Data: 28 de fevereiro de 2015 às 09:01
Assunto: Guiné, Memória e Poesia
Meu caro Luís: Se achas que é de publicar, avança. Não sabia que também era capaz de escrever esta espécie de haikus à moda do Japão (dezassete sílabas em três versos, de sete, cinco, sete), com a Guiné dentro dos mini-poemas.
Abraço, António Graça de Abreu
Memória da guerra na Guiné
A herança da História, os acasos da sorte,
o estertor do Império, a insensatez das gentes
levaram-nos um dia a servir numa guerra.
Homens-meninos, por bolanhas verdes,
no tarrafo cinza, na picada traiçoeira,
na humidade quente do amanhecer das florestas,
conhecemos o medo, a morte, a coragem.
Quase rasgámos a alma.
Tantos anos depois, tempo de reencontro,
o gosto cristalino de um abraço de irmãos.
Envelhecemos.
Meio século após a Guiné,
beber os últimos prazeres da vida.
Nem derrotas, nem vitórias,
o fluir sinuoso das vontades dos homens
por dentro das lágrimas do tempo.
Nem flores do verde pino
nem o ondular das florestas.
Apenas bolanhas a ferro e fogo.
A menina mandinga
veio comer à minha mesa,
os olhos raiados de tristeza.
No Morés, laranjeiras rubras em flor
ou serão flores da guerra,
desabrochando em sangue, em calor?
Sangue e morte em Cufar,
a demência por dentro da noite.
Abraço a minha espada de guerra.
Guerra e paz em Mansoa,
nós, o coração esfarrapado,
no sonho breve, adiado,
do regresso a Lisboa.
Uma íbis negra. na foz do Cumbijã,
sacode as asas na névoa da pólvora
e esvoaça no horizonte azul.
Varri o chão, perfumei o leito,
mas a bajuda não veio.
Eu sou branco e feio.
Na humidade quente dos dias da guerra,
no leito de ferro,
no colchão de borracha enegrecida,
recordo o perfume faiscante
das dobras do teu corpo,
menina de seios de linho e alabastro.
Adormeci abraçado a ti.
Ao acordar,
apenas o rumor cálido
da ausência e do vazio.
____________
Nota do editor:
Varri o chão, perfumei o leito,
mas a bajuda não veio.
Eu sou branco e feio.
Na humidade quente dos dias da guerra,
no leito de ferro,
no colchão de borracha enegrecida,
recordo o perfume faiscante
das dobras do teu corpo,
menina de seios de linho e alabastro.
Adormeci abraçado a ti.
Ao acordar,
apenas o rumor cálido
da ausência e do vazio.
____________
Nota do editor:
Ultimo poste da série > 13 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14247: Blogpoesia (401): Me fere o tirar a vida (Mário Vitorino Gaspar, ex-Fur Mil Art MA da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)
3 comentários:
Dizer que gostei é pouco A. Abreu.
Não se esquece os cheiros, os desejos, os anseios, nem terror, o medo que nos fez mergulhar em busca de protecção e no orgulho com que nos levantamos.
Um abraço
Caros camaradas
Digam lá que não tenho razão quando digo, ou escrevo, que o António Graça de Abreu tem um jeito muito particular para a poesia?
Escreve bem, tem sensibilidade, e consegue transmitir as ideias de forma fácil.
Gostava que ele fosse sempre assim!
Abraço
Hélder S.
Tal como o outro, também não sou perfeito.Mas é verdade que escrevo como um príncipe, coxo.
António Graça de Abreu
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