Brunhoso - Com a devida vénia
1. Em mensagem do dia 31 de Maio de 2015, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), fala-nos mais uma vez da sua terra natal de há 50 anos.
Brunhoso há 50 anos
5 - Uma sociedade paternalista
Nesses tempos primitivos da minha meninice, que eu por vezes chego a comparar com os tempos bíblicos pela pobreza, pela simplicidade e despojamento nas relações entre pessoas e nas suas relações com a natureza e com os animais, íamos vivendo de acordo com as leis seculares dos nossos antepassados.
O episódio representado pelo presépio, segundo a história ou a lenda, com o Deus menino, Maria, José, o burro e a vaca, era um quadro que podia ser considerado natural, em Brunhoso, talvez também por isso as pessoas adoravam esse Deus humilde, filho de pais pobres como eles, que conviviam tal como eles com as vacas tão pacientes e trabalhadoras e com os burros tão calmos e sempre afáveis para suportar o peso dos donos ou outras cargas. As pessoas amavam-se e respeitavam-se, sem manifestações excessivas, dentro de códigos que tinham recebido dos seus antepassados.
Eram felizes ou não dentro desses condicionalismos tão estreitos e antiquados que remontavam já a tantos séculos. As mulheres tinham tantos filhos, como a natureza lhes impunha, que criavam com amor, beijos, com o leite materno e a alimentação possível, os homens trabalhavam nos campos de sol a sol para garantir pão para todos. As mulheres falavam do seu homem, os homens falavam da "minha" (todos os outros a conheciam) geralmente com respeito de parte a parte.
Na taberna, ("venda", dizia o meu avó Francisco) um local de convívio, onde os homens da aldeia, por vezes se juntavam para alegrar a vida com uns copos de vinho, ou no Balcão, a praça principal, onde também se juntavam, fosse inverno ou verão, para trocar ideias e conhecimentos acerca da terra, dos animais e das culturas, sempre vi homens, que embora mantendo um aspecto calmo e sério, não deixavam de sorrir pelas larachas de uns e outros. Não há dúvida que a actividade física faz bem ao corpo e ao espírito.
Além disso eles eram os chefes da batalha que dia a dia travavam
com os elementos vindos do céu, da terra, da água,. do vento e das
trovoadas, que condicionavam as boas ou más colheitas.
Santa Bárbara, essa santa protectora dos lavradores a quem faziam
uma festa tão grande e uma procissão tamanha a que por vezes
associavam juntas de bois e vacas, nem sempre os libertava das secas e
das grandes trovoadas.
Era uma sociedade paternalista, uma sociedade governada por homens. Eles, a par da autoridade e governo da casa, tinham que garantir o sustento da família. As mulheres pariam muitos filhos, cuidavam deles, do arranjo da casa e doutras tarefas domésticas. Ao tempo havia em Portugal sociedades matriarcais, onde o poder pertencia sobretudo às mulheres que eram também as principais responsáveis pelos meios de sustento da família.
Bem perto de Brunhoso, no planalto mirandês, a sociedade era matriarcal, eram elas que lavravam a terra e tratavam dos campos, a par doutras tarefas domésticas. No Minho também eram as mulheres que geralmente lavravam a terra, pelo que dá a impressão que quem mandava tinha que saber cuidar dos campos para lá doutras actividades. Sei também que nesse tempo as raparigas minhotas geralmente casavam com rapazes mais novos do que elas pelo menos dois ou três anos. Seria uma forma de garantir a continuidade do matriarcado?
Miguel Torga, no livro "Portugal", transcreve a seguinte quadra popular do Minho:
Da minha saia amarela
Fiz as calças do meu home;
Com a alegria das calças
Há três dias que não come
Nesse tempo esta quadra não poderia ser recitada ou cantada em sociedades paternalistas, Torga diz que a atrevida podia levar um tiro, que eu acho exagerado, talvez uma bofetada.
A sociedade de Brunhoso, moldada por esse poder paternalista, era contida nas palavras e gestos afectivos, impróprios de machos dominadores pois era assim que os homens eram educados. Será exagerado escrever isto, pois no silêncio das noites e no recato e aconchego possível dos casais, poderia também haver lugar para momentos de afecto e ternura para lá das relações sexuais, mais ou menos instintivas.
