domingo, 8 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14334: Libertando-me (Tony Borié) (7): Temos que lá voltar

Sétimo episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.




Temos que lá ir um dia, pá! Esta é a frase que pronuncia, bem alto, sempre que nos encontramos.

O seu rosto mostra alguma amargura ao pronunciar estas palavras, mas logo se modifica, sorrindo, dando-nos um abraço dizendo, quando nos juntamos, pá!

É o José Augusto Nogueira, que no ano de 1964, era um jovem tal como nós que, cumprindo o seu dever de cidadão, se apresentou no Batalhão de Caçadores 10, na cidade de Chaves, onde aprendeu a “marcar passo”, a disciplina de combate e a conviver com os companheiros que o acompanharam no embarque a bordo do navio “Niassa”, no ano seguinte, mais propriamente a 21 de Maio de 1965, onde depois de alguns dias de “mar selvagem”, como ele gosta de dizer, desembarcou em Bissau a 26 de Maio, para combater aqueles que o então governo de Portugal lhe dizia que eram os “turras”.


Como tantos de nós, viu lama, mosquitos e terra vermelha, comeu mangos e mancarra, sofreu calor húmido e abafado, conviveu com fulas, mandingas ou balantas, passou quase toda a sua comissão em zona de combate, foi ferido, para o final, cansado de guerra, já não podia ouvir o som do seu morteiro, que não lhe falassem em arroz e peixe da bolanha e, com aquele sorriso maroto diz-nos também, que teve a “sua lavadeira”.

Após a chegada à então província da Guiné, foi uns dias para o aquartelamento de Brá, onde conheceu uma personagem que mais tarde se tornaria famosa, era o então Capitão Otelo Saraiva de Carvalho, do grupo de Comandos “Os Diabólicos”, que mais tarde actuou com ele em cenário de guerra, pois a sua especialidade era Apontador de Morteiro, pertencendo à Companhia de Caçadores 816, que se foi instalar em Bissorã, mas o seu pelotão foi destacado para o Olossato durante 13 meses, depois Cutia, Encheia e Mansoa, de onde finalmente regressou de novo a Brá, para embarcar de regresso a Portugal, no navio “Uíge”, em 14 de Fevereiro de 1967. Sempre que nos víamos combinávamos encontro, que por isto ou por aquilo nunca se realizava, finalmente encontrámo-nos em sua casa, aqui na Florida, para falarmos das recordações da guerra e não só.


Fica sério alguns momentos, mostra-me a sua tatuagem patriótica no antebraço, ao mesmo tempo que me diz:
- Em criança passei muita fome, na minha aldeia em Santa Cruz do Douro, concelho de Baião, onde o senhor Gonçalo me dava sempre pão, agora, como vês, não tenho razão de queixa.

Voltando à Guiné, participou em 386 saídas para o interior das matas, sendo operações organizadas com outras unidades militares ou simples batidas de zona, teve muitos ataques ao aquartelamento, principalmente no Olossato, foi ferido em combate, com estilhaços de granada num braço e numa perna, num domingo do dia 1 de Agosto de 1965. Também recorda que no dia 14 de Fevereiro de 1966, a sua companhia, junto com outras forças militares, capturaram 3 toneladas de material de guerra na célebre região de Morés.


Enquanto a sua dedicada esposa lhe diz que o lugar da Murtosa, é o mais lindo de Portugal, ele, olha para nós e diz a sorrir, que de Santa Cruz do Douro se vê os barcos a navegarem no rio Douro, depois volta a ficar com aspecto sério, mostra-me as fotos a preto e branco, e diz-nos:
- Estes são os burros que capturámos aos “turras”, este porco foi morto com um tiro, estes unimogues eram todos novos, depois de trabalharmos na construção dos abrigos, jogávamos à bola, as “bajudas”, algumas eram “boas” - E logo, a sua dedicada esposa lhe diz:
- Eram, talvez como o vento que faz na tua terra, traiçoeiro, só faz estragos.

Diz-nos que os companheiros da sua Companhia que ainda restam, se juntam todos os anos, ele carrega a mágoa de nunca ter oportunidade de participar, isto sim é verdadeira amizade, somos irmãos de guerra até morrer. Limpa duas lágrimas de emoção ao lembrar que no dia 1 de Agosto de 1965 saíram do Olossato para Farim, andaram à volta de 15 quilómetros, sempre debaixo de fogo, tanto de um lado como do outro da estrada, que não era mais que um carreiro. Não houve minas nem fornilhos, mas diversos companheiros ficaram feridos, entre os quais ele mesmo, juntamente com o Capitão Luis Gonçalves Fernandes Riquito, onde faleceu, morto em combate, o Furriel Silva, sem o poderem evacuar, pois “eles” acompanharam-nos sempre aos tiros. Foram mais de 12 horas, até que finalmente os “Águias Negras”, (diga-se Batalhão de Artilharia 645), vieram em nosso auxílio e, pudemos regressar de novo ao Olossato, com alguma segurança, aí sim, rezei e vi a cor do medo e da morte.


Para o final da comissão, já todos andavam cansados de guerra, até um companheiro, que era o mais valente, ia levando uma “porrada”, (diga-se castigo), porque se fez doente para não ir para as operações, onde o capitão da Companhia, veio junto dele, no “curral” onde dormiam, o levantou da cama, dizendo-lhe que lhe dava cinco minutos para se apresentar pronto para combate, ou então teria que o enfrentar.

Passámos algum tempo juntos, ao despedirmo-nos ficou a promessa de um destes dias falarmos dos “célebres abrigos do Olossato” que foram copiados por quase todos os aquartelamentos da então Guiné Portuguesa.
- Temos que lá ir um dia, pá.

Tony Borie, Março de 2015
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14311: Libertando-me (Tony Borié) (6): Quando fomos à Sede das Nações Unidas

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