MacQueen sobre o percurso e as substanciais divergências que se operaram na Guiné e Cabo Verde, depois da sua curta união (1974-1980). Norrie MacQueen já aqui foi falado, é professor na Universidade Dundee (Reino Unido) e autor de A Descolonização da África Portuguesa (Editorial Inquérito, 1998) de que oportunamente se fez recensão. Ver Poste 9643
Aquando do ato de declaração unilateral da independência da Guiné-Bissau e posteriormente de Cabo Verde, os líderes dos dois países declararam o propósito da unificação de ambos os territórios. Trinta anos depois, a Guiné oscilava entre crises políticas e intervenções militares endémicas e Cabo Verde parecia sonhar em ser um parceiro da União Europeia.
O historiador mergulha no passado das relações políticas em que o PAIGC era um único movimento de libertação: “Os cabo-verdianos constituíam, até certo ponto, a burguesia colonial da Guiné e, tal como pela África fora, essa foi a classe que, quando chegou a hora, forneceu a liderança ao movimento anticolonial. Em última análise, um relacionamento artificial, artefacto da história colonial que, retrospetivamente, tinha poucas hipóteses de sobreviver para além das lutas de libertação. O mito da unificação iminente durou escassos cinco anos após a independência. Mas, na realidade, os dois regimes haviam já muito aceite que a retórica da unificação pouco mais era do que um slogan político”.
E o autor enumera as disparidades: a população de Cabo Verde nunca foi considerada africana pelo Estado Colonial; o Estatuto do Indigenato nunca se aplicou a Cabo Verde e a cidadania portuguesa foi concedida aos cabo-verdianos muito antes de se ter generalizado no resto da África portuguesa.
A luta armada na Guiné foi uma verdadeira coqueluche internacional, mereceu uma atenção desproporcional considerando o seu tamanho ou a sua relevância económica ou estratégica, goste-se ou não, tudo começa e se desenvolve graças a Amílcar Cabral, à sua estratégia, à sua diplomacia, ao prestígio e credibilidade que ganhou na arena internacional. Na Guiné era quase total a ausência de europeus e o combate era do tipo unificado, não havia competição com outros grupos armados, cedo a FLING saiu do jogo. A maioria do mundo nutria consideráveis esperanças em relação à Guiné, escreve MacQueen. Existiam grandes expetativas de que, após a independência continuasse a servir de exemplo a outros países africanos a braços com os desafios de um mundo ideologicamente dividido e economicamente desigual. Mas a realidade não era bem assim: a coesão da luta não podia iludir que o povo Fula era conservador e muçulmano, encarava com circunspeção os objetivos revolucionários do partido; no interior do PAIGC eram claras as divisões entre os combatentes guineenses e os políticos cabo-verdianos. MacQueen considera que o assassinato de Cabral teve sobretudo a ver com as dissensões internas do PAIGC. A par deste jogo de enganos, a Guiné foi determinante para o 25 de Abril, escreve o autor que o detonador do movimento dos capitães foi a Guiné, começou por ser a principal causa de fratura entre Spínola e Caetano, os capitães receavam um desastre humilhante na Guiné já independente. A descolonização de Cabo Verde fora negociada e garantida pelo PAIGC com relativa facilidade, os negociadores portugueses nunca aferiram de que a unidade Guiné-Cabo Verde era um saco vazio.
Luís Cabral possuía pouca autoridade e quase nenhum carisma, a sua liderança foi medíocre, procurou superar os problemas internos com represálias e deixou que se acentuassem os conflitos interétnicos. O autor passa em revista o relacionamento entre a Guiné-Bissau e Portugal ao longo desses anos e do esforço de Cabral em melhorar as relações entre Portugal e Angola. O golpe de Estado de 1980 não abalou as relações com Portugal, grande fricção surgirá com as execuções de Paulo Correia e Viriato Pã, entre outros, em 1986.
No tocante a Cabo Verde, cedo o regime do PAIGC com Aristides Pereira na presidência e Pedro Pires no cargo de primeiro-ministro, descobriu que não podia fazer alquimia revolucionária, Cabo Verde padecia de uma seca que durava há longos anos, o novo Estado dependia de fontes externas para suprir 90 % das suas necessidades alimentares, não podia subestimar que dependia grandemente das remessas da sua vasta diáspora. Ocupando o arquipélago um lugar estratégico no Atlântico, seguiu um modelo rigoroso de não alinhamento mas o pragmatismo levou-o tomar medidas que desagradaram à organização da unidade africana quando concedeu facilidades à África do Sul na utilização do aeroporto do Sal.
Os anos 1990 trouxeram uma mudança crucial, o fim da Guerra Fria trazia os ventos da democratização, na Guiné e Cabo Verde começou a preparação para a mudança rumo à democracia multipartidária. Na Guiné os progressos tardaram enquanto em Cabo Verde o ritmo do processo de democratização foi impetuoso, em 1991, o PAICV foi derrotado pelo Partido para a Democracia, houve novo presidente da República e novo Governo. Nino Vieira demorou o processo da democratização mas aceitou a liberalização económica.
Aquando da guerra civil, Nino pediu a intervenção do Senegal e da Guiné-Conacri e agarrou-se às iniciativas portuguesas por intermédio da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Cabo Verde teve um papel preeminente na crise, envolveu-se no Grupo de Contacto de Alto Nível. Nino Vieira deixou transparecer dúvidas quanto à motivação de Cabo Verde. “Em notória paranoia, Nino Vieira suspeitou da existência de uma conspiração luso-cabo-verdiana para o derrubar”.
E chegámos ao novo século, a Guiné precisava desesperadamente de estabilidade, que nunca chegou, basta pensar em Koumba Yalá, o descontentamento militar que levou ao assassinato do general Veríssimo Seabra e as eleições de 2005 que, segundo o autor, revelaram algo sem precedentes em África: a reabilitação democrática de um ditador de posto. E ele continua: “Parece que o cenário foi montado para assegurar a continuidade de um conflito entre facões na Guiné. A eleição de Vieira resultou essencialmente de processos negativos. Decorre de uma aliança tática dos partidos antiPAIGC ao nível político. Mas também resulta, em parte, do desespero sentido pelos votantes após anos de fraca e frágil liderança”. A trajetória de Cabo Verde continuou numa via divergente em relação à da Guiné. Pedro Pires regressou mas num clima globalmente distinto; o primeiro-ministro, José Maria Neves, cedo se impôs pela seriedade e competência. Na terminologia das Nações Unidas, Cabo Verde é um país “medianamente desenvolvido”. Na triangulação das relações Portugal/Cabo Verde/Guiné, o único eixo com solidez é o de Portugal/Cabo Verde. Que o leitor não esqueça que este artigo foi publicado em 2005: “O relacionamento Guiné-Cabo Verde afigura-se problemático, mas se calhar também é o menos significativo dos três. Com Vieira e Pires a ocupar as presidências de cada um dos países, é natural encarar-se um retorno aos tempos difíceis que marcaram o início dos anos 1980, quando o projeto de unificação caiu por terra”.
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Nota do editor
Último poste da série de 11 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13484: Notas de leitura (621): “Direitos Civil e Penal dos Mandingas e dos Felupes da Guiné-Bissau”, por Artu Augusto da Silva (2) Mário Beja Santos)
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