As mulheres tinham os seus momentos de relaxe e diversão. apesar do trabalho, quando se juntavam nos ribeiros ou nos tanques a lavar as roupas da casa.
A propósito, um tio meu que já partiu, leis da vida, contou-me uma pequena história passada numa aldeia da Beira Alta:
- Chico, disse-me ele, num dia de Inverno, eu ia com a tua tia de mula a apanhar o comboio para Lisboa, a Celorico da Beira, para ela consultar um médico. Ao passarmos por uma aldeia estavam aí cerca de 20 mulheres, num tanque, a lavar a roupa, com as pernas metidas na água. Eu perguntei-lhes se não teriam frio. A mais faladora, respondeu-me que não, que tinham o forno quente. Então disse-lhes que tinha as mãos muito frias, se não mas deixavam aquecer no forno delas. A mesma mulher respondeu que nesse momento não podiam porque estavam a assar castanhas.
Este diálogo verídico, não sei se um pouco fantasiado, também transmite um pouco do humor dessas mulheres apesar da dureza dos campos, dos homens e da vida.
Nunca irei esquecer o dia em que, ainda adolescente, tive que fugir de um bando de mulheres que obedecendo à palavra de ordem de uma mais divertida disse para as outras: "vamos cantar os galos ao patrão". Andavam a mondar as ervas daninhas dum terra de trigo nossa, e o meu pai tinha-me mandado ir com elas. Não passou de uma ameaça em tom de brincadeira, pois essa prática de "cantar os galos", depois de lhe baixarem as calças, aos rapazes, da iniciativa das mulheres, como calculam, não era nada agradável.
Os sentimentos estavam calibrados em vivências de dureza que não admitiam príncipes, nem sonhos impossíveis. O ajustamento dos casais era feito dentro dos teres e haveres de cada um e um ajustamento psicológico que eles e elas pela idade dos vinte anos iam fazendo em conversas e em namoricos ligeiros.
Recordo-me que eu sendo da terra, mas sendo também um observador estranho, porque da minha idade era o único rapaz que estudava fora da terra, talvez a partir dos 17 anos, os rapazes da minha idade começaram por namorar e passado um ano ou nem tanto, praticamente todos tinham trocado de namoradas entre eles. Para que se entenda bem, realmente não havia troca, havia sim um acabar e recomeçar de novo para uma melhor combinação de personalidades.
Nesse tempo os homens e mulheres da minha aldeia, no casamento arriscavam todo o projecto de uma vida futura, que consciente ou inconscientemente era planeado para garantir o futuro dos filhos; pelo trabalho apenas limitado pelo descanso necessário para recomeçar de novo; pelo sexo que devia sobretudo garantir o nascimentos de filhos saudáveis.
Desde o amor platónico, ao amor cortês, ao amor romântico mais carnal ou idílico, há mais formas de amar do que formas de cozinhar bacalhau. O amor intelectualizado em parte como a filosofia, nasce da contemplação e do ócio. Casanova foi um intelectual e escritor, Dante Petrarca e Camões foram grandes poetas. Muitos filósofos escreveram ensaios sobre o amor.
O amor entre os meus conterrâneos seria pouco complicado, seria um amor que se confundia com o amor à família, o amor à terra, aos campos de trigo, às hortas, às oliveiras, aos animais domésticos. Era um amor que não admitia desvios porque era também um compromisso pela palavra dada perante o padre e outras testemunhas e cujo cumprimento seria vigiado por toda a comunidade. As relações sexuais, entre eles, satisfatórias ou não, era um segredo que não revelavam. Entre eles não se falava em amor, essa palavra era demasiado delicada para se coadunar com a sua condição de pequenos ou médios lavradores ou filhos sem terra, de terras que tinham que trabalhar para outros. Falar de sentimentos entre os casais, ou ter manifestações públicas sentimentais eram actos considerados impróprios e impúdicos. Os sentimentos entre os dois sexos estavam contaminados pela atração sexual que era um tabu religioso e social.
Por vezes, raramente, ouvia-se uma estória picante real ou um pouco inventada como a de um lavrador, conheci-o ainda, que ao regressar do trabalho quando metia as vacas na loja, que ficava debaixo da casa, ouviu a mulher, por cima, a gemer com dores em trabalhos de parto. Ele que era um brincalhão impenitente pôs-se a imitar os gemidos da mulher. Ela apercebeu-se e prometeu-lhe que nunca mais iria poder brincar com o seu sofrimento daquela forma.
O que se passou depois ninguém sabe, o que se sabe é que eles só tiveram aquela filha, por sinal alegre e simpática, como o pai. Apesar das vozes do povo, esse lavrador que nunca parava, ele e as vacas, foi um homem sempre alegre e divertido pelas piadas que ia distribuindo a uns e outros. Enfim há pessoas que nasceram para serem felizes seja quais forem as contrariedades com que se deparem.
Este homem bondoso e galhofeiro que tinha sempre uma palavra para todos, fossem jovens ou velhos, faz parte da minha galeria dos notáveis de Brunhoso. Como diziam os antigos "que Deus o guarde!"
____________
Nota do editor
Último poste da série de 1 de abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14426: Brunhoso há 50 anos (4): A Páscoa (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)
Era uma sociedade paternalista, uma sociedade governada por homens. Eles, a par da autoridade e governo da casa, tinham que garantir o sustento da família. As mulheres pariam muitos filhos, cuidavam deles, do arranjo da casa e doutras tarefas domésticas. Ao tempo havia em Portugal sociedades matriarcais, onde o poder pertencia sobretudo às mulheres que eram também as principais responsáveis pelos meios de sustento da família.
Bem perto de Brunhoso, no planalto mirandês, a sociedade era matriarcal, eram elas que lavravam a terra e tratavam dos campos, a par doutras tarefas domésticas. No Minho também eram as mulheres que geralmente lavravam a terra, pelo que dá a impressão que quem mandava tinha que saber cuidar dos campos para lá doutras actividades. Sei também que nesse tempo as raparigas minhotas geralmente casavam com rapazes mais novos do que elas pelo menos dois ou três anos. Seria uma forma de garantir a continuidade do matriarcado?
Miguel Torga, no livro "Portugal", transcreve a seguinte quadra popular do Minho:
Da minha saia amarela
Fiz as calças do meu home;
Com a alegria das calças
Há três dias que não come
Nesse tempo esta quadra não poderia ser recitada ou cantada em sociedades paternalistas, Torga diz que a atrevida podia levar um tiro, que eu acho exagerado, talvez uma bofetada.
A sociedade de Brunhoso, moldada por esse poder paternalista, era contida nas palavras e gestos afectivos, impróprios de machos dominadores pois era assim que os homens eram educados. Será exagerado escrever isto, pois no silêncio das noites e no recato e aconchego possível dos casais, poderia também haver lugar para momentos de afecto e ternura para lá das relações sexuais, mais ou menos instintivas.
As mulheres tinham os seus momentos de relaxe e diversão. apesar do trabalho, quando se juntavam nos ribeiros ou nos tanques a lavar as roupas da casa.
A propósito, um tio meu que já partiu, leis da vida, contou-me uma pequena história passada numa aldeia da Beira Alta:
- Chico, disse-me ele, num dia de Inverno, eu ia com a tua tia de mula a apanhar o comboio para Lisboa, a Celorico da Beira, para ela consultar um médico. Ao passarmos por uma aldeia estavam aí cerca de 20 mulheres, num tanque, a lavar a roupa, com as pernas metidas na água. Eu perguntei-lhes se não teriam frio. A mais faladora, respondeu-me que não, que tinham o forno quente. Então disse-lhes que tinha as mãos muito frias, se não mas deixavam aquecer no forno delas. A mesma mulher respondeu que nesse momento não podiam porque estavam a assar castanhas.
Este diálogo verídico, não sei se um pouco fantasiado, também transmite um pouco do humor dessas mulheres apesar da dureza dos campos, dos homens e da vida.
Nunca irei esquecer o dia em que, ainda adolescente, tive que fugir de um bando de mulheres que obedecendo à palavra de ordem de uma mais divertida disse para as outras: "vamos cantar os galos ao patrão". Andavam a mondar as ervas daninhas dum terra de trigo nossa, e o meu pai tinha-me mandado ir com elas. Não passou de uma ameaça em tom de brincadeira, pois essa prática de "cantar os galos", depois de lhe baixarem as calças, aos rapazes, da iniciativa das mulheres, como calculam, não era nada agradável.
Os sentimentos estavam calibrados em vivências de dureza que não admitiam príncipes, nem sonhos impossíveis. O ajustamento dos casais era feito dentro dos teres e haveres de cada um e um ajustamento psicológico que eles e elas pela idade dos vinte anos iam fazendo em conversas e em namoricos ligeiros.
Recordo-me que eu sendo da terra, mas sendo também um observador estranho, porque da minha idade era o único rapaz que estudava fora da terra, talvez a partir dos 17 anos, os rapazes da minha idade começaram por namorar e passado um ano ou nem tanto, praticamente todos tinham trocado de namoradas entre eles. Para que se entenda bem, realmente não havia troca, havia sim um acabar e recomeçar de novo para uma melhor combinação de personalidades.
Nesse tempo os homens e mulheres da minha aldeia, no casamento arriscavam todo o projecto de uma vida futura, que consciente ou inconscientemente era planeado para garantir o futuro dos filhos; pelo trabalho apenas limitado pelo descanso necessário para recomeçar de novo; pelo sexo que devia sobretudo garantir o nascimentos de filhos saudáveis.
Desde o amor platónico, ao amor cortês, ao amor romântico mais carnal ou idílico, há mais formas de amar do que formas de cozinhar bacalhau. O amor intelectualizado em parte como a filosofia, nasce da contemplação e do ócio. Casanova foi um intelectual e escritor, Dante Petrarca e Camões foram grandes poetas. Muitos filósofos escreveram ensaios sobre o amor.
O amor entre os meus conterrâneos seria pouco complicado, seria um amor que se confundia com o amor à família, o amor à terra, aos campos de trigo, às hortas, às oliveiras, aos animais domésticos. Era um amor que não admitia desvios porque era também um compromisso pela palavra dada perante o padre e outras testemunhas e cujo cumprimento seria vigiado por toda a comunidade. As relações sexuais, entre eles, satisfatórias ou não, era um segredo que não revelavam. Entre eles não se falava em amor, essa palavra era demasiado delicada para se coadunar com a sua condição de pequenos ou médios lavradores ou filhos sem terra, de terras que tinham que trabalhar para outros. Falar de sentimentos entre os casais, ou ter manifestações públicas sentimentais eram actos considerados impróprios e impúdicos. Os sentimentos entre os dois sexos estavam contaminados pela atração sexual que era um tabu religioso e social.
Por vezes, raramente, ouvia-se uma estória picante real ou um pouco inventada como a de um lavrador, conheci-o ainda, que ao regressar do trabalho quando metia as vacas na loja, que ficava debaixo da casa, ouviu a mulher, por cima, a gemer com dores em trabalhos de parto. Ele que era um brincalhão impenitente pôs-se a imitar os gemidos da mulher. Ela apercebeu-se e prometeu-lhe que nunca mais iria poder brincar com o seu sofrimento daquela forma.
O que se passou depois ninguém sabe, o que se sabe é que eles só tiveram aquela filha, por sinal alegre e simpática, como o pai. Apesar das vozes do povo, esse lavrador que nunca parava, ele e as vacas, foi um homem sempre alegre e divertido pelas piadas que ia distribuindo a uns e outros. Enfim há pessoas que nasceram para serem felizes seja quais forem as contrariedades com que se deparem.
Este homem bondoso e galhofeiro que tinha sempre uma palavra para todos, fossem jovens ou velhos, faz parte da minha galeria dos notáveis de Brunhoso. Como diziam os antigos "que Deus o guarde!"
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Nota do editor
Último poste da série de 1 de abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14426: Brunhoso há 50 anos (4): A Páscoa (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)
3 comentários:
Falas das tua terra com empatia, carinho, ternura, amor, se não mesmo paixão!... E, ao mesmo tmpo, tens o olhar "distanciado", crítico, e o rigor da observação e da análise do antropólogo ou do sociólogo...
Agora tenho que ir para uama aula, mas deixa-me dizer-te, mais uma vez, que estou a adorar as tuas notas sobre Brunhoso e as suas gentes!...
É um prazer ler os textos do Francisco Baptista sobre Brunhoso, eu que sou do Sul Baixo Alentejo noto que o respeito entre os vizinhos são semelhantes, sobre o modo de vida fica-se a saber as pequenas diferenças existentes.
Um abraço
Colaço.
Mais umas pinceladas, como só tu sabes dar, no quadro social do Brunhoso, do Brunhoso até aos anos sessenta do séc.XX.
Um abração
Carvalho de Mampatá.
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